Página  >  Opinião  >  Mulheres da 1ª República: a (nossa) dívida

Mulheres da 1ª República: a (nossa) dívida

Quando lhes vemos os rostos, fotografados há um século, sentimo-las distantes, como se fossem diferentes das mulheres de agora... Apenas sinais do tempo... Elas são, de facto, mulheres portuguesas, autênticas, inteiras na consciência da sua individualidade e, mais que isso, do seu poder colectivo. Por força deste ano comemorativo, são mulheres feitas personagens principais em inúmeros artigos temáticos e os seus nomes aparecem
registados em longas listas, como marcas valorosas e heróicas da nossa história. Ainda bem. Que sejam lembradas como merecem e por quem tem o dever de reconhecer o seu merecimento.
Aquelas mulheres da 1ª República foram combativas, verdadeiras activistas na defesa de causas cívicas e no desenvolvimento e fortalecimento do associativismo. E para o serem precisaram de romper fortes e velhas barreiras, viram gorar-se muitos sonhos, tiveram de enfrentar resistências que hoje conseguimos adivinhar e muitas outras que não conhecemos porque elas as exterminaram.
A caminhada vem, é claro, de antes da República. Ao derrube da monarquia associa-se o sonho de ver consagrados legalmente alguns dos direitos ainda negados às mulheres, com especial relevância para o direito ao voto.

A força do associativismo

Ainda antes da instauração da República, foi fundada a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, curiosamente “pela mão” de três homens, ilustres lutadores pela causa republicana: António José de Almeida, Bernardino Machado e Magalhães Lima. Este aparente contra-senso fica esclarecido se tivermos em conta a enorme importância de que se revestia a conquista da população feminina para a adesão aos ideais republicanos. A Liga assumia o objectivo de “orientar, educar e instruir nos princípios democráticos a mulher portuguesa”. Parece não haver muitas dúvidas sobre a verdadeira motivação – utilitária? – do apelo às mulheres para que aderissem à causa da República...
Mas esse foi o começo. Quando elas tomaram a acção nas suas mãos, o objectivo passou também a ser a sua própria condição, a sua própria emancipação! Registe-se, entretanto, que, em 1909, o Congresso do Partido Republicano proclamara a necessidade de assegurar a igualdade de direitos políticos e sociais para as mulheres.
O Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP) foi fundado em 1914, por iniciativa da feminista Adelaide Cabete e, nesse mesmo ano, foi reconhecido como secção do poderoso e prestigiado International Council of Women. Exemplo marcante da opção pelo combate associativo, o CNMP veio a revelar-se de enorme importância enquanto organização de mulheres, com uma influência e popularidade crescentes na sociedade portuguesa ao longo das décadas seguintes.
Importa registar que o CNMP persistiu na sua acção e resistiu à hostilidade do regime instaurado em 1926 até que, em 1947, era Maria Lamas presidente há quase vinte anos, foi proibido pelo Estado Novo, na sequência do enorme êxito da Exposição de Livros Escritos por Mulheres, que, a par da exibição de cerca de 3.000 livros de 29 países, incluiu serões culturais com palestras e projecção de filmes. O envolvimento de activistas e dirigentes do CNMP em iniciativas de oposição ao regime terá ditado esta decisão prepotente e anti-democrática do Estado Novo.
Merece ainda referência, no conjunto dos movimentos e iniciativas colectivas de mulheres na 1ª República, a Cruzada das Mulheres Portuguesas, organização de natureza muito peculiar, fundada em 1916 por um grupo de mulheres liderado por Elzira Dantas Machado (casada com Bernardino Machado, Presidente da República à época) que se propunha “prestar assistência moral e material aos que dela necessitassem por motivo da guerra com a Alemanha” e que veio a assumir grande importância porque chegou a incorporar estabelecimentos hospitalares, ministrou cursos de enfermagem formando um corpo de enfermeiras para os hospitais militares e para o contingente expedicionário, participou na recuperação dos feridos e doentes de guerra e na reeducação dos mutilados, assumiu a tutela de órfãos de guerra e a sua posterior integração social. Em 1918, os seus institutos e estabelecimentos hospitalares são transferidos para o Ministério da Guerra e, em 1938, a Cruzada das Mulheres Portuguesas é extinta com passagem de todo o seu património para a Liga dos Combatentes da Grande Guerra.
Perdurará a força dos laços construídos, das associações criadas num contexto adverso, dos passos importantes que abriram um futuro possível. Perdurará a nossa gratidão e o sentido de dívida prevalecente.

Personalidades fortes

Mas não podem deixar de ser destacadas, enquanto forças individuais e referências pessoais para os valores e princípios da República, algumas mulheres – grandes mulheres – que, tão “distantes” de nós, trazem para bem perto, com a evocação dos seus nomes e das suas obras, o sentido do dever cívico, social e político que ainda hoje nos inspira. Arriscando uma selecção limitada, por necessária, mas representativa, aqui fica a nossa homenagem e reconhecimento.

Carolina Michaëlis (1851-1925). Escritora e docente universitária na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (começou por ser a primeira mulher admitida pela Academia de Lisboa como professora universitária), mulher de elevada estatura intelectual, defendeu insistentemente o trabalho e a educação como factores decisivos no processo de emancipação das mulheres. Verteu o seu ideário numa série de artigos subordinados ao tema “O movimento feminista em Portugal” que escreveu para «O Primeiro de Janeiro». Em 1914, foi nomeada Presidente Honorária do CNMP, como reconhecimento do seu contributo para a causa da defesa dos direitos das mulheres.

