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Pecados e tentações do saber e do poder

É de uma riqueza enorme a conjugação dos vários e diferentes saberes dos docentes de cada nível de ensino; embora, em alguns, ainda possa surgir a ideia de que o seu conhecimento é “superior” ao dos outros, cedo vão percebendo que há saberes, know-how e culturas próprias que não são transportáveis de uns níveis para os outros, mas que são ajustáveis, negociáveis, passíveis de serem enriquecidos.

Daquilo que é e do que há-de ser a formação básica para os cidadãos portugueses, pouco podemos saber neste momento em Portugal. O dito, o não dito e o pensava que tinha ditoatropelam-se, ultimamente, de tal forma no discurso político, que acabam até por perturbar aquilo que possa estar a ser feito com alguma qualidade.
Temos vaticinada uma escolaridade obrigatória até ao 12º ano, com tudo o que tal implica de ajustes curriculares, organização e gestão dos estabelecimentos de ensino; e uma definição de jovem que, devido a um papel social tantas vezes adstrito à sobrevivência das famílias mais carenciadas (enquanto mão-de-obra, tanto nos meios rurais como nos urbanos), não comporta a situação de estudante.
Muitos professores do Ensino Secundário, quando reflectem sobre esta hipótese de escolaridade tão cara a Sócrates e a Maria de Lurdes Rodrigues, aventam desde logo o fim dos exames e a passagem total da responsabilidade da selecção de estudantes para as instituições do Ensino Superior. Parecerá razoável, considerando a separação organizacional e administrativa entre os dois níveis de ensino. Por seu lado, alguns docentes do Ensino Superior, não sendo especialistas em educação, consideram-se detentores de saber e de poder e dão lições sobre o que deveria ser ou não o Ensino Secundário (e todos os outros níveis). Não deixa de ser motivo de apreensão, tendo em conta o futuro do país, que docentes do Secundário e do Superior se virem as costas e “lavem daí as suas mãos”.
Se seguirmos os vários degraus (subindo ou descendo), encontraremos o mesmo quid pro quona chegada ao 10º ano, no Secundário. Índices de insucesso elevados e abandono, devido não só a razões sociais que já antes apontei, mas também porque alunos, docentes e programas andam cada um pelo seu caminho o mais tortuoso possível.
Na passagem do 2º para o 3º Ciclo, surge de imediato o mesmo problema; há um enorme desfasamento, sobretudo quando o 3º Ciclo funciona numa escola secundária. Os índices de níveis negativos são por vezes assustadores no 7º ano, possivelmente por razões como a desadaptação a uma nova escola, o desconhecimento pelos docentes dos padrões de avaliação usados anteriormente e ainda o facto de nem sempre serem os melhores alunos os que são enviados pelas EB2,3 para as 3CEB/Secundário; continuamos, a nível nacional, sem saber a quem pertence e, mais do que isso, o que é o 3º Ciclo. E tudo isto tem impacto na vida dos jovens estudantes.
Entre o 1º Ciclo e o 2º, aqui d’el-rei!, que os meninos têm é que saber ler, escrever e contar (onde é que já ouvimos isto?); e mesmo que concordemos com esta asserção, retirar-lhe-emos, obrigatoriamente, o valor de realce da partícula “é que”, porque os meninos têm é que saber ler o mundo em que vivem, escrever para expressarem os seus pensamentos e emoções e contar para poderem exercitar a mente ecalcular o futuro. Portanto, carecem também de ler uma pintura, uma paisagem urbana, uma composição musical, uma cenografia de ballett, ou até os olhos, a alma e o amor do parceiro com quem convivem quotidianamente. Sobretudo, necessitam de sentir.
O maior risco que corremos com certa cultura cada vez mais vigente na sociedade, e em certos meios académicos, é o de os professores do 1º Ciclo se transformarem em docentes de Língua Portuguesa e de Matemática – e um nadinha de Estudo do Meio –, abandonando tudo o que tem a ver com a expressividade (Música, Movimento, Drama, Plástica, etc.) e reduzindo mesmo a Língua Portuguesa a uma vertente meramente funcional. E, mais perigoso ainda, desprezando qualquer perspectiva interdisciplinar, qualquer ideia de integração de conhecimentos.
Sendo as expressões “entregues” aos docentes das actividades de enriquecimento curricular (AEC), convinha que os professores titulares de turma não se esquecessem que se estas actividades são de enriquecimento, têm que desenvolver alguma coisa que eles fazem no tempo lectivo – porque nem todos os alunos são obrigados a frequentar as AEC, mas todos têm o direito de concluir o 1º Ciclo com uma formação integrada e geral que abarque várias áreas e disciplinas; e essa responsabilidade é do professor do 1º Ciclo, que, com a sua formação, tem saber e poder para isso.
O mesmo quebra-cabeças existe entre a Pré-Escolar e o 1º Ciclo – muitos querem uma “pré-primária” que ensine contas e leitura aos meninos “a sério” e não a brincar; e que não se permitam muitos tempos de pândega às crianças, porque “lúdico” deve ser uma espécie de divertimento com tudo sempre muito organizado, muito espartilhado, muito controlado.
Será de chamar a atenção para o esforço que alguns agrupamentos de escolas (uma realidade surgida neste século em Portugal) têm feito no sentido de articularem verticalmente metas de aprendizagem nas suas valências, desde a Pré-Escolar até ao 9º ano. É de uma riqueza enorme a conjugação dos vários e diferentes saberes dos docentes de cada nível de ensino; embora ainda possa surgir em alguns a ideia de que o “seu” conhecimento é “superior” ao dos outros, cedo vão percebendo que há saberes, know-how e culturas próprias, que não são transportáveis de uns níveis para os outros, mas são ajustáveis, negociáveis, passíveis de serem enriquecidos. Não poderemos evoluir se não tivermos uma Escola em que os docentes tenham uma relativa, mas real, autonomia pedagógica e a possibilidade de investirem criteriosamente em novas estratégias actualizadas e motivadoras do interesse dos jovens; se os tempos necessários às articulações vertical e horizontal não forem inseridos no horário regular de trabalho dos professores; e se não se reconhecer que todos têm um saber e um poder que devem utilizar a favor e não contra os outros.
Enquanto não formos um grupo profissional cada vez mais coeso e tivermos o atrevimento de falar do trabalho dos nossos colegas de forma precipitada e fora dos espaços apropriados, continuaremos a contribuir para que engenheiros, jornalistas, escritores, actores, políticos, e outros que tais possam dizer o que lhes apetecer sobre a Escola, sem perceberem nada: nem da prática, nem da teoria.
Pecados e tentações de que não precisamos nada no Ensino e nos impedem de ver que o Saber que temos em conjunto nos dará um Poder que vale a pena.

José Rafael Tormenta


  
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