Ao atribuir o Prémio Nobel da Literatura de 2003 ao escritor sul-africano, branco, J.M. Coetzee, a Academia Sueca escolheu, certamente entre muitos escritores de nomeada internacional, aquele que, já em 1977, escrevia que "o mundo está cheio de pessoas que querem construir a sua própria vida, mas, fora do deserto, muito poucos gozam de tal liberdade"; e em 1988, "penso num romance que elabora os seus próprios paradigmas e os seus próprios mitos (...) capaz de ser construído fora dos termos da luta de classes, dos conflitos raciais, das batalhas dos sexos ou de qualquer outra oposição a partir da qual se constroem a história e as disciplinas históricas." Aspiração impossível de realizar, mesmo como utopia, sabendo-se que a história da humanidade foi sempre uma história de oposição dos contrários... Já o crítico literário, Aijaz Ahmad, no seu livro de ensaios que ainda não começou a fazer carreira em Portugal, Linhagens do Presente (editado no Brasil em 2002), considerava absurda a ideia de que a literatura se pudesse libertar de "identidades estáveis de classe, nação ou género". Proposição esta que ajudará a aceitar que, não podendo viver senão num deserto virtual, Coetzee nunca se livraria da sua "condição" de sul-africano, branco, filho de "boer", universitário e elemento marcado (ainda que contestatário) de uma classe dominadora que chegou a defender a divisão do território segundo as raças (apartheid) e as etnias (bantustões) para se manter no poder. Restos dessa ideia agitam-se, nos estertores, ainda hoje, nos tribunais de Pretória, onde recentemente estava a ser julgada uma organização militarizada de "boers" que intentava expulsar os negros para o Zimbabué de Robert Mugabe... De resto, é o conflito insanável entre as classes sul-africanas, resultante do modelo social instituído pela colonização "boer", que Coetzee denuncia nos seus livros, e de uma forma tão brutal que já não fica margem para repor os "mitos" de esperança que ainda emergiam, há algumas décadas, nos livros de outros escritores brancos, como Alan Paton e Nadine Gordimer, esta Prémio Nobel em 1991. Na verdade, Coetzee é o narrador de um Caos cujo termo só será imaginável quando o histórico dominador deixar de o ser, a bem ou a mal, e o poder do opressor se transferir definitivamente para o oprimido. Os avatares da "transição", que se podem ver reflectidos em notícias que correm o mundo, são representados pelo escritor em quadros de uma violência extrema (assassinatos, torturas, violações, ódios, terrores) em que os actores, a quem Coetzee geralmente evita dar "cor", se revelam como seres em situação-limite, de passagem do humano histórico para um estado de transfiguração dessacralizada, que, em dados momentos, convoca as imagens desconcertantes de alguns quadros "pré-surrealistas" de Bosch. Coetzee, depois dos primeiros vinte anos passados na África do Sul, viveu outros tantos em Inglaterra e nos Estados Unidos, donde só regressou em 1983 à terra natal, para prosseguir a actividade académica iniciada naqueles países. Actualmente, vive na Austrália, talvez o "deserto" possível que escolheu depois das acusações feitas pelo ANC, o Partido do Governo sul-africano, de, com o seu livro Desgraça, estar a denegrir a imagem do país e a induzir os brancos a abandonarem o território. O último período de À Espera dos Bárbaros (1980), embora descontextualizado, dará porventura todo o sentido à posição de quem pensa que só se é livre fora do mundo real: "Como em muitos dos dias de hoje, volto as costas, sentindo-me desorientado como um homem que há muito perdeu o rumo, mas continua a avançar por uma estrada que talvez não conduza a parte nenhuma." Só que, fora do mundo real, não há mais mundos...
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