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Olhar para um trabalho invisível

Nas escolas públicas da periferia e do centro de Lisboa, todos sabem que trabalham com um tecido social rasgado, extremamente minado, onde a mínima faísca provoca desastres. Os GAAF facilitam uma abordagem multifacetada dos problemas. Convém que quem decide se os retira da escola, ou não, tenha um ouvido e um olhar muito atentos.
Escolas públicas da periferia da Grande Lisboa e do centro da cidade. Zonas de realojamento: grandes bairros de arrendamento social, zonas com um constante fluxo de jovens que chegam e que vão, de crianças que acompanham os pais na procura gorada do El Dorado. Escolas bem ou mal equipadas. Agrupamentos que recorreram ou não ao estatuto de Território Educativo de Intervenção Prioritária – denominação algo estranha, quando pensamos que a Educação é sempre uma intervenção prioritária para que as novas gerações se apropriem do legado das anteriores e consigam reinterpretar e desenvolver o seu contributo à construção da sociedade.
Nessas escolas públicas, onde é raro encontrar menos de cinco culturas diferentes em cada turma, onde se falam dez ou mais línguas diferentes no recinto, onde adultos, jovens e crianças tentam compreender como as relações sociais funcionam, há frequentemente desencontros e reencontros. Mas todos percebem rapidamente a diferença entre a retórica política e a realidade da sua escola.
Estabelecer uma relação pedagógica focando aprendizagens e a sua mediação exige um esforço não só por parte dos jovens e das crianças, mas sobretudo por parte dos adultos. Como em qualquer situação de aprendizagem, o ponto de partida é o conhecimento de que o aprendiz já dispõe. Como em qualquer relação pedagógica eficaz, para os aprendizes, a diferenciação impõe-se.
Difícil, quando, em muitas dessas escolas, as histórias de vida dos que se cruzam nas salas de aula, adultos, jovens e crianças, são radicalmente diferentes. Dão origem a mal-entendidos, alguns simples, outros mais complicados. Um olhar penetrante tem um significado diferente conforme as regras de convívio em culturas diferentes; o que roça o insulto pode não passar de uma tradução à letra menos feliz de quem não domina bem a língua de acolhimento. Nem sempre é fácil controlar os primeiros impulsos perante o que é considerada uma provocação.
O enclausuramento geográfico das populações pobres e migrantes facilita o aparecimento de grupos fechados com códigos próprios e o surgimento de grupos rivais que disputam entre si os seus terrenos de acção, para alcançar a riqueza prometida pelos hábeis vendedores de sonhos. Quem trabalha nas escolas sabe que negar que eles estão lá, com as suas frustrações, as suas potencialidades, as suas limitações, obrigados a comparecerem na instituição que compulsivamente os quer instruir, incutindo padrões normalizantes, não é possível. São processos que requerem, dos trabalhadores da escola pública, aprendizagens complexas. Obrigam a pequenas equipas multidisciplinares, em Gabinetes de Apoio ao Aluno e à Família (GAAF) atentos e abrangentes. Facilitam a abordagem multifacetada e necessária para entender “aprendentes” e famílias. Elaboram planos de actuação. Acompanham famílias financeiramente encurraladas, organizando a rede de contactos necessária para a negociação com instâncias credoras e no contacto com instituições públicas de saúde e de trabalho.
Aconteceu que a intervenção de um educador social e de um mediador de pátio reduziu drasticamente o número de alunos que não ia à escola ou que ficava no pátio. Mas, numa primeira fase, fez aumentar a indisciplina na sala de aula. Gerou dificuldades aos professores, que na sala só tinham começado a introduzir técnicas de diferenciação pedagógica, e aos líderes escolares que optaram pela flexibilização curricular. Para todos implicou mediar mais eficazmente e desenvolver competências de descodificação.
Foi preciso tornar-se equipa, encarar conselhos de turma de outra forma, dando acesso permanente aos técnicos, desenvolver, entre docentes e não docentes, estratégias de intervenção junto ao grupo. Aqui, a troca de experiências entre alunos, docentes e não docentes de escolas diferentes, organizada pelo GAAF durante as pausas lectivas, revelou-se importante.
Trata-se de processos de mudança na escola. Processos longos, que produzem resultados sérios, longe das fáceis e destorcidas comparações apresentados por decisores políticos e fazedores de rankings. No momento socialmente muito complicado que vivemos, tirar estas equipas multidisciplinares das escolas, alegando controlo de custos, poderá provocar a curto termo uma factura muito mais elevada.
Nessas escolas públicas, todos sabem que trabalham num terreno com o tecido social rasgado, extremamente minado, onde a mínima faísca provoca desastres. Os GAAF estão conscientes do trabalho que desempenham. Convém que quem decide se os retira da escola, ou não, tenha um ouvido e um olhar muito atentos.

Pascal Paulus


  
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Edição:

Edição N.º 192, série II
Primavera 2011

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