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Natal, os presentes das crianças: Lições
Para Camila, essa nossa filha companheira.

1. Sonata introdutória.

Perguntou-me um dia uma estudante da minha Universidade portuguesa: Senhor Professor, porquê estuda crianças: A minha resposta foi breve: porque sou pai. A seguir, proferi uma explicação mais cumprida. Não é apenas sermos pais, é o que as crianças nos ensinam. Até parece que não por serem pequenas. Até parece sermos nós os que dizemos as sabidas coisas da vida. Sabidas coisas, um conceito que substitui todas as acções e aventuras na interacção da experiência da vida, dessa interacção que, por habituados como a ela estamos, esquecemos de reflectir. Reflexão que nem nos faz mal. Bem ao contrário, uma reflexão a ajudar a crescer a nós, adultos, a partir das crianças. Crianças adultas e crianças a crescerem. Como as filhas que tantos de nós pais, temos. É verdade que a simplicidade e o carinho, a honestidade e a lealdade são parte da vida que nós praticamos e transferimos para a nossa descendência. Essa descendência que começa a aumentar sem nós darmos pelo facto. Um dia somos filhos, anos virados, somos autónomos e indivíduos, anos depois, caímos no chão de um amor que acompanham os nossos afectos, a nossa emotividade mais íntima. E, dessa intimidade, aparecem os primeiros descendentes que fabricamos. E não é um erro de estrangeiro dizer fabricamos, são feitos do amor à pessoa que os leva no seu corpo durante meses e que do seu corpo os alimenta. Essa intimidade partilhada entre os pais perante a criança nascida, pais a olharem-se no bebe, a ouvirem essas primeiras palavras, a brincar com canções que ensinam palavras, essas crianças a andarem atrás de nós, sem nós sabermos as vezes. Mais tarde, vão à sociedade, começam a fazer parte de um grupo que conhecemos enquanto eles interagem e falam sem nos ouvirmos, mas a sabermos pelas mudanças da atitudes que as crianças, essas nossas crianças, passam a ter. E os sarilhos fora do lar, começam. E vão aumentando ao inserirem-se mais nas actividades longe de nós. Como pais, ouvimos o que nos é referido e com firmeza e na linguagem da idade que fala, opinamos para a pequenada nossa optar. Optar ela, não nós por elas.

2. Primeira lição: pai, ouve.

Saber ouvir. Saber entender as palavras das histórias referidas ao calor do lar ou mesmo ao calor do debate que essa filharada tem com os seus pares. Há as crianças que adoptam aos pais como aliados nas suas dificuldades para se inserir fora do lar. Sentem que esses adultos vão punir ao parceiro que debate com ela, que vai esgrimir as luvas de boxe para esmagar aos adultos do rival, vão salvar a sua vida de entre as alternativas cruzadas nas vias da vida, alternativas desencontradas a desnortear os seus sentimentos e o seu raciocínio, a sua razão, os seus sentimentos. Não é mentira a frase que dizem: o meu pai bate no teu e ganha, a minha mãe sabe cozinhar melhor do que a tua e outras que vão dizendo ao largo da vida. Ou, esses ciúmes que os descendentes têm se os pais mostram afectividade entre eles sem incluir o seu pequeno corpo entre os corpos deles com caricias, ou, ainda, nas actividades que os pais realizam dentro de casa ou entre os seus próprios pais. A criança dá-nos uma primeira lição: já não somos dois a vivermos sob o mesmo tecto, somos três, quatro ou cinco ou mais. Cada individualidade, entrelaçada na individualidade do outro. Nunca uma por cima da outra para mostrar que é mais querida ou mais preferida. A lição é simples: somos um conjunto de pessoas a experimentarmos a vida de forma diferente dentro de conceitos compartilhados e afeitos unificados, mas entendidos conforme a acumulação da experiência explica ao mais novo o que esses conceitos e sentimentos querem dizer ou significam. Pais alertas ao facto da heterogeneidade de gerações em convívio dentro dos laços de amor ou de emotividade que uma família modelar, parece ter. Pais alertas a modificar a sua linguagem e a sua forma de dizer para ter um lar e não uma sala de debate, uma sala de interrogações, uma sala que vitimara aos descendentes, aos filhos. Sem espreitar entre os arquivos que a infância entesoura com prazer, tesouro acumulado a definir a sua trajectória na vida. Tarefa difícil que dura certos e determinados anos, até a criança começar a andar só pela estrada da vida, apoiada nas emoções guardadas dentro de si pelo saber falar dos adultos entre eles e incluir na conversa os mais novos. Palavras e frases que adultos pais sabem e aprendem, visão do mundo a adquirirem pela observação feita da vida ao seu cuidado, a dos filhos que, cedo demais, entram no convívio com o social. Lição que eu denominaria de amor e entendimento, de humildade para aceitar a experiência dos mais novos e incuti-la dentro de si. O adulto guarda sua criança nesses conceitos e os desenvolve a par e passo enquanto a criança é socializada por outros.