Alice Pestana (1860-1929). Mulher de grande cultura, defendeu uma educação de nível médio para a mulher, como suporte para a sua emancipação. Foi a primeira mulher a integrar a Sociedade Altruísta, a convite dos seus fundadores. Fundou e foi a primeira presidente da Liga Portuguesa da Paz. Casada, desde 1902, com o professor espanhol Pedro Blanco, teve importante papel na divulgação em Espanha, onde vivia, dos ideais republicanos portugueses e do desenrolar do processo de implantação da República. Em 1914, foi mesmo enviada pelo governo espanhol a Portugal, com a incumbência de elaborar o relatório La Educación en Portugal que foi publicado em 1915.

Adelaide Cabete (1867-1935). Médica ginecologista, das primeiras a exercer em Lisboa, participou nas actividades conspirativas com vista ao derrube da monarquia. Foi umas das pessoas escolhidas para confeccionarem a bandeira republicana que haveria de ser hasteada em 5 de Outubro. Combateu os flagelos da mortalidade infantil, do alcoolismo feminino e da prostituição. Foi figura destacada na criação da Liga Republicana das Mulheres e na fundação e implantação do CNMP e, ao longo dos anos, a sua lucidez e determinação serviram de referência e incentivo a muitas companheiras de luta. Recebeu, a título póstumo, em 10 de Junho de 1995, a Medalha e Colar de Grande Oficial da Ordem da Liberdade.

Maria Veleda (1871-1955). Professora do Ensino Primário, escritora para crianças, fez parte da Liga Republicana de Mulheres Portuguesas e do Grupo Português de Estudos Feministas e dedicou especial atenção à defesa dos direitos na área da educação. Considerada oradora brilhante, teve alguns dos seus discursos e conferências coligidos no livro «A Conquista» (1909), prefaciado por António José de Almeida. Desiludida com os sucessivos governos pela falta de cumprimento das promessas republicanas, abandonou a militância activa mas não deixou de escrever em defesa dos ideais feministas e republicanos.

Ana de Castro Osório (1872-1935). Mulher de vasta cultura e ideias avançadas, foi escritora, editora, pedagoga, publicista e conferencista. Defendeu desde cedo os ideais republicanos, foi fundadora da primeira associação feminista portuguesa (Grupo Português de Estudos Feministas, 1907) e, em seguida, integrou a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, de que foi presidente. Abandonou a Liga por divergências em relação à questão sufragista e de ordem religiosa e fundou a Associação de Propaganda Feminista (1911). No decorrer da 1ª Guerra Mundial criou a Comissão Feminina pela Pátria (1914) e integrou o grupo fundador da Cruzada das Mulheres Portuguesas (1916). É muito justamente considerada uma das figuras mais relevantes da causa feminista no fim do século XIX e princípio do século XX.

Carolina Beatriz Ângelo (1877-1911). Licenciada em Medicina (1902), foi a primeira mulher a exercer prática cirúrgica no Hospital de S. José. Participou nos movimentos que prepararam a queda do regime monárquico, pertenceu a organizações feministas e levantou sempre bem alta a bandeira do direito ao voto para as mulheres. Era dirigente da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas quando, em 1911, encontrou no facto de ser viúva um argumento para exigir o direito de votar, invocando a sua condição de “chefe-de-família”. Ganhou a batalha legal que teve de travar e tornou-se na primeira mulher eleitora portuguesa, rompendo as limitações impostas pelas leis republicanas. De facto, o voto era um direito reservado “aos cidadãos portugueses, com mais de 21 anos, que soubessem ler e escrever e fossem chefes de família”. E Carolina Beatriz Ângelo foi a única mulher a votar nas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, em Maio de 1911. Morreu poucos meses depois, deixando aberto um (ainda) longo caminho.

Virgínia Quaresma (1882-1973). Uma das primeiras mulheres a licenciar-se em Letras (1903), foi a primeira jornalista-repórter portuguesa e trabalhou para diversos jornais, portugueses e estrangeiros, com especial destaque para a colaboração com publicações brasileiras. Foi militante pacifista e, quando deflagrou a 1ª Guerra, alistou-se na Cruz Vermelha francesa, tendo sido correspondente de guerra. Participou na angariação de fundos de apoio aos soldados portugueses mutilados, bem como aos órfãos e às viúvas de guerra. Militante feminista, sempre defendeu a cultura como base essencial da emancipação, estimulou a entrada de mulheres na actividade jornalística e destacou-se como pioneira na denúncia de casos de violência doméstica sobre as mulheres. Embora sempre tenha defendido a não filiação partidária por parte dos jornalistas, assumiu claramente as suas opções em defesa da República e dos direitos das mulheres, mesmo antes de 1910.

Bem hajam! Grande é o legado destas e de tantas outras mulheres! Imensa é a nossa dívida para com elas. Não deixaremos que a memória esmoreça e seguiremos dando vida e corpo aos sonhos que foram seus e de que, entretanto, nos apoderámos... como era sua vontade!

Ana Brito Jorge

BIBLIOGRAFIA
Algumas notas sobre as Mulheres e a Primeira República Portuguesa, Ana Vicente em http://caminhosdamemoria.wordpress.com/
As Mulheres e a República, Agenda Feminista 2010, União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR)


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo