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Macau e os Ídolos de Francis Bacon
  1. Ao ler e ouvir (parte do) muito que se comentou e dissertou acerca da denominada "transferência de soberania de Portugal para a China no território de Macau", vieram-me à memória algumas observações penetrantes de Francis Bacon (1561-1626). Justificarei esta associação de ideias mais adiante. Antes, porém, convirá esboçar, a traço grosso, um rápido retrato deste vetusto personagem, para fixar ideias.

  2. Como político de carreira, Bacon não era própriamente um modelo de virtudes, longe disso, embora não lhe faltassem coragem e ousadia. Como filósofo e cientista, títulos que reivindicou orgulhosamente para si, valia o que valia, que não era muito. Embora passe frequentemente por pioneiro da tentativa de sistematizar o método da ciência moderna, a sua compreensão da ciência era escassa e confusa. William Harvey (um cientista a quem devemos a descoberta da circulação do sangue e que era, aliás, seu médico particular, pelo que podemos supor que o conhecia bem), declarou a seu respeito: "escreve filosofia como um lorde-chanceler".Não era uma metáfora, mas a sóbria e irónica constatação de um facto. Francis Bacon, foi, em vida, ainda que por um tempo demasiado curto para as suas ambições, o mais poderoso personagem (a seguir ao próprio rei) do já poderoso reino de Inglaterra: "Lorde-chanceler", que é como quem diz, super-ministro das finanças. O "super" não está a mais. Para compreendermos a extensão dos seus poderes e avaliarmos a importância do seu cargo, os exemplos caseiros recentes não servem. Nem os drs. Miguel Cadilhe e Pina Moura, por exemplo, nem os professores Cavaco Silva e Sousa Franco alguma vez se acharam em tais altitudes. Um melhor termo de comparação seria o doutor Oliveira Salazar, nos tempos em que ainda fazia de conta que o general Domingos de Oliveira era o seu superior hierárquico no governo e que era no general Óscar Carmona (e não nele) que o "bom povo português" deveria, a seu tempo, aprender a localizar o vértice da "ditatura nacional".

  3. Mas se o filósofo e naturalista Bacon não impressionam, já outro tanto não se dirá do sociólogo e futurista político que também foi. Alguns dos seus livros -- e.g. "A Grande Instauração", "A Nova Atlântida"-- são uma espécie de almanaque Borda-de-Água do imaginário megalómano da sociedade industrial, então ainda por nascer. Lidas sob esta perspectiva, as elocubrações de lorde Bacon têm um inegável sabor profético. A sua "Casa de Salomão", por exemplo, embora situada na "Nova Atlãntida", uma ilha fictícia, é um guião pormenorizado das muito prezadas e secretas "cidades da ciência" da ex-URSS, hoje quase todas desmanteladas e esvaziadas dos seus salomónicos funcionários, ou da sua versão ocidental mitigada, os "parques de ciência & tecnologia", que, em Portugal pelo menos, ainda são apresentados como uma ideia cheia de futuro.

  4. Mas o melhor Bacon, o que sobrevive e sobreviverá, é o que tentou precaver-se e precaver-nos contra o império das nossas ilusões ideológicas; hábitos mentais que distorcem e desbotam a natureza das coisas, mas tão profundamente arreigados que normalmente nem nos damos conta dos danos que nos infligem. Bacon chamava-lhes "ídolos" e enumera cinco espécies, no seu "Novo Organum". Os "ídolos da tribo" são aqueles que decorrem da nossa índole como espécie gregária, como a tendência para tomarmos os nossos desejos por realidades. Os "ídolos da caverna" são preconceitos pessoais. Os "ídolos do mercado" são aqueles que decorrem de uma inadequada escolha das palavras capaz de causar uma obstrução ao entendimento, porque é falando que os homens se entendem. Os "ídolos do teatro" são aqueles que imigraram para as mentes dos homens vindos dos vários dogmas das filosofias. Finalmente, existem os "ídolos das escolas", os quais consistem na crença de que podemos resolver os problemas que se nos deparam por meio de uma receita que nos dispense de pensar e investigar.

  5. Pois bem, o que sucedeu em Macau durante o último mês de 1999, só pode ser cabalmente entendido se conseguirmos derrubar vários destes ídolos. Os ídolos do mercado e do teatro, para começar. O que lá se passou não foi a "transferência para a Républica Popular da China do exercício da soberania portuguesa sobre Macau". (transcrevo esta passagem do discurso do Presidente da República Portuguesa, Jorge Sampaio) nem "a retomada do exercício da soberania sobre Macau pelo governo chinês" (transcrevo esta passagem do discurso do senhor Jiang Zemin, o mais alto funcionário do Partido que detem o monopólio absoluto do poder na China). Foi, isso sim, o fim de um curto interregno de vinte e tal anos durante os quais, pela primeira vez na sua longa história, os habitantes de Macau, aí nascidos ou imigrantes vindos para aquele minúsculo território chinês, puderam gozar dos direitos, liberdades e garantias próprias de um Estado de direito democrático, graças a uma revolução anti-ditatorial ocorrida aqui, em Portugal, em 1974.

  6. O senhor Jiang Zemin declarou também noutro passo do seu discurso:"Depois do retorno de Macau, o Governo Chinês vai ,firme e invariávelmente, implementar as políticas fundamentais de "um país, dois sistemas", "a admnistração de Macau pela gente de Macau" e um alto grau de autonomia". Nada disto corresponde mínimamente à verdade. Na chamada Républica Popular da China, existe um único sistema: o sistema de partido único, a ditadura do partido a que pertence o senhor Jiang Zemin. É este sistema ditatorial que vigora em todos os territórios controlados por esse partido, incluindo neles o Tibete, Hong Kong e também, a partir de agora, Macau. A administração de Macau será assegurada por comissários políticos nomeados pelo governo de Zian Jemin e da sua confiança. As fórmulas "um país, dois sistemas" e "um alto grau de autonomia" são eufemismos que o partido de Jiang Zemin utiliza para significar que os interesses económicos oriundos de outros países nos territórios de Hong kong e Macau serão não apenas respeitados mas também protegidos pelo seu governo ditatorial.

  7. "As cordiais saudações e os melhores votos aos compatriotas que acabam de regressar ao seio da pátria" disse Jiang Zemin, invocando os ídolos da tribo e do teatro. "Macau, já retornado ao seio da pátria, terá certamente um futuro mais brilhante". Mas quem perguntou aos macaenses se queriam esse futuro? Quando foram chamados a expressar livremente, através do seu voto, o seu alegado interesse nesse alegado retorno ?

  8. "Portugal saíu de Macau com dignidade", "balanço globalmente positivo", foi o refrão (quase unânime) que se ouviu na imprensa portuguesa, escrita e falada. Portugal não é realmente para aqui chamado, quando muito os governos dos últimos dez anos. Seja como for, o ditador Jiang Zemin estava radiante. O caso não era para menos: "Nesta noite cheia de luar, sopra a brisa refrescante e o mar é sereno como de rosas. Os governos chinês e português realizam aqui a cerimónia solene de transferência de poderes de Macau", disse sua excelência, talvez já a sonhar com os chorudos lucros dos casinos.

José Manuel Catarino Soares
Escola Superior de Educação de Setúbal


  
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Edição:

N.º 87
Ano 8, Janeiro 2000

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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