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Para um desenvolvimento ecologicamente sustentável

Para fazer crescer uma criança é preciso toda uma aldeia
(provérbio africano)

Num estudo de mitologia comparada, Georges Dumézil(1) expressou uma visão arquetipal que se manifestou ao longo da história. Conceptualizou três grandes funções que se complementam com as suas especificidades numa “harmonização” social: função económica; função relacional ou militar; função formativa ou ideológica.

Dumézil descreveu uma cosmovisão religiosa da organização social neste esquema triádico. E o historiador Georges Dubyl(2) confirmou esta trifuncionalidade na Idade Média, explicitando: a fecundidade dos laboratores (camponeses); a segurança e protecção dos pelatores; o poder religioso das leis, assegurado através dos oratores.

Estas três funções, quando bem articuladas e coordenadas, correspondem aos meios executivos, judiciais e culturais, que, na Revolução Francesa, pretendiam dar resposta às três grandes aspirações da Humanidade: fraternidade, ao nível económico; igualdade, ao nível jurídico; liberdade, ao nível cultural – é de notar que a evolução deste processo veio a introduzir soluções inadequadas aos níveis previstos antes de se desencadear a ruptura do Antigo Regime.

Já vários pensadores se debruçaram sobre o organismo social tripartido. Claude de Saint-Martin, bem como o movimento maçónico da altura, exprimiram a necessidade de ligar a fraternidade à economia, a igualdade ao elemento jurídico e a liberdade à instância ideológica. Porém, a realidade histórica transformou o organismo social num “modelo” abstracto.

O capitalismo introduziu a liberdade a todos os níveis. Assim, a liberdade na economia levou ao poder do mais forte. O socialismo reivindicou a igualdade para os três níveis e a cultura tendeu a uniformizar-se. A deformação do organismo social registou, deste modo, anomalias quer no capitalismo quer no socialismo de Estado. Mas esta trifuncionalidade, bem coordenada, poderia dar resposta sistémica e criativa aos arquétipos gregos do Bem, do Belo e da Verdade, como veremos.

Compreensão holística da realidade

Esta tríade corresponde também à caracterização antropológica: vontade/vida vegetativa; sentimento/vida anímica; pensamento/ vida cultural. Uma caracterização simplificada que corre o risco de se tornar num esquema estereotipado. Mas quando assumido sem dogmatismos, como matriz tendencial, permite um referencial daquilo que existe de universal no género humano, apesar das irrefutáveis singularidades dos indivíduos, das culturas e das civilizações.

Mais uma vez, a importância e fecundidade desta hipótese de trabalho não está no maior ou menor relativismo estrutural da sua problemática. O interesse deste esquema é que, sem negar a especificidade conjuntural dos contextos históricos e civilizacionais, permite a possibilidade de compreensão holística da realidade. A abordagem funcional tanto da imagem do Homem como da imagem dos povos pressupõe um mínimo de referentes para que qualquer tema/assunto/objecto possa ser pensável e/ou comunicável. Ora, as funções antropológicas – metabólica (alimentação, fecundação e movimento), rítmica (regularização e funcionamento relacional e anímico) e neuro-sensorial (observação, controlo e comando) – são funções estruturantes e normalmente aceites. Estas funções são extrapoladas com analogias isomórficas e simbolicamente adequadas à função bioeconómica, à função sócio-jurídica e à função da noosfera (cultura/mente ou espírito).

Em qualquer caso, estas três funções, quer sejam no indivíduo, na natureza ou na sociedade, exigem sempre um quarto ponto referencial – este reside na consciência deste triplo funcionamento, na harmonização desta tríade de forças (impulso/emoção/mente) e no propósito, isto é, no dar sentido. Em Platão, este quarto nível aparece claramente na metáfora da carroça (elemento físico), dos dois cavalos (elemento emocional – um cavalo fogoso e outro manso) e do cocheiro (elemento racional) – o dono ou o rei que dá sentido à viagem.

Portanto, a carroça é a parte material, os cavalos são a simpatia/antipatia (polaridade emocional da vida), o cocheiro é a mente que detém a capacidade de adestrar e controlar os cavalos e, desse modo, dirigir tecnicamente a condução da carroça. Mas o sentido final para onde se dirige a carroça pertence àquele que dá sentido, que imprime direcção e sentido à viagem, porque tem a antevisão projectiva de para onde quer ir.

