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O ensino público deve ser o eixo vertebrador do sistema educativo

Inegável que se torna hoje a estreita ligação entre os processos educacionais e os processos sociais de reprodução mais abrangentes, isto é, reconhecida a condição de concorrência e simultânea complementaridade do campo escolar e do campo económico “comprometidos ambos com circuitos de trocas cada vez mais eficazes simbolicamente” (Bour dieu), a reestruturação capitalista, imposta a ferro e fogo nalguns países e a golpes de mercado noutros, vem produzindo um modelo de acumulação que já não precisa de massas trabalhadoras qualificadas, mas de uma pequena elite de especialistas e de uma massa de trabalhadores flexíveis, descartáveis e intercambiáveis com o espectro do desemprego como espada de Dâmocles. A escola inclusiva deixa, então, de ser funcional para o actual modelo económico. Como consequência desta disfuncionalidade, sobreveio uma crise de sentido que atravessa todo o dispositivo escolar (Maldonado).
As políticas de descentralização e de desconcentração, retirando progressivamente a tutela do Estado, vão no sentido de um reescalonamento que dilui as formas de desinvestimento na Educação, com tal eficácia que nem damos pela influência da Organização Mundial do Comércio na sua reconfiguração. Sobretudo a partir de 1994, evidencia-se um fortíssimo movimento consertado de mercantilização da Educação. É assim que ela está a ser reconfigurada, mas nós continuamos a olhar para ela só através do centro que era o Estado-Nação. De mansinho, a lógica de uma “exclusão disciplinada” vem, vigorosamente, impondo-se. Reconvertido o discurso à escala deste centro, a linguagem eufemística é a cortina de nevoeiro em que se dilui a realidade violenta, como a fome que se está sub-repticiamente instalando, afectando já não só os visivelmente excluídos, começa a sentar-se nas cadeiras das nossas salas de aula, onde a indisposição de alguns alunos, sem eufemismos, quer dizer fome.
O retorno da fome ao Portugal Europeu do Tratado de Lisboa, onde não se fala de pormenores sem importância, como o da exploração de mão-de-obra infantil em zonas industriais, em que, no recato da habitação, se cosem sapatos, pagos a 5 cêntimos a gáspea. Mobilizado o alento roubado ao tempo de brincar ou de fazer os deveres encomendados a todos, no alheamento de alguns (que fazer?), ao fim de coser 10 sapatos...
Apesar da crise de sentido que a atravessa, não se lhe reconhecendo alternativa, a Educação escolar é entendida como um direito universal e um bem público, instituída em ferramenta imprescindível na formação emancipatória e na potenciação de convivência cidadã. E é, por isso, uma responsabilidade colectiva que a Administração tem o dever de garantir em condições de qualidade e de igualdade. Daí ser imprescindível que o ensino público seja o eixo vertebrador de todo o sistema educativo e que conte com o necessário prestígio social para se converter na concepção maioritária, capaz de afrontar estratégias privatizadoras e de inculcação de lógicas de mercadorização que se processam no seu próprio interior, desencadeando, no seu seio, mecanismos eficazes de fragmentação social. Afinal, o que define o carácter público de uma instituição é a sua subtracção às leis da oferta e da procura.
Se vivemos no país da Europa onde as desigualdades sociais têm maior expressão e a pobreza atinge os níveis que são conhecidos, algo diferente do que fazemos deverá ser feito – e a Universidade, e a investigação e formação que dentro dela se fazem, não pode a isto ficar imune – para que as escolas públicas, sobretudo ao nível da Educação Básica, não sejam recipientes onde se guarda o descartável, o excedente, mas construtoras de sujeitos que, tomando a palavra, nela se revejam na luta por um outro tempo, que este é de muito sofrimento.
Interrogando os próprios movimentos anti-sistémicos, Wallerstein alerta para que, enquanto eles permanecerem na ambivalência sobre a orientação ideológica do sistema mundial, enquanto estiverem inseguros quanto à forma de responder ao sonho liberal, podemos dizer que não estão em posição de travar uma guerra contra as forças que defendem a desigualdade no mundo.

Rosa Soares Nunes


  
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