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A filosofia e o Homo Sapiens-Sapiens

Apontamentos para a Palestra perante os
Alunos de Biologia e Informática da Escola
Secundária Alberto Sampaio/Braga.

 

  • Definição clássico-tradicional da FILOSOFIA, ainda hoje válida e actual: “ A Ciência/Saber de todas as coisas, a partir das últimas causas, elaborada e balizada comparativamente à luz natural da Razão humana”.

    A definição moderna de Christian Wolff (na esteira de Leibniz), bem vistas as coisas, é convergente com esta: “ A Filosofia é a ciência de todas as coisas possíveis; e ela ensina como e por quê elas são possíveis” (1712). Esta definição é mais explícita e desenvolvida do que a que o próprio Autor veio a adoptar, na sua obra ‘Logica latina’, em 1728: ‘Philosophia est scientia possibilium, quatenus esse possunt’.

    Assim, quando os Escolásticos modievais concebiam e trabalhavam a Filosofia, considerando-a como ‘ancilla Theologiae’ (serva da Teologia), eles estavam a trair o es-pírito e o método da Filosofia. De igual modo, o imperador prussiano Frederico Guilher-me II, na 2ª metade do séc. XVIII, ele que se tomava como um homem ‘das Luzes’, atrai-çoava a Filosofia, quando pediu a I. Kant e a todos os filósofos da época, que obedeces-sem sempre que o Imperador lhes pedisse!...

  • Uma breve meditação sobre a noção de FILOSOFIA:

    • Entre o Ser e o Devir, não há, não pode haver, verdadeiros dilemas metafísicos; haverá apenas o fosso ou o abismo entre o real e a utopia/ucronia desejada. A razão disso é que vivemos no tempo, na mesma NAU do Universo, que sabemos mar-cado pelo Big-Bang original.
    • Quanto à Filosofia, Boécio (sécs. V-VI) dissertou sobre a Consolação da Filosofia.
    • Séneca (séc. I) encontrou nela o amparo para se suicidar às ordens tres-loucadas do Imperador Nero!...
    • A Filosofia não é, apenas (e em 1º lugar), um continente do Saber, uma Faculdade universitária com um conjunto de Disciplinas académicas. Antes, e acima de tudo, a Filosofia é (deve ser), sempre, uma espécie de ‘colete-salva vidas’, como aconte-ceu com Séneca e Boécio, entre tantos outros.
    • A acção humana, enquanto humana, deve ser norteada por conceitos e valores, por uma Ética e por uma Deontologia (em termos sócio-profissionais).
    • Vivemos em Sociedades, que se dizem democráticas, mas que se a-cham estruturalmente fascizadas, da cabeça aos pés!...
    • Onde estão os Indivíduos-Pessoas, capazes de pensar pela sua própria cabeça?! Pensar pela própria cabeça e agir segundo o que se entendeu melhor, consti-tuem, hoje, um comportamento irreverente e uma actuação arriscada!... O que vigora, por toda a parte, é a teoria do Rebanho humano. Resignadas, ou revoltadas, interiormente, as pessoas fazem, em geral o que lhes mandam!...
    • Por que escolhemos, para tema deste encontro, o enunciado ‘A Filoso-fia e o Homo Sapiens/Sapiens’? Porque, até ao presente, a Humanidade tem sobrevivido apenas segundo a cartilha do ‘Homo Sapiens tout court’... Há um Pastor/Leader e o Re-banho, liderado. É a geometria verticalista (uns mandam, outros obedecem) que predo-mina absolutamente. É o gregarismo, por toda a parte. Nesta óptica, a Espécie biológica dos Humanos não é muito diferente das formigas, das térmitas e das abelhas. A vida hu-mana continua a ser regida, primacialmente, pelos critérios da imitação/cópia, pelas pau-tas da biomimética. Ora, à luz do Homo Sapiens/Sapiens (o Homem de Cro-Magnon, considerado, evolutivamente, como o homem moderno), o relacionamento entre os Indi-víduos humanos deve ser horizontal/horizontalista, precisamente porque todos e cada um dos indivíduos são detentores de uma Consciência reflexiva e crítica, — o único absoluto do Universo!...

Sobre as exigências e as virtudes da Filosofia

  • O Pensamento filosófico não é fácil (referimo-nos ao crítico e reflectido, não ao espontâneo...). Exige muita Atenção e capacidade de Reflexão, e, antes de tudo, uma boa Sensibilidade de base, perante o Mundo e a Vida.

