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A bola de sacos de plástico

No jogo que é a vida, o Homem não desiste facilmente de projectos de luta, de competição, de guerra e de morte. A história da humanidade aí está para o demonstrar. Contudo, também sabemos que o Homem é um ser de esperança, pelo que, como muitos pensadores humanistas têm feito ao longo dos tempos (desde logo Pierre de Coubertin), ele sonha que, com o avanço da civilização e o crescente aperfeiçoamento ético das relações sociais, os conflitos bélicos no mundo tenderão a acabar. E acabarão no dia em que o Homem for capaz de conduzir a força interior da competição que o pode levar ao combate destruidor da má Éris, para combates socialmente úteis, mas que lhe continuem a dar vazão ao instinto agonal, em busca da honra e da glória sem as quais não é capaz de viver. Entendemos ter sido nesta perspectiva que a Organização das Nações Unidas (ONU) apelou ao Comité Olímpico Internacional (COI) no sentido de defender os valores do desporto, colocando-o ao serviço da humanidade, através da Paz Olímpica.
Hoje, o secretário-geral da ONU, Ban Kimoon está bem consciente da força que o desporto pode ter, no sentido de anular o poder destruidor das manifestações de violência desregrada, que, como se viu em mais de 50 anos de guerra-fria, muitas vezes despontam no coração dos homens e nas sociedades – são bem elucidativas as palavras de Robert Kennedy, quando, em 1964, após sucessivas derrotas dos EUA nos Jogos Olímpicos, escrevia no «Sports Illustrated»: “Parte do prestígio da nação durante a guerra-fria é ganho nos Jogos Olímpicos. Neste conflito quadrienal, os EUA, de há dezasseis anos a esta parte, têm vindo a claudicar. Os resultados aí estão como prova do declínio da nossa energia e prestígio nacionais. (...) É de interesse nacional que voltemos a ganhar a nossa superioridade olímpica e que uma vez mais demos ao mundo uma prova da nossa força interior e vitalidade”.
Quer dizer, as grandes potências militares extravasaram para os terrenos da competição desportiva muitas das dificuldades que não podiam resolver por meros processos convencionais de confronto e, ao fazê-lo, deram vazão aos piores sentimentos que, por vezes, tomam conta do coração dos homens. Ora, o Movimento Olímpico (MO) foi, apesar de todas as dificuldades e críticas, um espaço onde, em alternativa à guerra dura e pura, os homens colocaram nos terrenos desportivos a sua necessidade inata de confrontação. Então, o desporto serviu como “válvula de escape” de muitas tensões que poderiam ter degenerado em conflitos físicos, com enormes prejuízos em vidas e bens para as partes envolvidas.
Mas além desta função de substituição, o desporto e o MO, em muitas circunstâncias, também tiveram uma função de superação. E Ban Ki-moon demonstrou-o na alocução que proferiu na sessão de abertura do XIII Congresso Olímpico, em Outubro de 2009, em Copenhaga, quando disse: “A prática do desporto é um direito humano. Cada indivíduo deve ter a possibilidade de praticar desporto sem discriminação de qualquer tipo e de acordo com o espírito olímpico, o que requer um entendimento mútuo, com espírito de amizade, solidariedade e fair play.”
A este respeito, o secretário-geral da ONU contou aos 1.200 delegados uma estória verdadeira, a todos os títulos notável: “O desporto pode ser visto em qualquer parte do mundo. Viajei por países repletos de pobreza, por comunidades em luta pela sobrevivência, por lugares devastados pela guerra, onde toda a esperança parecia perdida. De repente, aparecia uma bola feita de sacos plásticos ou de jornais atados com um cordel. E víamos o desporto dar vida aos sonhos e às esperanças”.
Os delegados tiveram oportunidade de perceber a força que o desporto pode ter quando Ban Ki-moon lhes mostrou a referida bola. Os donos tinham sido crianças pobres dos bairros de Nairobi, e os presentes ficaram a saber que aquela bola artesanal fora substituída por bolas e equipamentos desportivos de qualidade, oferecidos pela ONU. Depois, Jacques Rogge, Presidente do COI, assinou a bola improvisada, que foi posteriormente leiloada a fim de apoiar um novo fundo de ajuda da ONU aos trabalhadores locais, ou às suas famílias, feridos ou mortos durante as operações humanitárias. A bola acabou por ser adquirida por alguém que a ofereceu ao COI e hoje encontra-se no Museu Olímpico, em Lausanne, como símbolo
dos sonhos e da esperança que o desporto pode dar, mesmo àqueles lugares onde tudo parece estar perdido.

Gustavo Pires


  
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