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Entre o rigor e o desvio

A investigação tornou-se de facto uma prioridade ao mesmo tempo que foi adquirindo uma maior visibilidade e compreensão quanto à sua importância junto do senso comum. Ao mesmo tempo, promoveu-se um conjunto de distorções no seu desenvolvimento institucional que urge corrigir.

Nos últimos anos, o país e muito particularmente o ensino superior têm assistido a um incremento da investigação a todos os títulos louvável e fundamental para um desenvolvimento sustentado da sociedade e muito concretamente da sua cultura e da sua economia. Os fundos comunitários permitiram-no, as universidades encontraram aí uma autêntica bóia de salvação para a sua penúria orçamental. A verdade é que a investigação se tornou de facto uma prioridade ao mesmo tempo que foi adquirindo uma maior visibilidade e compreensão quanto à sua importância junto do senso comum. Acontece, porém, que, ao mesmo tempo, se tem promovido um conjunto de distorções no seu desenvolvimento institucional que, em nossa opinião, urge corrigir.
Aqui fica o elenco de algumas delas na expectativa de que se proceda à sua correcção:

- Na avaliação de novas unidades de investigação, a preocupação com o rigor na definição e aplicação dos respectivos critérios, deixa apenas espaço à selecção e apoio de centros com elevados patamares de qualidade já implantada. Contudo, esta estratégia, aparentemente não susceptível de qualquer reparo, desde que se instale como uma via sem alternativas, pode, a prazo, condenar ao abandono e, portanto, à aniquilação pura e simples, projectos embrionários com potenciais de crescimento interessantes. Projectos estes muitas vezes protagonizados por grupos ou instituições que procuram vias inovadoras mas sem possibilidade de se agregarem com terceiros, ou por não serem por estes aceites exactamente com receio de, assim, passarem a suportar uma carga negativa perante quem os avalia e financia, ou apenas porque tal caminho não constitui, de facto, uma mais-valia nem para uns nem para outros.

- Em consonância com o que fica dito acima, na prática das avaliações de novas unidades verifica-se, com alguma frequência, uma tendência para se privilegiar uma apreciação retrospectiva – evidentemente mais segura – em lugar de uma visão prospectiva – com inegáveis riscos suplementares mas, com certeza, a única que poderá alicerçar uma imprescindível abertura à inovação. Claro que, quando estão em causa dinheiros públicos, estes riscos terão de ser calculados, mas não se confunda também prudência com recusa pura e simples da disponibilidade para incentivar o pioneirismo, uma disponibilidade que acarretaria necessariamente o recurso a uma monitorização acrescida destes projectos.

- Um outro aspecto a ter em conta é o risco de a organização epistemológica dos saberes tradicionais se transformar em exercício de controlo sobre emergências interdisciplinares olhadas como inusitadas ou tão-somente como arbitrárias por escaparem à jurisprudência dos tribunais canónicos da ciência. Um tal risco acentua-se no terreno das ciências sociais e humanas, mais inseguras e, por isso, sempre receosas de abrirem brechas que de algum modo justifiquem as desconfianças das chamadas ciências duras. Estas situações tendem a agravar-se quando os projectos em julgamento partem de objectivos ou problemas práticos cuja natureza não obedece naturalmente às lógicas disciplinares estritas.

- No momento da apresentação de projectos, a obediência aos paradigmas anglo-saxónicos impõe, por sua vez, uma compressão frequentemente incomportável da complexidade de conceitos e ideias que passam a ficar prisioneiros das amarras impostas por cifras de caracteres largamente arbitrárias, muito especialmente no campo das humanidades. Sabemos bem que, por razões pragmáticas e até de objectividade, importa travar os excessos retóricos abundantes nestes domínios. Mas não ignoramos que há igualmente limites de bom senso que convém não serem ultrapassados por parte de quem impõe as regras, sob pena de se inviabilizar a própria complexidade de muitos projectos, empobrecendo-se contraditoriamente a dinâmica dos processos de construção do conhecimento.

- Por último, coloca-se a questão da hegemonia da língua inglesa… Claro que o inglês é a língua de comunicação universal e que o é muito especialmente no seio das comunidades científicas. Mas importa também, sem dúvida, que a investigação financiada apoie decisivamente a afirmação do português como língua veicular entre as comunidades científicas constituídas ou a constituir nos países que o têm como sua língua materna ou oficial. O estímulo ao uso quase exclusivo da língua inglesa para a divulgação das produções científicas poderá vir a acarretar a destruição ou pelo menos a despromoção do português como meio de expressão e comunicação desse património cultural que é a ciência. O que seria inaceitável!

Qualquer um dos tópicos enunciados tem impactos profundos em quem investiga, no que investiga e no modo como o faz. Não se pode por isso perder mais tempo na correcção das políticas que, sendo aqui relevantes, podem determinar os êxitos e os fracassos.

Adalberto Dias de Carvalho


  
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