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Na escola há literatura a mais... Desculpe?

A literatura em estado cru está de volta. É possível que durante as últimas décadas estivéssemos convencidos do contrário. Uma certa crueza literária não deve, no entanto, confundir-se com as escritas de grau zero. A neutralidade na escrita, na qual Roland Barthes viu uma busca de “inocência” imune à linguagem literária, propriamente dita, define-se pela ausência ideal do estilo, da forma, do refúgio. É sóbria como uma equação, às vezes acre. Mas sempre supôs uma problemática da linguagem e do social, uma responsabilidade motivada, sobretudo, pela ordem do pensamento e não tanto por convenções de cunho literário, de que a metáfora é um entre outros exemplos.
Quando durante os anos sessenta do passado século se fez mais um anúncio apocalíptico da literatura, esgotada, aparentemente, nas suas convenções artísticas e dominada pela ideia da morte do autor, apelava-se, porém, à necessidade de pensar o literário, e em particular o romance, acima da discussão entre realismo e irrealismo, conteúdo e ficção, génese e forma. Numa palavra, acima de qualquer dicotomia. Ainda assim, tratava-se de uma problemática da linguagem, de revitalizar o literário.
Experimentar escritas, mesmo quando parecem surgir de uma árvore sem história, implica um grau neutro de relação com a linguagem, o que é diferente de dizer que essa relação simplesmente não existe. Muito pelo contrário, a obra literária que é uma obra de arte verbal, como diria Todorov, constrói-se na mediação entre os patrimónios linguístico e semiótico de uma cultura, e através dela subvertem-se convenções e instauram-se novas propriedades discursivas relativamente à linguagem.
Zero é, portanto, diferente de cru, porque o primeiro indica a negação das convenções (e por isso, ele é a antecipação de coisas novas e vivas), enquanto o segundo, prisioneiro da sua norma, vive impassível numa impessoalidade só. Foi por isso que, há dias, numa sessão pública onde se discutia o papel da metáfora na compreensão do texto literário, tive pena ao ouvir que “na escola há literatura a mais”.
A aspereza com que nos fomos habituando a interpretar o que ouvimos, levou-me a recear o que na altura senti. Defender a ideia de que “na escola há literatura a mais” surge, contudo, num contexto de investigação onde a descrição formal dos elementos linguísticos é, para os alunos, mais importante do que o sentido que eles têm num texto de natureza literária. E, todavia, naquele ou noutro contexto, certamente ninguém duvida de que ensinar literatura na escola é importante. A diferença de posições deve-se antes à ideia de literatura e à sua realidade enquanto recurso educativo.
Tive pena ainda de não ter ouvido as palavras de Proust, hoje tantas vezes citado, para quem a metáfora, vista como uma “metamorfose das coisas representadas”, corresponde a uma noção que vai além do nome que se dá às coisas; é em si uma inteligência que se deixa atingir por outros sistemas de signos.
Como forma de pensamento e inteligência, a literatura não está a mais na escola, mas isto não significa que os alunos, globalmente, não saibam ler e usar a linguagem em termos conceptuais e criativos, e em especial a metáfora na compreensão de um texto literário. Saber usar a linguagem, expressão de cujo sentido tanto nos chegam as crenças na literacia como a desconfiança relativamente ao seu domínio, exige saber usar o pensamento, algo que, segundo aquela afirmação, há a mais na escola.
É difícil que algum dia a literatura na escola venha a ter um consenso. O valor de um texto não pode ser medido, apenas, pelo trabalho que custou a ser escrito. Lê-lo, muito menos.

Paulo Nogueira


  
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