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Business as usual ou um ensaio de economia pura

Assistimos à emergência de um sector financeiro pujante como nunca na história (a economia de casino, como alguns a têm vindo a designar), que submerge toda a actividade económica clássica e que está na base da eclosão da crise actual. O que nos preocupa é esta tendência para a catástrofe que os partidos do designado arco do poder têm vindo a demonstrar nas últimas décadas, dando a ideia de que se encontram num espaço onde nada de verdadeiramente importante se decide, assumindo a esfera financeira o núcleo efectivo da governação mundial.

O século XIX , que se iniciou com o ruir da ideia (e da possibilidade) de constituição do primeiro Império da Era Moderna, e apesar das profundas transformações societais que veio a testemunhar (fim das sociedades agrárias, emergência do sistema capitalista moderno e respectiva sociedade industrial; afirmação do ‘império da razão iluminista’, no qual a ciência e o progresso assumem papel estruturante, contribuindo para a ruptura com tradições seculares e a emergência de novas formas de vida e de pensamento sociais), alguma delas matizadas por tentativas revolucionárias de tomada do Estado e golpes de Estado (nomeadamente em França), é considerado por Eric Hobsbawm como o século da paz.
Karl Polanyi também utiliza esta expressão para designar aquele século, mas com a preocupação de identificar os factores que, nesse período de tempo, foram germinando no sentido de produzir os episódios de maior barbárie que a história foi chamada a testemunhar. Assim, há precisamente 100 anos, nos palcos onde, “segundo a lenda em vigor, o futuro se mostra em primeiro lugar” (Beck), vivia-se em plena belle époque, uma época (dizem-nos alguns autores, nomeadamente Beck e John Gray) marcada por um “optimismo enorme” quanto ao futuro, quem poderia prognosticar que o século XX seria caracterizado pela barbárie, constituindo mesmo “um dos mais negros da história”?
De entre esses factores Polanyi salientou como mais relevante para o que viria a suceder a partir de 1914 aquilo que designou por laissez-faire ou mercado livre auto-regulável, uma invenção ideológica novecentista posterior e, quanto a nós, erradamente apresentada como uma tese smithiana sobre a economia e o seu funcionamento natural.
Ora, decorrido um século, as teses do mercado livre que alegadamente se auto-regula voltam a surgir de um modo hegemónico, tendo marcado as políticas públicas desde os anos 80. A crise que todos temos vindo a testemunhar nos últimos anos no mundo ocidental (e que está longe de estar ultrapassada, como nos querem fazer crer os nossos governantes e alguns dos seus apoiantes mais incondicionais, apesar dos discursos inflamados contra o neoliberalismo), constitui a expressão mais clara das opções assumidas pelo chamado Consenso de Washington, que se centrava na liberalização dos mercados e nas privatizações em massa. Para agravar este cenário, que passou a marcar as relações globais, assistimos à emergência de um factor completamente novo – um sector financeiro pujante como nunca na história (a economia de casino, como alguns a têm vindo a designar) que submerge toda a actividade económica clássica e que está na base da eclosão da crise actual (que diria Smith deste facto?).
Referindo-se a um outro contexto histórico, mas articulando-o com os sinais emergentes nos anos 90 (e que se encontram hoje bastante agravados), e depois de acentuar que a acção dos economistas ilustrados da época, armados com “as cartas dos mares do século XIX, em que obviamente já não se podia confiar” (onde é que já vimos este quadro?), só estavam a piorar a crise, Hobsbawm, refere o seguinte, que nos parece exemplar para a época em que vivemos: “Aqueles de nós que viveram os anos da Grande Depressão ainda acham quase impossível compreender como é que as ortodoxias do puro mercado livre, na época tão completamente desacreditadas, vieram mais uma vez a presidir a um período global de depressão em fins dos anos 80 e 90, que, mais uma vez, foram igualmente incapazes de entender ou resolver”.
De acordo com Gray, “se fizermos da história o nosso guia, devemos esperar que o mercado livre global em breve pertença a um passado irrecuperável. Como outras utopias do século XX , o laissez faire global será engolido pela memória da história – juntamente com as suas vítimas.”
O que nos preocupa é esta tendência para a catástrofe que os partidos do designado arco do poder têm vindo a demonstrar nas últimas décadas, dando a ideia de que se encontram num espaço onde nada de verdadeiramente importante se decide, assumindo a esfera financeira – que não é eleita nem presta contas no espaço público – o núcleo efectivo da governação mundial. E aqui a Europa tem de se definir: ou continua a navegar à vista sob a batuta dos chamados mercados financeiros (fingindo que governa) ou assume um projecto de governação que, de acordo com Samir Amin, ou “será de esquerda ou não será”.

Manuel António Silva


  
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