Mudança de modelo e de processo

A educação para um desenvolvimento ecologicamente sustentável exige uma visão holística, planetária. Mas essa visão global exige, também, atenção aos vários planos diferenciados da realidade, que só equilibrados e permanentemente pilotados pela consciência podem contribuir para o projecto delineado, ainda que o plano possa receber alterações resultantes da experiência adquirida no caminho.

Assim, a estratégia está já, sistemicamente, na táctica, e a táctica interfere na própria estratégia. Qualquer casualismo mecânico incorre num risco de disjunção e fragmentação da realidade. Todo o futuro consciente e não abstracto contém experiências do passado e do presente, do mesmo modo que a antevisão futura ajuda a interpretar o passado e a olhar o presente de uma forma dinâmica e criativa.

Tal é o processo em que o educador é simultaneamente educando, e em que o aluno é, também, embrionariamente professor, nesta complexa visão sistémica da cultura e da educação. Ivan Illichl (3) desenvolveu esta ideia, presente no provérbio africano citado, através do propósito de “desescolarizar” a sociedade, procurando dar à sociedade a importância da formação cívica, sem instituições fragmentadas.

Devemos articular então a formação para esse novo paradigma, em que se exige uma forma de pensar (complexidade e metodologia sistémica transdisciplinar) e, simultaneamente, um aprender a aprender. Através de uma rede societal, a criança e o jovem vão fazer uma tripla iniciação: do camponês, do guerreiro e do filósofo.

De um modo semelhante, também Edgar Morinl(4) defende que, graças a essa formação transdisciplinar, em contacto com a cidadania activa, se pode desenvolver a formação de uma “cabeça bem feita”. Jacques Delorsl(5) refere os quatro pilares necessários para uma mudança de paradigma educativo: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver em conjunto; aprender a ser.

Contudo, este modelo educativo terá que ser inserido num paradigma mais vasto – um novo paradigma civilizacional, em que teremos de rever a questão do modo de produção, dos tipos de energia e dos processos e meios tecnológicos. Na actual situação ecológica de esgotamento da biosfera (energia, espécies e bens naturais), de contaminação poluitiva (poluições globais, secas, mudanças climáticas, etc.) e de exclusão social, terá que se impor uma mudança, não apenas no modelo operativo, mas também no processo civilizacional, se queremos sobreviver e viver numa relação simbiótica com a natureza.

A tecnosfera produzida pelo Homem gerou pontos de ruptura com a biosfera, que já não possui força regenerativa face ao referido esgotamento e contaminação. São claros, também, os sintomas de crise profunda na sociedade, alargando-se o fosso entre ricos e pobres, gerando-se conflitualidade e violência face às dissimetrias regionais e internacionais, até à fome, miséria e genocídio. A concorrência desenfreada e a competitividade predatória estão a desarticular toda a eco-economia essencial da biosfera, gerando incontroláveis situações catastróficas: mudanças climáticas, catástrofes naturais, desertificação e perda de biodiversidade nos ecossistemas.

Ecologizar o paradigma pedagógico

Neste sentido, o paradigma pedagógico, tal como o pensamento e a cultura, e o modo de vida em geral, terão de se ecologizar. O que propomos para o paradigma pedagógico é ecologizá-lo. Assim, ecologizar a proposta de Jacques Delors é:

– eco-empreender, isto é, realizar ecologicamente as actividades tecno-estruturais;

– eco-aprender a aprender, isto é, aprender a conhecer com o pensamento ecologizado;

– eco-aprender a viver em conjunto e em solidariedade para com a biosfera,

criando as simbioses necessárias entre natureza, eco-tecnologia e eco-sociedade;

– aprender a ser ecologicamente, para se poder viver em harmonia com a existência saudável de uma biosfera.

