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Cachinhos e funk de Lelê: processos identitários na Educação Infantil

Na história da Carochinha, Rapunzel, a dos cabelos amarelos, foi presa pela bruxa em uma torre. Um príncipe que cavalgava por ali viu suas lindas madeixas e pediu que lhe jogasse as tranças para ele subir até o claustro. Ao chegar lá, pediu-a logo em casamento. Bom, para encurtar a história, a bruxa, ao descobrir as visitas da moça, cortou seus cabelos e lançou um feitiço no rapaz. Dizem as más línguas que um espinho o cegou, mas como toda boa história encantada, tudo termina com “e foram felizes para sempre”.
Assim contava minha avó, de cabelo preto de henê – produto para alisamento de cabelos crespos, de preço acessível e bastante utilizado no Brasil. Arrumava o meu, puxando sem dó, embaraçado, difícil de assentar. Enquanto me penteava cantava um sucesso de época que dizia que a nega era do cabelo duro não gostava de pentear, de pixaim, ruim que “jeito não tem, jeito não dá” [trecho do livro «O Cabelo de Lelê»: Valéria Belém, CEN, 2007].
Assunto complexo é esse de cabelo, principalmente o cabelo crespo, característico das populações afro-brasileiras, que ao longo do tempo foi recebendo diferentes denominações na maioria das vezes pejorativas. Termos que, dizendo respeito ao tipo de cabelo, afetavam diretamente os processos identitários e serviram como golpe na auto-estima dos donos e das donas dos cabelos.
Tenho claro que falar de cabelo na escola brasileira é falar de seleção de imagens na escola, de processos identitários, de negação, de racismo.
Na escola onde atuo existe um painel na entrada com a personagem Branca de Neve que todo ano é retocado. Ali, no bairro de Acari, no Rio de Janeiro, nessa escola onde a maioria das crianças é negra ou mestiça, observava-se a valorização do padrão de beleza da mulher branca de cabelos lisos. Este modelo foi disseminado, invisibilizando todas as outras belezas e as outras estéticas diversas, características do Brasil.
Na intenção de redefinir nesse espaço os padrões de beleza e discutir com as crianças da Educação Infantil e suas professoras uma presença estética afro-brasileira positiva, resolvemos trabalhar com o livro infantil «O Cabelo de Lelê», no qual uma criança negra vive a dificuldade em aceitar o seu cabelo crespo até encontrar um livro com penteados afro.
A leitura e dramatização da história deu origem a um vídeo de animação e a um CD áudio elaborado com as crianças na intenção de fazer circular as histórias e narrativas de heróis e protagonistas negros(as).
Uma proposta metodológica na qual entendo que há três frentes: por um lado compreende os cotidianos das escolas como espaço-tempo de criação; propõe, ainda, uma forma de uso e consumo/produção/apropriação das tecnologias de informação e de comunicação pelos “praticantes comuns” [Certeau, M.: «A Invenção do Cotidiano – Artes de Fazer», Petrópolis, 1994] – neste caso, as educadoras e as crianças da Educação infantil. Por último, experimenta o diálogo da literatura infantil com outras linguagens e práticas.
Para o CD áudio «Funk de Lelê», uma mixagem feita a partir das frases do livro com as idéias e as vozes das crianças, criou-se um hit de música funk:

De onde vêm tantos cachinhos?
Vento, vento, vento.
Os cachinhos, os cachinhos (...)
Descubra a beleza de ser como é!
Essa aqui agita!?
Os cachinhos, os cachinhos (...)

Hoje o painel da Branca de Neve divide o espaço com uma reprodução de Lelê, reforçando uma imagem positiva da criança negra. Os cachinhos dos estudantes da Educação Infantil se fazem representar logo na entrada da escola. E isso é muito bom, diria a minha avó.

Cláudia Queiroz


  
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