2. Segunda lição: pai, eu existo.

Crianças que aprendem com os outros. Sempre nós, adultos, orgulhamo-nos em pensar e dizer quanto transferimos do nosso ego para os filhos. Se reparar o contexto dentro do qual esse outro, o filho, abaliza o nosso saber. De certeza há a idade onde os pais são a primeira e última palavra...parece. Para pais e filhos,...parece. E o médico, e os primos, e os avós, e os filhos dos amigos, e esses mesmos adultos amigos dos pais? As histórias, os brinquedos, a música, a situação económica do lar comparada à economia das outras família, parentes, vizinhos e amigos?. Não é destemido dizer que a aprendizagem é sempre social. Não é destemido dizer que a criança, desde o dia do seu nascimento, é uma entidade social. Mal saem dos nossos corpos, esses pequenos são já o bebe social, porque pertencem ao mundo dos pais e das suas famílias. Vão vivendo com eles o pensar, o dizer, o sentir. As formas de agir entre milhares de pessoas a povoarem os dias da vida. É o adulto que tem a tendência a guardar a criança para si. Com amor, com orgulho, com um sentido estrito da disciplina, com uma sentir estrito de posse sobre o pequeno. Posse que nasce do amor que um progenitor é dizer, um gerador de vida -, sente. Apenas pelo facto da lei entregar a criação da miudagem aos adultos crescidos. A lei manda um estado de inocência nos menores de sete anos, uma responsabilidade até penal pelos delitos que os mais novos podem cometer, a entender ou não o que fazem. Posse que esses pequenos nos ensinam não existe: apenas a obrigação do adulto indicar que o dinheiro dos outros, aos outros é que pertence. Medite o adulto como a criança é sabida, até ao ponto de reclamar pelo que desgosta ou de gritar pelo que deseja e que o adulto estima não deve ser atingido. Ou, o adulto entenda que há uma contenda, um debate entre ele e o mais novo para impedir lesões corporais, para impedir lesões emotivas. O papel dos pais é o de serem mestres da vida. É a outra oferta que a pequenada nos entrega: não serem mimados, mas docemente orientados e saber ouvir com serenidade a gritadeira que produz a frustração de querer atingir um objecto ou um presente e não poder obter. Reflexões faladas entre os adultos para saberem que o amor evidencia-se no amparo da pessoa pequena que tem os seus próprios objectivos retirados dos recursos do lar e da forma que os seus adultos os usam. A oferta é a paciência de sermos a trave mestre entre o social e o indivíduo que começa a entender.

3. Terceira lição: pai, quero saber.

Trave mestre. Transferência da experiência de vida. Explicador carinhoso da interacção com outros. Para começar, com a mesma família dentro da mesma casa, com os irmãos os melhores rivais que a vida entrega a um ser humano. Especialmente, se são irmãos de género e idades diferentes, ou mais preferidos pelos adultos a viverem por perto. O adulto deve entender não ser um modelo para o agir do pequeno, apenas uma indicação. A arrogância da vida adulta é agir como corrector de provas dos que estão a experimentar o quotidiano. Arrogância nascida dessa entrega mais acima mencionada, que a lei faz dos mais novos. Ou que o amor e a paixão entre dois, geram. O adulto dentro do lar é a pessoa mais amada e temida que um ser novo pode ter. Porque não ensina: corrige. Castiga. Desorienta. Diz amar e esquece. Queira o adulto ou não. Os seus objectivos de vida passam a serem mais importantes que educar sua descendência de forma harmoniosa. Educação estimada como dever e não como parte do objectivo da vida adulta. Objectivo complexo ao envolver o entendimento do contexto dentro do qual os seres gerados e criados, vivem. Contexto estendido para além do lar e reflectido dentro do lar. Apenas com esta lição, a criança, já adulta, é capaz de dizer depois como é importante saber o sentimento do outro e respeitar esse sentimento para não ferir. Apenas uma criança orientada e não possuída, é capaz de ser um adulto jovem que ensina ao adulto maduro a importância de não falar a mais, de não dizer o que a outra pessoa não entende. Lição difícil de aprender: é bem mais fácil, tenho observado, gritar, bater, ignorar, fechar-se nos deveres do trabalho fora de casa com a justificação de ser esse o trabalho que alimenta à descendência.