Só a partir desta orientação estratégica se podem elaborar currículos de formação adequados ao eco-desenvolvimento. Esses currículos articulam-se ainda de forma tripartida, embora sistemicamente em interacção:

a) formação no sentido das necessidades de autonomia alimentar, construtiva e logística de base – eco-empreen der/fazer;

b) formação criativa, relacional (e ainda higiene e saúde) – eco-relacionar-se

com os outros e com a biosfera;

c) eco-apreender saberes para uma estratégia de eco-desenvolvimento.

Interessa compreender que toda essa triarticulação de currículos se relaciona com um trabalho de auto-desenvolvimento para uma consciência auto-reflexiva que tem a ver com a dimensão do ser, de que também fala Jacques Delors. Só com esse trabalho, de definição paradigmática e de estratégias curriculares adequadas, poderemos definir uma conveniente gestão da cultura e do ensino.

A problemática da cultura e do ensino tem a ver com o modelo de desenvolvimento que se discute actualmente e que assenta numa oscilação entre o neoliberalismo – cujo interesse se articula em torno do mercado e dos interesses lucrativos das multinacionais – e o capitalismo de Estado, previdencialista, em que a regulação económica se faz através do neokainesianismo ou através do planeamento do Estado autocrático.

Porém, esta situação aparentemente dicotómica tem, afinal, três sujeitos – aquilo a que se chama o “triângulo de Krohm”. Com efeito, para além da polaridade empresa/Estado, existe a expressão de uma sociedade autónoma que se traduz na autogestão participativa e cooperante. Neste sentido, a questão não é mais Estado ou mais empresa, mas mais sociedade civil auto-organizada. Por isso, no desenvolvimento ecologicamente sustentado, o ensino e a cultura terão cada vez mais a ver com a organização consciente e participativa da sociedade civil e menos com formas de mercadoria lucrativa, na órbita das multinacionais ou das manipulações ideológicas do Estado autoritário.

A Escola terá que ser socializada na integração trifuncional:

1. uma quinta onde a actividade de autonomização se apreende através do trabalho em relação com a natureza, elemento essencial da função nutricional (produção energética, alimentar, de reciclagem e renovação);

2. uma oficina onde se alicerçam competências de eco-prazer (da eco-construção ao eco-design) aprendendo a usar, reciclar e a reutilizar materiais ecológicos na eco-tecnosfera, que terá de substituir a tecnosfera poluitiva e as energias fósseis.

3. Um atelier onde se aprende a pensar reflexivamente, a criar e a promover pessoas livres e autónomas.

Só deste modo poderemos modificar a natureza da pedagogia.

Da inculcação à aquisição de saberes

Actualmente a pedagogia é um mecanismo de inculcação e reprodução. Para que os homens sejam verdadeiramente livres é necessária uma pedagogia iniciática que não tenha exames teóricos, mas provas de vivência; não proponha testes de memória, mas exerça uma formação integrando o saber, o fazer, o viver e o ser de uma forma equilibrada.

Esta “pedagogia iniciática”, teorizada por Pierre-Yves Albrecht e Jean Zermattenl(6) organiza-se segundo uma articulação equilibrada entre actividade prática operativa, artística e reflexiva e os avanços no saber, no relacionar-se e no fazer. É nesta articulação de experiências vivenciais, “momentos de iniciação”, que se realizam os “ritos de passagem”. Estes ritos são essenciais para a tomada de consciência do autodesenvolvimento e para a confirmação de um “saber e competência” adquiridos.

Esta forma iniciática está presente na sociedade tradicional africana. Amadou Hâmpaté Bâl(7) descreve em vários livros esta singular filosofia pedagógica. Também Pierre Rabhil(8) leva a cabo a formação agro-ecológica em vários países africanos, desenvolvendo uma prática pedagógica de vivência poética e mágica da compreensão do homem e da natureza.

Algumas das experiências aqui referenciadas existem. São vários os centros de formação que explicitam caminhos diferenciados, mas com uma preocupação comum: o eco-desenvolvimento e a tripartição sistémica. Refiro apenas casos exemplares que visitei e investigueil (9): Terre et Humanisme (França), Terre Vivante (França); Centre Songhai (Benim), Alanus Hoschule (Alemanha), Jarna Seminariet R. Steiner (Suécia), Schumacher Center (Inglaterra) e TIBÁ (Brasil).

Jacinto Rodrigues


  
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