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O neo-realismo na ilustração

A Casa-Museu Manuel Ribeiro de Pavia tem um pequeno mas significativo acervo de um dos mais notáveis ilustradores do século XX português, que foi, justamente, um dos grande nomes das artes plásticas em Portugal no século passado.

Manuel Ribeiro de Pavia não será, porventura, das personalidades mais evocadas quando se fala da arte portuguesa do século XX, mas a sua obra – pintura, gravura, desenho e ilustração – é das mais expressivas do movimento neo-realista. Pavia terá sido, na verdade, “o maior ilustrador ligado ao movimento neo-realista”, como defende David Santos, director do Museu do Neo-Realismo, numa publicação intitulada «Ilustração e literatura neo-realista».
O artista nasceu em Pavia, em 1907, numa casa típica alentejana que esteve até há algumas décadas adossada ao mais emblemático monumento da aldeia – a anta-capela de São Dinis. A casa desapareceu, entretanto, após a classificação da anta como monumento nacional, e o museu ficou instalado em casa contígua, numa praça do centro da aldeia.
Autodidacta, Manuel Ribeiro de Pavia fez o Ensino Secundário em Évora e conviveu depois, em Lisboa, com algumas das mais relevantes personalidades da arte e da literatura portuguesa do seu tempo, como José Gomes Ferreira, Mário-Henrique Leiria e José Dias Coelho, um dos organizadores das Exposições Gerais de Artes Plásticas, nos anos 40, onde Pavia expôs a sua obra, com Pomar, Maria Keil e Lima de Freitas, entre outros.
Ligado desde muito cedo ao movimento neo-realista, ainda que atento à fase tardia da estética modernista, o Alentejo e os camponeses alentejanos fizeram-se sempre presentes na sua obra e foram a sua principal substância temática e figurativa. Num texto publicado no «Diário Ilustrado», em Abril de 1957, Mário Dionísio referiu-se a esses retratos de “ceifeiros, de mondadeiras, de malteses e campaniças, de mulheres do povo, com olhares de fogo juvenil, e lágrimas de velhice precoce sob os chapeirões e os grandes lenços negros”.
A morte prematura de Pavia, aos 50 anos, deixou consternado o meio artístico e literário português. Cerca de dois meses depois, em Maio de 1957, um número especial da revista «Vértice» reuniu vários textos sobre a obra e figura de Manuel Ribeiro de Pavia (assinados por Joel Serrão, Domingos Monteiro, José Gomes Ferreira, Mário Dionísio, Eugénio de Andrade e Fernando Namora). São páginas que, no seu estatuto de homenagem, recolhem testemunhos sobre um dos artistas mais singulares do século XX português e, quiçá, mais do que isso.
Numa época em que, como dizia Alexandre O Neill, a “vidinha” se consertava com contorcionismos e arredia verticalidade, Pavia ter-se-á revelado íntegro até ao fim, não obstante as privações materiais (a fome, dizem), a solidão e a desatenção que o país oficialmente lhe outorgou. Foi exemplo numa terra onde – como resumiu Almada – “Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões”. O texto de Namora na «Vértice» fala desse heroísmo anónimo que a pátria lusitana tem por fado desprezar, e refere-se a Pavia como “um dos últimos exemplares daquele heroísmo, um tanto quixotesco, um tanto burlando-se a si próprio, que é ainda possível num mundo que não se compadece com heróis nem deles deseja acreditar. O heroísmo de morrer em pé, limpo, sem a mais pequena contemporização com as fáceis vitórias e as saborosas e emolientes prosperidades”.

