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Portugal, país de artistas

“Bruxelas, 14 Out (Lusa) - Portugal é o país da União Europeia que mais horas dedica à educação artística no primeiro ciclo do ensino básico, revela um estudo apresentado hoje em Bruxelas pela Comissão Europeia”.

De vir às lágrimas! Quase 30 anos de carreira docente em todos os níveis de ensino, a lutar freneticamente – no quotidiano das escolas, na formação de professores inicial e contínua e em projectos de investigação – pela presença e pelo valor das artes no ensino regular e, de repente, a Comissão Europeia descobre, em Bruxelas (a quilómetros de distância!), que dedicamos mais tempo do que os nossos parceiros da Comunidade à Educação Artística no 1º Ciclo do Ensino Básico. O estudo refere-se ao ano lectivo de 2007-2008 e revela que, muito à frente de países como a França ou a Alemanha, dedicamos 165 horas por ano de educação artística às nossas crianças das 1ª, 2ª, 3ª e 4ª classes, o que dá umas 5h por semana…
Os mais atentos a estas temáticas lembrar-se-ão desse Fevereiro de 2006, quando o Governo de então anunciou que a Expressão Artística passaria a fazer parte das “matérias” dos alunos daquele ciclo, em horário de “prolongamento” escolar, sendo leccionada por elementos de “instituições profissionais locais”. Tratava-se de um investimento comum das tutelas de Lurdes Rodrigues e de Isabel Pires de Lima. Educação e Cultura uniam-se para “consolidar o que está definido na reforma do ensino básico (…) à semelhança do que foi feito com o Inglês”, afirmava a ministra da Educação, na Conferência Mundial sobre o Ensino Artístico (Casa da Música, Porto).
No ano seguinte (2006-2007), iniciou-se a generalização. A ministra da Educação desafiara as escolas profissionais artísticas para este trabalho a nível local – a Academia de Música de Espinho, não por acaso, já o fazia há mais de 15 anos – e a ministra da Cultura propunha-se realizar, com 70 câmaras, mais de 2.000 ateliês nas escolas. E lá se foi avançando. Havia um projecto em curso na Madeira, há mais de 25 anos, mas ninguém o terá avaliado, a nível da tutela.
Também ninguém disse que, em muitos casos, mais do que um programa de ensino artístico, talvez tenhamos tido uma solução de prolongamento do tempo escolar. Ninguém explicitou aprofundadamente que habilitações (científicas e pedagógicas) tinham esses monitores das instituições profissionais locais, nem se eles existiam em número suficiente em cada autarquia. Ninguém assumiu muito abertamente que muitos desses profissionais eram pagos à hora por um valor inferior ao que ganham as empregadas de limpeza – que, tendo um trabalho árduo, não têm a responsabilidade de quase 30 crianças para... guardar, pelo menos – e que, como diz o povo, tal dinheirinho, tal trabalhinho, isto é, por muito jovem que se seja, cheio de energia, chega sempre um dia em que não nos sentimos assim com tanta vontade de permanecer e desenvolver um trabalho óptimo se somos tão mal pagos. Ninguém falou de como estes tempos são “prolongamentos” no sentido em que estão para além do tempo “escolar” por excelência, onde reinam outras “matérias” consideradas mais “importantes” por alguns, como se a educação de uma criança não devesse abarcar todos os tipos de conhecimento, todas as experiências de vida, de forma integrada. Ninguém contou como os professores do 1º Ciclo foram pouco ou nada motivados para estarem envolvidos nestas experiências constituídas praticamente “extra-escola”.
Seja no ensino regular, seja até no ensino especializado, não se pode partir do princípio redutor de que as artes são só para quem quer ser músico, actor, pintor, bailarino ou tantas outras formas híbridas que hoje vão surgindo, felizmente. O contacto com as expressões artísticas e a Educação Artística devem fazer parte do quotidiano das escolas. Só uma equipa ministerial desconhecedora dos processos de ensino/aprendizagem poderia estabelecer uma tabela com 8 horas para Língua Portuguesa, 7 para Matemática, 5 para Estudo do Meio (metade para as Ciências Experimentais) e as restantes 5 horas para as Expressões ou – sublinhe-se – para reforço das áreas anteriores.
Se o conhecimento humano pudesse espartilhar-se, hoje os nossos investigadores já não falariam Português, não saberiam fazer contas e seriam incapazes de dar um pé de dança numa discoteca ou num baile de S. João. Em verdade, para qualquer área de conhecimento concorrem todas as outras, mesmo aquelas de cuja existência em nós, eventualmente, não tenhamos consciência.
Expressão Plástica e Educação Visual, Expressão e Educação Musical, Expressão Dramática/Teatro e Expressão Físico-Motora/Dança são quatro áreas artísticas que deveriam atravessar com eficácia e com qualidade todo o Ensino Básico. Mas basta olhar para os planos curriculares do nosso país para se perceber que a quantidade pode parecer elevada, mas não o é: a maior parte dos alunos continua sem saber Música, poucos têm contacto com o Teatro ou a Dança e mesmo a Educação Visual tem “perdido” um espaço que já teve.
As expressões artísticas no ensino regular têm como função contribuir para o desenvolvimento integral do indivíduo enquanto cidadão do Mundo. Compete à Escola Pública proporcionar a democratização do ensino de todas as áreas de conhecimento e de desenvolvimento, fornecendo aos mais carenciados os meios apropriados que lhes garantam maior facilidade em atingir objectivos propostos. A questão específica do Ensino Especializado é outra; mas ele deverá contar também com a função própria do Ensino Regular, na Escola Pública, que deverá possibilitar o desabrochar de qualquer aluno-cidadão, eventualmente numa área artística; ou seja, as escolas especializadas não devem restringir-se à frequência de alunos oriundos de famílias com determinados níveis culturais.
O que parece digno de preencher um parágrafo conclusivo é, juntando o que atrás ficou dito, afirmar que a quantidade não é, de modo algum, garantia de qualidade. Sem qualquer desapreço por tanta gente e por tantos docentes que tanto têm feito pelo ensino artístico em Portugal.

José Rafael Tormenta


  
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