  • Pressupõe uma boa capacidade de se surpreender e admirar, diante dos fe-nómenos, diante de tudo o que acontece ou é descoberto... A Filosofia (sistémica) na Gré-cia clássica teve os seus inícios nos sentimentos de espanto (tháumazein!....) e admiração.

  • Requer uma boa capacidade de intuição e penetração nos problemas ou nas si-tuações, que a sociedade e o mundo desencadeiam à nossa volta.

  • No ver, ouvir e ler, mas sempre ‘ao quadrado’ (não na posição ingénua ou ino-cente de servo submisso), consistem as primeiras virtudes do bom filósofo. A nossa mente nunca deve ser uma ‘tábua rasa’, onde nada está escrito (contra os empiristas). Mas, também, ela nunca deve operar, enquanto presa ou vítima de preconceitos, os quais, na medida em que o são, bloqueiam a emergência do vero e autêntico pensamento pessoal.

  • O filósofo carece de força anímica e desinibição para evocar e comparar sempre, alargando (em círculos concêntricos...) a anállise de tudo quanto está ou possa vir a estar em causa.

  • A Matemática rege-se pela exactidão; a Filosofia pelo rigor. Estes dois predica-dos ou virtudes não são a mesma coisa!... É por isso que a Mathesis e todas as suas Disciplinas (académicas) são menos atreitas à má influência da Ideologia e dos Precon-ceitos do que a Filosofia. Esta nunca foi, nem será, uma ciência exacta. Por isso mesmo, o Rigor, que a prática da boa Filosofia pressupõe, deve estar constantemente em guarda, contra os preconceitos e as ideologias, venham eles de onde vierem.

  • Toda a Filosofia que não for capaz de proceder à análise crítica aprofundada dos fenómenos do Poder, redunda num discurso puramente retórico e sempre em benefício das classes dominantes e dos Poderes estabelecidos. Eis por que todo aquele que deman-da, honestamente e sem tréguas, o Saber e a Sabedoria, tem muito menos aptidão para as actuações ditatoriais. Quanto mais ignorante uma pessoa é, tanto mais predisposta ela está para comportamentos ditatoriais.

Para que serve a Filosofia?

  • Se a Biogénese hominizou, a Filosofia (e a boa Cultura) tem por função e mis-são, em última instância, humanizar os seres ditos humanos e criar um Mundo, onde a Natureza e a Cultura se integrem harmoniosamente.

  • Na metodologia a adoptar, é preciso, em primeiro lugar, saber operar com o Princípio de Identidade e Não-Contradição: ele confere e confronta, nos dois lados de la mêlée: os  semelhantes (ou do mesmo partido), os dissemelhantes (ou do partido adversário); em segundo lugar, é preciso alimentar a coerência no discurso e no pensamento, tan-to sobre o Universo e o Mundo, como sobre a Sociedade humana; em terceiro lugar, é preciso ter capacidade crítica para levantar hipóteses: a) no plano dos possíveis; b) no plano dos futuríveis (esquema do duplo condicional: se e só se!...).

  • A Biogénese, no Planeta Terra, ensinou-nos essa Realidade complexa e imbrica-da, a que se dá o nome do Bio-Psico-Sócio-Ânthropos. É justamente nesse horizonte que se impõe configurar, na base, os contrastes e as características estruturais diferenciadas do Homem de Neanderthall e do Homem de Cro-Magnon.

            N. = prognatismo e menor volume cerebral em cm3.; espírito físico-industrial, de natureza societariamente verticalista: esta é a matriz e o horizønte que procede do H. de N..

            C. = o homem moderno de estrutura física/biológica, conhecido desde há ca. de 50.000 anos. Espírito humano industrioso, dotado de maior volume cerebral em cm3. O seu relacionamento primacial e primordial é de natureza horizontal/horizontalista.

            N. = não resolveu a aporia fundamental da sua estruturação societária: o confronto e o relacionamento adequado entre o Uno e o Múltiplo.

            C. = o nosso ‘homem moderno’ começou a saber resolver essa aporia/contradi-ção... mas está longe de ter concluído a sua Descoberta.

            * Desta situação (de contradições e inacabamento do Processo evolucionário) re-sultou o Factum, generalizado por todo o Planeta e verificado ao longo da História das Civilizações: a Mentira estrutural da Evolução cultural/civilizacional da Espécie Huma-na, que procede do ‘Homem de Cro-Magnon’.

  • Na base, esqueceram-se ou omitiram que os humanos modernos (das Sociedades modernas) descendiam, evolutivamente, do Cro-Magnon, e não do Neander-thall.

  • Em termos ideológico-culturais, a Mentira estrutural estabeleceu a sua alavanca de Arquimedes, logo nos dois Erros estruturantes, ocorridos na Grécia clás-sica, nos sécs. V-III a.E.C.: o Erro de Platão instaurado pelo hiperurânio das Ideias perfeitas: a utopia, desta sorte, estava atrás da Espécie humana; não à sua frente, como cumpre. A partir daí, o Universo é metafisicamente dualista. O Erro de Aristóteles tem a ver com o modo como ele concebeu a superação e a abolição da Escravatura: quando as técnicas permitirem que o moinho ou o tear funcionem mecânica ou automati-camente, dispensando a mão-de-obra dos escravos.... quando, portanto, os escravos mecâ-nicos tomarem o lugar dos escravos humanos. Ora, a História das Civilizações nunca deu razão a Aristóteles, até hoje!...

    Anote-se que, nessa mesma órbita, vieram, posteriormente, o Erro do Mecanicismo de Descartes; o Erro da Dialéctica histórica de Hegel, supostamente supera-dora dos estádios anteriores (entrosando, objectualmente, a dimensão espiritual e a di-mensão material); e o Erro dos Determinismos históricos de K. Marx.

Para que serve a Filosofia, no Mundo Humano?!

  •  A esta Questão, cumpre dar uma Resposta com o Tema da Absoluta Necessi-dade da Filosofia, porque só ela pode, em última instância, responder, séria e radical-mente, aos problemas da Vida Humana e das Sociedades constituídas ao longo da Histó-ria.

            Vamos proceder a exemplificações telegráficas, em quatro grandes áreas, que po-derão ser perfeitamente entendidas nos dias de hoje:

A) Problemas teológicos ou religiosos. — Os seus serviços são importantes e de-cisivos para identificar (ou não...) o Deus, a quem prestamos culto ou a prática religiosa a que se dá o assentimento.

B) Problemática psico-pedagógica. — Os seus serviços são absolutamente ne-cessários e indispensáveis para dar uma resposta crítica adequada às malfeitorias positi-vísticas e aos absurdos filosóficos latentes, por exemplo, no modelo de avaliação do de-sempenho dos professores e educadores, imposto ditatorialmente às Escolas, em nome da autonomia das mesmas!... Aí, perfilam-se logo 2 pecados originais: o da religião do eco-nomicismo e o que tem a ver com a mistura e confusão do  processo de ensino e do pro-cesso de aprendizagem.

C) A ‘Crise Financeira’ desaguou na ‘Crise da Economia real’, como não po-dia deixar de ser. Economistas e sociólogos e políticos de turno estão a tentar remendar os modelos do monstro que é o Sistema capitalista. Não o irão conseguir, como nos ensi-nou a História, desde os tempos de Marx e Engels, a ‘Revolução dos Povos’ de 1848, que motivou a publicação do ‘Manifesto do Partido Comunista’ de Marx e Engels. — Por que não consultam os filósofos para ajudar a resolver estas crises?!...

D) Sobre as persistentes falácias e ilusões da Democracia política representa-tiva. A maior parte dos cientistas sociais, de índole positivista, o mais que eles conse-guem operar é proceder a remendos no tecido velho!... A cartilha ideológica, tradicional e actual, da Democracia está repleta de falsidades, falácias e mentiras. Por que não chamam os filósofos (sérios e honestos), para as denunciar?!

Analisando criticamente, e a cheio, a Sociedade contemporânea (a Crise Financei-ra a desaguar na Crise da Economia real) e a longa história das crises económicas e/ou financeiras, pelo menos desde 1848, com a necessária e suficiente Inteligência das coisas e dos fenómenos e dos movimentos e das flutuações, e da sua coerência ou incoerência e repetição cíclica, é forçoso chegar à conclusão de que, honestamente e pensando em pre-parar o futuro, não há outra solução certa e adequada a não ser a do Socialismo autêntico que, de tão deturpado e corrompido no Processo histórico, já ninguém sabe o que seja!...