Retratos do Alentejo: ceifeiras sem paisagem

Pavia é uma aldeia localizada nos arredores de Mora, no Alto Alentejo. O casario branco, a salvo de desafinações arquitectónicas, conserva os rodapés amarelos, as chaminés alentejanas e algumas varandas em ferro forjado. A Casa-Museu [Tel. 266 457 511] está instalada numa dessas casas, pequena, de dois pisos e espaços interiores modestos de tamanho. A ideia da sua criação partiu do pintor Rogério Ribeiro, tendo sido criada posteriormente a Associação de Acção Cultural da Casa-Museu, que desenvolve actividade também no âmbito da realização de exposições de outros artistas.
O acervo, constituído sobretudo por obras oferecidas por amigos do artista, a par de outras adquiridas pela autarquia, está distribuído por duas salas e algumas vitrinas: desenhos a tinta-da-china e a grafite, litografias, gravuras e exemplares de edições ilustradas por Pavia. Há um pequeno conjunto de desenhos que ilustraram «Buza», de Júlio Graça, e «Gaimirra», de Antunes da Silva. As ceifeiras alentejanas surgem representadas em muitos retratos em que a paisagem é praticamente ausente ou minimal: “Vila Adormecida”, um desenho a tinta-da-china e anilinas, é paradigmático dessa marca.Ainda que tenha ensaiado outras experiências – como, por exemplo, a BD, publicando no «Tic-Tac», em 1933, e n’«O Mosquito», em 1936 –, foi na ilustração que o artista se revelou mais profícuo, deixando uma obra singular, inconfundível, que se constituiu elemento central na ligação ao movimento neo-realista.
Os seus desenhos ilustraram edições de alguns dos mais importantes escritores do movimento, como Alves Redol («Gaibéus», «Avieiros», «Marés», «Porto Manso»), Fernando Namora («Retalhos da Vida de um Médico»), Manuel da Fonseca («Cerromaior»), Alexandre Cabral («Fonte da Telha»), Rodrigo de Freitas («A Porta Fechada»), Sidónio Muralha («Passagem de Nível») e Faure da Rosa («Espelho da Vida»).

Retrato do artista quando herói anónimo

Pavia iniciou a actividade de ilustrador em 1936, com capa e desenhos para «Imagens do Alentejo: Documentário da Vida Alentejana», de Henrique Zarco. No início dos anos 40 era já colaborador regular de várias publicações, entre as quais a «Vértice», e o seu traço e vigor expressivo deixaram forte memória também em Aquilino Ribeiro. Pavia reclamava a influência de Van Gogh, Cézanne, Modigliani e, sobretudo, Goya. Mas Aquilino somou outra leitura, ao exaltar “os seus desenhos de traço miguelangelesco, cabeças convulsas, corpos de grandes e ondulosas curvas, e de volumes sabiamente exagerados, com ar angelical, e mãos e pés de ciclopes”.
O conhecimento da sua obra passa também por uma visita ao Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, onde é lembrado e em cujo acervo de edições literárias do neo-realismo está bem representado. Muitas das capas dos exemplares expostos têm a sua assinatura. Para quem se interesse pela obra de Pavia, fica ainda outra nota: o notável catálogo editado por ocasião do centenário do seu nascimento, em 2007, é uma fonte preciosa de informação sobre o artista, cuja personalidade foi vivamente admirada por amigos e contemporâneos das artes e das letras.
José Gomes Ferreira, companheiro de andanças e resistências pela capital, referiu-se-lhe no prefácio às «Líricas» – conjunto de desenhos que Pavia publicou em 1950, dedicados precisamente ao autor de «O Irreal Quotidiano» – com a deferência que se reservaria a um nobre que o fosse por merecimento próprio, a um nobre que o fosse não por bênção de berço, mas pela vitória justa sobre a adversidade quotidiana: “sempre o encontrei por essas ruas de cabeça erguida, Príncipe Sem Vintém e Sem Queixas”. As maiúsculas, tão peculiares na escrita de Gomes Ferreira, reservadas tantas vezes aos heróis anónimos do quotidiano, tiveram nesse exórdio um encontro com o herói que, por coincidência, foi quase anonimamente um dos grandes portugueses do século XX. E um dos maiores artistas do século XX português.

Humberto Lopes


  
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