Página  >  Opinião  >  Obrigado!... Ó palerma!

Obrigado!... Ó palerma!

Foi nessa altura que dois alunos lhe  abriram a porta e ele passou, sem olhar ninguém, sempre em frente, queixo bem levantado e passos firmes em direcção à sala de professores. Atrás de si ouviu então: “obrigado!”. Por alguns segundos hesitou, ia olhar, dizer obrigado. Mas fiel aos seus princípios seguiu em frente, costas bem direitas, ignorando aquela interpelação... E então ouviu: “obrigado, ó palerma!”

Ele estava visivelmente zangado e aborrecido, diria mesmo furioso. Tinha começado a dar aulas nesse ano naquela escola. Já lhe tinham dito como a escola era difícil, afamada por estórias que passavam de boca em boca e, segundo constava, até iria começar o novo ano lectivo como um TEIP, fosse lá o que isso fosse, mas até não deixava de ser um mau sinal. Ele sabia que seria uma escola complicada e preparara-se antes, pronto a enfrentar as maiores dificuldades.

As aulas começaram e de facto não era fácil captar a atenção daqueles adolescentes e, quando captada, conseguir que ela se mantivesse algum tempo. Era difícil e cansativo mas nada de muito especial. Nada que merecesse a atenção de um filme por telemóvel colocado no you-tube, nada que desse origem a grandes conversas, nada que não pudesse ser gerido na íntima solidão da sala de aula, entre ele e os alunos.
Sobretudo nunca houvera nada que o fizesse sentir-se humilhado mesmo quando sentia que o seu trabalho não atingia grandes resultados. Mas ele estava ali para ensinar, era o que fazia, e eles que aprendessem. A sua autoridade nunca tinha sido posta de tal modo em causa que não pudesse continuar solidamente em frente. Aliás, seguir determinadamente em frente, ignorar os protestos e alguns ditos desagradáveis, mostrar a sua firmeza e determinação, tinha sido sempre o seu lema. Os colegas tinham-no avisado: nada de fraquezas nem familiaridades, dar-se ao respeito, não mostrar nunca os dentes, olhar sempre em frente, ignorar o que eles faziam quando cruzava os corredores, mostrar a distância que havia entre ele, professor, e eles, os alunos, marcar posição.
E ele tinha seguido este conselho e não se tinha dado mal. Apesar de um certo sentimento de insegurança que o atacava quando as portas das salas se abriam e ele atravessava os corredores, pululantes de adolescentes barulhentos, movimentando-se de forma tão rápida e de destino imprevisível, correndo, gritando, ignorando toda a gente enquanto se dirigiam numa direcção e objectivo incompreensíveis, agitando objectos e rindo ou gritando até ensurdecer. Mas mesmo nestes momentos, que eram mais ou menos intensos conforme as horas do dia, ele tinha-se mantido firme nos seus propósitos e parecia que tudo corria bem. Parecia-lhe que a melhor estratégia era mesmo ignorar aqueles redemoinhos de adolescentes como quem ignora os remoinhos do vento e segue em frente quando atravessa a rua num temporal.
Até que lhe tinha sucedido aquilo hoje!... Aquilo tinha sucedido mesmo no meio de um grupinho de que ele tinha uma má impressão, onde ainda por cima estavam também alguns alunos seus, e pior ainda, próximo de duas colegas que se cruzaram com ele!
Nunca se sentira tão vexado, sobretudo porque ouvira, ouvira e não pudera ignorar que aquilo era com ele e que, mesmo mostrando-se indiferente, seguindo em frente e entrando na sala de professores, seu refúgio, atrás de si ficariam a vibrar aquelas palavras e as gargalhadas que se lhe seguiram.
Ele seguia pelo corredor, lugar de passagem de alunos e professores, com uma porta a meio, e junto à qual alguns alunos se juntavam em grupo, esperando o próximo toque de campainha. Ao aproximar-se da porta, com as mãos ocupados com uma pasta e papéis, pensou que ia ter que a abrir empurrando-a com o ombro. Foi nessa altura que dois alunos, lha abriram e ele passou, sem olhar ninguém, sempre em frente, queixo bem levantado e passos firmes em direcção à sala de professores.
Atrás de si ouviu então: “obrigado!”. Por alguns segundos hesitou, ia olhar, dizer obrigado. Mas fiel aos seus princípios seguiu em frente, costas bem direitas, ignorando aquela interpelação a que, obviamente não deveria reagir. E então ouviu “obrigado, ó palerma!” e ainda “ó palerma”!
E aquele “obrigado, ó palerma!” ficara a ressoar nos ouvidos, num ressoar que se prolongou pelo corredor fora, fazendo estremecer os duros alicerces da sua firmeza desenhada em passadas determinadas e queixo levantado.
Como ele estava furioso!

Angelina Carvalho


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo