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Repensar Portugal através da África

Quaisquer que sejam os resultados práticos (se os houver) da Cimeira com a África, aprazada para o próximo mês de Dezembro, que Portugal inscreveu, a seguir à do Brasil, no programa da sua presidência da União Europeia, um mérito se reconhecerá na acção do Governo português: ter interrompido a pecha histórica, que depois dos Descobrimentos perseguiu os portugueses, de andarem no trilho dos outros. Foi assim no “aggiornamento” da religião, da política, da economia; foi assim na aceitação dos “ventos da mudança” e do direito à autodeterminação das suas colónias; foi assim no reconhecimento da independência do Brasil e de Angola; continua a ser assim até na caminhada para a implementação do Acordo Ortográfico entre os países de língua oficial portuguesa…

Mas os representantes de Portugal pensaram, finalmente, que é preciso – agora porque é urgente – “falar” com a África, superando o “apartheid planetário” (na expressão do jornalista e escritor angolano João Melo) em que se tem andado a “vender” multiculturalismos, ecumenismos e direitos à diferença como um remédio homeopático, quando muito paliativo, que se sabe não substituir as operações cirúrgicas indispensáveis.

Na Europa pode ser pacífico pensar, como fazia Vitorino Magalhães Godinho, num artigo publicado recentemente no Jornal de Letras, que ela “tem de ser diversidade, mas sobre a base de um humanismo universalizante e na intermediação do estado-nação”. Mas como neutralizar, senão vencer, os agentes do “apartheid” mundial (“apartheid” era o termo que os racistas sul-africanos empregavam para designar o eufémico “desenvolvimento separado”) que levantam muros e fronteiras em torno de povos , culturas e interesses hierarquizados, perante o que o Outro (o pobre, o analfabeto, o desempregado, o doente, o estrangeiro, o herético, o revoltado) só vale pelo que produz ou consome?

Na próxima cimeira, dificilmente os participantes farão autocríticas, em que uns reconheceriam que os males vêm de um passado de quinhentos anos de desprezo e exploração, e outros, de um presente de corrupção e nepotismo. Tarefa ingente será, pois, a de Portugal, face aos interesses que se entrechocam: os da Europa, em assegurar que, numa época de acerada competição entre os países mais desenvolvidos, não seja transferido para as novas potências emergentes, como a Índia e a China, o maná das antigas fontes de matérias-primas e polarizados os novos mercados que se oferecem numa África (mas só a “rica”…) subitamente endinheirada e gastadora; os da África, em defender-se do canto da sereia dos “mamutes” (como lhes chama Godinho) económicos e financeiros transnacionais, que usarão todos os meios para manterem o estado de contingência a que, desde o século XV, foram sujeitos os povos “descobertos”.

E tarefa difícil, também, porque são várias as Áfricas interlocutoras: as da margem do Mediterrâneo, nas quais a Europa espera ver levantadas barreiras à avalancha de imigrantes e engajados que resultam da pobreza e das guerras que grassam nos seus países; e as outras Áfricas todas, ricas, potencialmente ricas ou detentoras de espaços utilizáveis para biocombustíveis, por um lado ávidas dos produtos atractivos da Europa industrializada, por outro disponibilizando terras e mão-de-obra ou produtos naturais que a Europa e o Mundo consomem impondo preços e condições.

Na discussão dos interesses de todas as partes, Portugal, apesar da ambivalência política e histórica com que tem de contar, ocupa uma posição ímpar: não é, nem poderá ser, suspeito de pretender qualquer hegemonia política, económica ou militar – os seus desígnios imperiais terminaram em 1975; não tem sequelas coloniais por resolver; os seus laços com a CPLP não lhe permitem aspirar a ser uma Lusáfrica copiada da Françáfrica; as suas relações visíveis e mensuráveis com as antigas colónias justificarão a natural equidistância que terá de mostrar para se reabilitar de uma história de desprezo e exploração difícil de apagar enquanto houver memória de que a Cruz dos primeiros descobridores foi substituída pela Espada dos conquistadores que logo se lhes seguiram, já não vinculados à relação de confiança e amizade que Diogo Cão, na sua primeira viagem, em 1482, estabeleceu com o Manicongo, que até se fez cristão por acreditar na boa fé do homem branco ido de Portugal; e infundindo tal respeito que, perante ele, os marinheiros lusos tiravam o chapéu como faziam perante o rei de Portugal. Mas esta só foi a primeira página de uma história com mais quinhentas, estas já escritas sob os efeitos da febre do ouro, da prata e dos escravos que acometia também os outros “descobridores” que seguiram o rasto dos portugueses: espanhóis, holandeses, franceses, ingleses.

Como resultado da Cimeira, – imediatamente moral – Portugal poderá ver rcom ocom o Mundo – indo à África, ao Brasil, à Índia e à China antes dos outros europeus; “e se mais mundos houvera lá chegara”... E a África toda será sensível à boa fé de Portugal se for persuadida de que o antigo conquistador se reinventou na memória do primeiro contacto com o Manicongo e já não vê na África de hoje – nas palavras de Agostinho Neto – “um pedaço de carne onde cada um vem debicar o seu bocado”, podendo agora dizer, consciente de que os novos e melhores caminhos para África não são iguais aos de outrora, como o grande historiador africano Joseph Ki-Zerbo (Para quando África? ed. Campo das Letras, 2006): “A Europa continua a olhar-se principalmente ao espelho do século XIX. Reduz o itinerário de África às últimas décadas em que África foi colonizada e mal descolonizada. Para a Europa, enquanto não se resolver este mistério da dificuldade de sair de si, de escapar de si mesma, de ir ao encontro dos outros, de os conhecer e de os reconhecer, de os compreender e de adoptar um mínimo de alteridade, não se compreenderá e todo o mundo sofrerá com isso. (...)”

Leonel Cosme
Investigador, Porto


  
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