Parece, entretanto, que, para além da ‘estupidez congénita’ dos Poderes estabele-cidos, elites, cientistas e políticos... andam todos cegos!... O ‘Ensaio sobre a Cegueira’ de José Saramago, pôs o dedo na ferida... mas fê-lo literariamente!... Logo a seguir, o filme homónimo de Fernando Meirelles equivocou-se... pura e simplesmente!...

Sujeito//Objecto: o filósofo

  • A Linguagem e o Discurso acham-se concebidos e estruturados de tal modo, em nome da realidade objectiva, indiferenciada e como espelho fiel do real, que os humanos pensantes e os filósofos facilmente se esquecem que são os Sujeitos humanos que pro-duzem o conhecimento, são eles que o administram e se vão servir dele de modo certo ou errado, de forma adequada ou inadequada.

    É assim que se edifica todo um Universo, no Processo do Conhecimento, onde as balizas e as orientações não podem ser outras senão as do Objectivo-objectualismo. Nesta perspectiva, as preocupações e os trabalhos vão para os territórios objectivo-objec-tuais dos Saberes, para as diferentes áreas disciplinares. Todavia — deve ser sempre lem-brado — quem constrói o Conhecimento e o acumula, de geração em geração, são sempre os Sujeitos Humanos, livres e responsáveis.

    Eis por que estava certa e cheia de razão a Pitonisa de Delfos, ao recomendar, a Sócrates, o alerta que ele nunca mais esqueceu: ‘Gnôthi s’autón’: Os Sujeitos Humanos e a sua Consciência, em primeiro lugar. Uma principiologia que tem sido sistemicamente esquecida e negligenciada, ao longo de quase toda a História das Culturas e das Civiliza-ções.

  • Os dois maiores Acontecimentos da História Universal, que ficaram suficiente-mente registados nos Anais historiográficos, são: a morte/suicídio de Sócrates; e a mor-te/suicídio de Jesus. Foi bom que tivessem ficado registados, para serem devidamente analisados e, a partir daí, serem tiradas conclusões salutares. Porquanto, é da interpre-tação adequada de tais Acontecimentos que vai depender a boa ou a má sorte futura do Ocidente e de toda a Humanidade.

  • Três casos de posições diferenciadas perante a Filosofia:

    • Francis Fukuyama, o autor do celebrado livro ‘O Fim da História e o Último Homem’ (Gradiva, Lisboa, 1992). Mostrou-se, aí, um péssimo filósofo: vítima da Ideologia, revelou-se como um serventuário dos Poderes estabelecidos. Em entrevista re-cente na ‘Newsweek’, lamentou a sua posição anterior.
    • David Gress: ‘From PLATO to NATO’ (the Idea of the West and Its Opponents), The Free Press, New York, 1998 (1ª ed.: 1953). Um dos melhores e mais sé-rios livros filosóficos da 2ª metade do séc. XX.
    • O terceiro caso é o do Prof. de Física António-Manuel Baptista e do seu livro ‘O Discurso Pós-Moderno contra a Ciência’ (Gradiva, Lisboa, 2002). Enquanto assessor científico da Gradiva, este Prof. de Física, diante do projecto de editar para Por-tugal o nosso livro ‘Honest to Gods – Já não! Honest to Humans – Ainda Sim!...’ (Edicon, São Paulo, 2002), escreveu-nos uma carta onde pressupunha e desenvolvia uma noção de Filosofia como ciência exacta. Um perfeito disparate!... Entre o Ser de Parmé-nides e o Devir de Heráclito, o homem ver-se-ia como o tolo no meio da ponte!...
    • No seu artigo a circular na Web, desde 19 de Novembro de 2008, o poeta e es-critor e jornalista cultural João Barcellos (do GRUPO GRANJA) tinha razão ao enunciar o desafio da Alternativa encalacrante: “ Ou os Povos se entendem como tais e se respon-sabilizam conscientemente pelas respectivas Nações, ou nunca terão direito à Cidadania e a partilhar da Riqueza que produzem, porque o Caudilho espreita a oportunidade para se dizer e se fazer Poder... em nome de ‘deus’ e dos ‘excluídos’!”

Manuel Reis

Professor aposentado
Presidente do Centro de Estudos do Humanismo
Crítico.
Guimarães


  
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