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As escolas públicas como heterotopias

Perpassa pelas nossas escolas um espectro de permanente heterotopia de crise, porque os agentes estudantis habitam essa mesma crise como um modo de vida. Se, outrora, como refere Foucault, aos indivíduos em estado de crise eram reservados lugares específicos e com uma particular codificação e simbologia, hoje, preferencialmente, serão as escolas a desempenhar tal função.

Michel Foucault estabelece uma distinção extraordinariamente heurística entre as utopias, espaços sem a possibilidade de um lugar real, e as heterotopias, lugares que estão fora de todos os lugares, mas que têm uma localização física e que funcionam, amiúde, como representação, contestação e inversão dos espaços hegemónicos; “espécie de utopias efectivamente realizadas”, “contra-colocações” [“contre-emplacements”] nas quais “todas as outras colocações que se podem encontrar no interior da cultura estão simultaneamente representadas, contestadas e invertidas, espécie de lugares que estão fora de todos os lugares, ainda que sejam efectivamente localizáveis” (Foucault, 1995: 755-756).
Impossível deixar de pensar, desde logo, nas artes pictóricas emergentes e ou marginais, como os graffitis, que invadem as superfícies dos muros e paredes interiores e exteriores da escola, com ironia, paródia, condescendência ou insurgência, nos casos em que assumem uma intencionalidade mais ou menos explícita de humor anti-institucional. Outras vezes, contra o anonimato, desenham-se indecifráveis assinaturas – para quem não as consegue ler… – de uma existência que, doravante, inscrita na paisagem, transformada em paisagem, não mais permanecerá anónima e anódina. Outras formas, ainda, lançam pontes, agonísticas ou cooperativas entre grupos e estilos de apresentação de si, celebrando ícones e mitos. Nas cadeiras, nas mesas das salas de aula e nas paredes dos quartos de banho, multiplicam-se explosões de uma sexualidade ora predatória e machista, ora experimental e hedonista, ora neo-romântica e devedora das virtudes de um amor cortês après la lettre.
Mas existem, igualmente, em numerosos exemplos, delimitações territoriais assinaladas nas paredes por inscrições que estabelecem fronteiras. Tais fronteiras, apesar de não terem existência física, possuem um real valor simbólico baseado no reconhecimento generalizado que lhes confere legitimidade. Não são, por isso, irreais. Só as atravessa quem possui um forte capital subcultural que transporta consigo o santo e a senha da passagem. Tal capital herda-se ou conquista. As fronteiras não são irreversíveis e mantêm uma certa porosidade. Tal como na análise das heterotopias efectuada por Foucault, ganha sentido um duplo sistema de abertura e fechamento, propício a determinados trânsitos.
De certa forma, os estudantes liceais estão em permanente passagem – da infância para a vida adulta, do estudo para o trabalho, dentro do lazer, marcado por consumos omnívoros, ecléticos e cumulativos, de sub género para sub género e na própria escola, transitando entre as regras formais da instituição, respeitadas apenas nas dimensões instrumentais da meritocracia gerencialista – elaborando, em cálculo de minuciosa estratégia, planos de estudo que lhes permitem obter, potencialmente, a média almejada para entrar no curso y da fileira x na Universidade z ou, então, assumindo a desistência do projecto escolar e vivendo o dia-a-dia na escola como uma margem precocemente interiorizada, uma etapa já precária de um percurso que se adivinha errático, intermitente e instável.
Não será jamais exagerado afirmar, assim o creio, que os estudantes são mesmo os prisioneiros dessa passagem, agentes em trânsito, híbridos sociais. Os vários espaços e fronteiras existentes nas escolas transmitem, precisamente, as várias ordens da interacção e a multiplicidade conflitual dos modos de relação com a instituição, quebrando o monopólio das instâncias clássicas de autoridade e manutenção da ordem.
Perpassa pelas nossas escolas um espectro de permanente heterotopia de crise, porque os agentes estudantis habitam essa mesma crise como um modo de vida. Se, outrora, como refere Foucault, aos indivíduos em estado de crise eram reservados lugares específicos e com uma particular codificação e simbologia, hoje, preferencialmente, serão as escolas a desempenhar tal função.

João Teixeira Lopes

  • FOUCAULT, Michel, «Des espaces autres» in Dits et Écrits (1954-1988). Paris : Éditions Gallimard

  
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