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Sem senhas nem santos

[Testemunho no âmbito do artigo ‘A PÁGINA nasceu há dezoito anos’]

Sou jornalista e o meu nome é Júlio Roldão. Aqui na PÁGINA, onde colaborei do n.º 0 ao 184, que são os números da chamada primeira série, sou mais (re)conhecido pelo pseudónimo de João Rita. João por parte do primeiro casamento, Rita por parte do segundo. Ele, João, com jota de Júlio, segundo filho do meu primeiro casamento. Ela, Rita, com erre de Roldão, também a segunda descendência, neste caso do segundo casamento. Um pseudónimo escolhido para que os segundos confirmassem que valem tanto como os primeiros – apenas são mais novos.

A PÁGINA também foi, a bem dizer, o meu segundo jornal. Tantas vezes acarinhado e cuidado, no que me dizia respeito, como se fosse o primeiro. Assumiu-se, desde o n.º 0, como uma inovação no panorama da Imprensa escrita, começando por optar pelo preto-e-branco, cor que denominou de “alma dos jornais”, e prometendo uma arquitectura gráfica que concedesse à imagem, nomeadamente à fotografia, a mesma dignidade do texto escrito. “Uma página certa”, como se lê na página 15 do n.º 0, cuja capa ostentava um então cessante ministro da Educação, em calções, equipado para jogar futebol de cinco.

Não foi apenas um gancho, foi uma paixão assumida pelo tal João Rita, “jornalista desconhecido, português, 39 anos, modesto militante da comunicação e de algumas utopias… naturalmente vaidoso”, como ele (eu) próprio escreveu na página 7 da PÁGINA n.º 15 (Março de 1993), num manifesto triste de guerrilha jornalística que assinámos (ele e eu) sob o título “Tempestade na informação”.

Um autêntico brainstorming a pretexto de um debate que a Fenprof organizou em Cascais, nos dias 2 e 3 desse Março marçagão, para discutir o tema “Sindicatos e Informação”. À data, eu já levava dezasseis anos de guerrilha jornalística, noutros títulos, mas foi essa a primeira vez em que fui convidado a discutir, por “patrões” da informação, a própria informação que se produzia e divulgava. Repito-me na dificuldade deste testemunho: “Faltam aqui palavras, mesmo sem sentido, que vençam sonos. Esta notícia, esta reportagem ou esta crónica tem corpo. E tal como o corpo todo inteiro é um continente de divertimento, também este texto tempestuoso cresce ao toque de todas as palavras que cheiram bem, que sabem bem, que soam bem”...

Voltando a confessar o pecado e a dificuldade da reaprendizagem da escrita, quando estamos viciados nas palavras coladas e cortadas de telegramas e comunicados velhos, a ponto de desprezarmos as mais simples e pequeninas que cabem na concha da mão, reafirmo a permanente necessidade de erguer rapidamente um muro entre a lucidez e a loucura lúcida, antes que alguém descubra, neste texto em que me plagio, reescrevendo-me, senhas e santos e não apenas a descontrolada necessidade de um falso gancho, muito próprio dos jornalistas que permanentemente, e com razão, dizem que ganham mal. Como dizia nessa reportagem, com uma estranha premonição, haveria um dia de escrever títulos que me fossem ditados e deixar-me de orgulhos experimentais e em desuso. À época, o Zé Paulo ainda podia defender-me. Ele que reconhecia o quão doloroso pode ser este ofício de escrever.

Termino como terminei essa reportagem de Março de 1993. As palavras começam a falhar e os dedos tamborilam no teclado já sem... Já sem... Já sem vontade... E jazem caídas numa folha de papel em branco, de súbito humedecida.

Júlio Roldão


  
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