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Para além da homofobia ou porque não se deve referendar a discriminação

Nos últimos meses, temos assistido a uma intensa discussão pública a propósito do casamento entre pessoas do mesmo sexo, dando origem às mais diversas expressões de acordo e desacordo: debates, abaixo-assinados, crónicas de opinião, cartas-abertas, manifestações...
Neste processo, as posições que defendem a indesejabilidade de estender o estatuto jurídico do casamento a pessoas do mesmo sexo têm apelado à realização de um referendo. Os argumentos predominantes tendem a salientar duas ideias: embora ninguém esteja contra os homossexuais, esta extensão de direitos atenta contra a figura do casamento e questiona o lugar da Família como pilar da sociedade, ou é desnecessária e artificial, porque não aborda um problema real, que se coloca apenas a um grupo minoritário.
Assim, o que há a fazer é ouvir as famílias. Desta linha de argumentação podem inferir-se várias coisas. Para os objectores:

a) é possível estar “contra” ou a “favor” da homossexualidade;

b) os direitos de minorias não devem ser objecto de preocupação dos legisladores;

c) o casamento entre pessoas de sexo diferente “desvaloriza-se” com a extensão desse direito a pessoas do mesmo sexo (veja-se a excelente crónica de Laura Ferreira dos Santos, no «Público»);

d) a “família” é uma entidade de definição fixa (pai, mãe, filhos) e um exclusivo dos heterossexuais – e, poderíamos acrescentar, dos heterossexuais casados e que decidem (ou podem decidir) ter filhos.

Faço uma clarificação. Dou aulas sobre desenvolvimento psicológico de jovens e adultos desde o final da década de 80 do século passado. Por esses dias, era relativamente rara a discussão pública sobre a homossexualidade e, por isso, era essencial trazer a questão para análise nas aulas, apresentando a homossexualidade como uma forma “normal” de expressão amorosa – em linha com o que ia acontecendo internacionalmente na investigação e clínica da Psicologia e da Psiquiatria – e discutindo as implicações devastadoras de atitudes discriminatórias dos profissionais de educação e de psicologia. Nesse sentido, defendia a importância de perspectivas afirmativas que contrariassem o discurso social dominante, profundamente negativo e estereotipado, sobre os homossexuais.
Também por esses dias, costumava citar o argumento de Quentin Crisp de que, enquanto não fosse um tema completamente maçador e banal, a homossexualidade não seria verdadeiramente aceite.
Desse ponto de vista, poderia dizer que esta discussão pública intensa é um bom sinal. Contrariamente ao passado, a homossexualidade tem estado amplamente presente no espaço público – muito por mérito das várias associações de defesa dos direitos de pessoas gays, lésbicas, bissexuais e trangénero, mas também de representantes dos partidos políticos e da sociedade civil –, o que certamente contribui para a difusão de visões que não só legitimam como valorizam a diversidade da expressão do amor.
No entanto, e infelizmente, os acontecimentos recentes revelam também que a intensa discriminação da homossexualidade não é coisa do passado, mas está profundamente enraizada na sociedade portuguesa. É, aliás, por isso que os argumentos homofóbicos que referimos começam por enunciar que não são contra os homossexuais – como se, moralmente, alguém tivesse legitimidade para ser “contra” outras pessoas. E como se não fosse porque “confiam” no preconceito que querem, agora, ouvir as famílias – como se a extensão de direitos a grupos discriminados tivesse condições (objectivas ou subjectivas, agora ou no passado) para ser objecto de referendo.
A questão que se deve colocar é: se estamos perante um grupo de pessoas fortemente discriminado numa sociedade, há condições para referendar o seu direito a existirem de forma visível nessa sociedade? Onde estariam as conquistas, hoje por todos nós valorizadas, dos movimentos de extensão de direitos civis em função do género ou da raça se, na altura, tivessem sido objecto de referendo? Creio que todos sabemos a resposta – nem sempre a posição maioritária é moralmente certa, especialmente quando assenta no preconceito e no desejo de negação do outro.
Volto a Quentin Crisp: quando a homossexualidade for completamente banal, quando a ninguém ocorrer se se pode “ser contra”, contestando os direitos de existência a pessoas em função da sua orientação sexual, então talvez sejamos capazes de apreciar genuinamente um mundo onde o amor se expressa de muitas e diversas formas.

P.S. Não tive ocasião de expressar publicamente o meu profundo respeito pelo José Paulo Serralheiro, responsável primeiro por este espaço de debate e análise e que generosamente me convidou para aqui ir escrevendo. Do mesmo modo, gostaria de igualmente reconhecer o trabalho da equipa que mantém vivo este seu projecto, prestando-lhe a homenagem que certamente mais aprovaria. 

Isabel Menezes


  
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