4. Coda final: pai, eu dou.

Descendência que é, colegas pais, o nosso melhor carinho, o nosso melhor ensino, o nosso melhor amor. A paixão entre adultos acaba, o amor pode-se partir, o carinho pode ficar à distância. Mas, o amor pelos filhos, continua se entendermos que aprendemos de eles tanto e quanto eles de nós. Como Antropólogo - parece duro dizer, mas é verdade -, a criança dos nossos filhos é a nossa observação participante da vida. Aprendemos deles as formas de crescerem e entenderem o mundo e as ideias que de essas cabeças, nascem ao ritmo da aprendizagem. É a oferta de Natal que, nestes meus anos de idade, os meus filhos me fazem: acompanhar, entender, aceitar, mostrar como a vida é diferente entre a geração de eles e a nossa, como a nossa juventude não elo nenhum para a experiência da juventude de eles. Nós, maduros já, precisamos aprender que tornamos a estar sós no crescimento das crianças e na sua conversão em adultos que opinam, ouvem, calam e apenas dizem se for conveniente para esse adulto, que já não muda, entender. As crianças passam a ter as suas vidas autónomos depois de ter tido vida independente ao calor da orientação dos pais. Eis o prazer da vida, sermos acompanhados por uma juventude adulta capaz de entender as desorientações dos adultos que sonharam serem os proprietários dos pequenos, os seus corregedores e não apenas os seus orientadores. É o que agradeço à minha descendência que já vai no primeiro neto. Não é o neto o presente de Natal, é as formas de entender o mundo, o que me orgulha neles. E não apenas dos descendentes consanguíneos, bem como todos esses que tenho adoptado ao longo da vida, enquanto trabalhava com eles para entender a criança e assim entender a interacção social. Feliz Natal, filhos! Feliz Natal, colegas pais! Obrigado pelo presente de serem adultos que entendem e acompanham sem trespassar os limites da minha intimidade e da intimidade deles. Descendência que vive em todos os cantos do mundo pelo qual tenho andado a observar a vida através deles. Obrigado pelo lindo presente, materializado nesse dia precioso quando esta minha filha me quis levar no meu carro, conduzido por ela, entre Mafra e Ericeira, para ser assim eu a ter o sabor de observar a paisagem do entardecer e não estar sempre subordinada a dar prazer a ela. Essa filha que se orgulhou de ouvir um pai, o seu, proferir uma conferência sobre crianças e teve a humildade de dizer o que tinha apreendido além do amor paterno-filial. Essa intimidade que apenas os filhos orientados e não subordinados, são capazes de dizer, com um sorriso bondoso e de carinho na linda cara jovem de quem conduzia o meu carro. Senti-me completo. Tal e qual a sua mãe também se sente. Com essa filha orientada, tal e qual a outra, nascida no Dia de Reis, faz já vinte anos. Tal e qual me senti completo quando a minha estudante perguntou porquê eu estudava crianças. Ana, é porque sou pai! E não Pai Natal. Apenas um pai a apoiar com o meu comportamento, penso.

Raúl Iturra
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa

Bibliografia.

Este texto foi escrito ao som do voo do avião que levava de regresso a minha filha a sua casa na Grã-Bretanha. Texto também retirado dos meus Diários de Trabalho de Campo e de meu Diário Pessoal. Bem como de:

  • Iturra, Raúl, 1996: (Org.e autor) O Saber das Crianças, ICE, Setúbal.
  • 1997: O Imaginário das Crianças. Os Silêncios da Cultura Oral, Fim de Século, Lisboa.
  • 1998: Como era quando não era o que eu sou. O crescimento das Crianças, Profedições, Porto.
  • 1999: O Saber sexual das crianças. Desejo-te porque te amo, Afrontamento, Porto.
  • Murray, Lynne E Andrews, Liz, 2000: The Social Baby, CP Publising Richmond, Surrey, Grã-Bretanha.
  • 1999: The Childrens Project, CP Publishing Richmond, Surrey, Grã-Bretanha.
  • Opie, Peter E Iona, 1988: The Singing Game, Oxford, Grã-Bretanha.
  • 2000: Babies An Unsentimental Anthology, John Murray, Londres.
  • Vieira, Ricardo, 1998: Entre a Escola e o Lar, (1992), Fim de Século, Lisboa.
  • Sampaio, Daniel, 2000: Tudo o que temos cá dentro, Caminho, Lisboa.

  
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Edição:

e
Ano 9, Dezembro 2000

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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