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O olhar crítico português
Não admiraria se um estrangeiro, chegado a Portugal para estudar o povo e o país e, por conhecer ainda mal a sua história, começando por observar as manifestações comportamentais da população, desde as ruas e os bares até aos órgãos de comunicação social, tivesse imediatamente duas impressões: os portugueses olhavam-se uns aos outros impiedosamente e não possuíam uma visão realista do seu país.
Com algum tempo de permanência e na procura de um denominador comum para avaliar a razoabilidade dessas impressões, lendo e ouvindo personalidades representativas dos valores dominantes na sociedade, esse estrangeiro aceitaria como um vector sociológico a opinião de um reputado historiador, Vitorino Magalhães Godinho, recolhida de um substancioso artigo publicado, em Janeiro, no "Jornal de Letras", em que focava a necessidade de os portugueses "tomarem consciência do que foram e são para definirem o que querem vir a ser." Aliás, já dizia o mesmo Eduardo Lourenço, em 1978, no "Labirinto da Saudade".
E o que iria vendo esse observador? Provavelmente, que parecia ser uma característica do português criticar tudo e todos, começando no vizinho de casa ou no colega de trabalho para acabar no Governo ou no Estado, sem nunca se olhar a si mesmo e reflectir sobre se não estaria a confirmar antiquíssimas deformações de carácter, como a prosápia, a soberba e a inveja, que Gil Vicente, no século XVI, já satirizava nas suas comédias de crítica aos costumes.
Questionar-se-ia então se esses defeitos eram uma herança genética ou um produto de educação, sabido que o homem era também um produto do meio ambiente. Mas, noutras circunstâncias, quando ouvia um português elogiar aqueles compatriotas que se distinguiam nacional ou internacionalmente no domínio das Ciências, das Artes, das Letras ou do Desporto, ou, numa representação mais vasta, na Emigração, aqui por reconhecidas qualidades de trabalho e de adaptação a todos os mundos ("E se mais mundos houvera lá chegara" ? dizia um grande poeta nacional), logo o mesmo indivíduo se ufanava como se ele próprio fosse distinguido.
Esta característica, verificável a todos os níveis culturais, desde o campo ou a fábrica até à universidade, revelava no mínimo uma oclusão na capacidade de aferir paradigmas, manifestando-se em duas atitudes que se confundiam nos momentos de euforia: uma, individualista e egocêntrica, em que eu sou o modelo das boas qualidades; outra, participativa e solidária , em que a minha adesão ao comportamento das massas ? nas grandes manifestações patrióticas, por exemplo ? acorda em mim a consciência de que pertenço a um colectivo.
Alguns analistas sociais consideravam que a ligeireza com que os portugueses de todos os estratos sociais se criticavam uns aos outros, e por último o país, era hoje consequência da assunção dos direitos de cidadania justamente conquistados com a Revolução de Abril. A libertação permitira que com a desopressão dos espíritos se expandisse o pensamento e soltasse a palavra, contidos e freados durante o quase meio século da Ditadura.
Isto era um facto. Mas não era menos verdade que, recuando até aos finais do século XIX (fixando, por exemplo, os registos pessimistas dos "Vencidos da Vida"), se encontraria a mesma crítica dilacerante sobre um país que, das assembleias, das tertúlias ou dos campos, já era olhado ou sentido por elites e arraia-miúda como um caso perdido ou de difícil solução. Os primeiros lavravam a sua sentença escrevendo livros e manifestos ou passavam-na oralmente nas tribunas, a segunda metia o silêncio num baú e partia à aventura com os ouvidos cheios de coisa nenhuma. Dizia-se que as causas e as culpas dessa desgraceira nacional residiam no povo, por natureza atávico e avesso a mudanças ? opinava a minoria dos ilustrados; nos ricos insaciáveis, nos chefes arrogantes e nos políticos incompetentes - afirmava a maioria dos analfabetos, no seu juízo igual à maioria da população.
Durante a vigência do chamado Estado Novo, sob o efeito de uma forte acção psicológica exercida pelo regime, diluíram-se as culpas ancestrais num banho redentorista e a razão da crítica cedeu temporariamente o lugar ao dever patriótico da emulação, pela fé (por Deus, pela Pátria e pelo Império) de que o Destino excepcional dos portugueses, comprovado em épocas de decantadas glórias, não se afundara nos "magmas ideopolíticos" do Liberalismo e da Primeira República. Mas os descrentes e os inconformados cavaram catacumbas ou continuaram a expatriar-se, como em séculos anteriores, na esperança de que uma revolução ou um milagre fizessem, por eles, de Portugal um lugar invejável.
E na verdade, tomando como sintomas os "olhares" de muitos homens públicos (ortodoxos e heterodoxos) e dos órgãos de informação em geral, o observador estrangeiro só poderia concluir que os portugueses se tinham conformado com o país que esquizofrenicamente criticavam, remetendo sempre as responsabilidades para o Outro; e quando, paradoxalmente, pareciam orgulhosos do país que tinham era talvez para iludir a ideia de que o Portugal invejável continuaria adiado, sem prazo mas sem angústia.

  
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Edição:

N.º 166
Ano 16, Abril 2007

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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