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Ana Paula Pêgo
investigadora de biomédicas
em entrevista à Página

A PÁGINA quis saber em que condições trabalham os investigadores científicos em Portugal. Para tentar obter algumas respostas, entrevistamos Ana Paula Pêgo, licenciada em Engenharia Alimentar pela Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa. Apesar de ter enveredado inicialmente por esta área, esta jovem investigadora doutorou-se em 2002 em Química de Polímeros e Biomateriais pela Universidade de Twente, nos Países Baixos.
Actualmente, enquanto Investigadora Auxiliar do Laboratório Associado IBMC/INEB (Instituto de Biologia Molecular e Celular/Instituto de Engenharia Biomédica), desenvolve investigação de novos biomateriais para aplicação em neurociências, decorrente do seu interesse na aplicação de biomateriais no campo da medicina regenerativa e engenharia de tecidos, em particular na área da regeneração nervosa.
Nesta entrevista, Ana Paula Pêgo aborda, entre outros temas, o actual panorama da investigação científica em Portugal, as responsabilidades do Estado, das empresas e das universidades nesta área e a competitividade portuguesa no contexto internacional. Pelo meio, a nossa interlocutora lança ainda algumas propostas que, na sua opinião, poderiam contribuir para potenciar a investigação científica no nosso país.

Como é ser investigador hoje em Portugal? Que problemas e desafios se colocam a estes profissionais?

Enquanto investigadora já tive oportunidade de trabalhar em três países. Fiz o meu doutoramento na Holanda, o estágio de final de curso nos Estados Unidos e trabalho actualmente em Portugal. Partindo dessa experiência, não considero que trabalhar em Portugal seja particularmente mais difícil. Hoje em dia é difícil em todo o lado, porque a concorrência entre investigadores e na procura de financiamento é muito grande.
A única diferença residirá no facto de em Portugal estarmos ainda a tentar diminuir a distância que nos separa de outros países, porque durante muitos anos houve um fraco investimento na investigação. Nesse sentido, nos últimos verificou-se uma melhoria significativa de condições. Se me perguntar se esse investimento é suficiente, eu direi que poderia ser melhorado. Mas dada a nossa situação económica, eu diria que estamos, apesar de tudo, no bom caminho.

Essa opinião diz respeito à investigação em geral ou existem áreas em que estejamos melhor posicionados?

Eu julgo que temos áreas de investigação em que nos podemos equiparar aos países mais desenvolvidos. A área em que trabalho actualmente ? a de biomateriais ? está muito bem posicionada a nível europeu e mundial para um país da nossa dimensão.
Uma das principais fraquezas da investigação em Portugal está relacionada com a falta de ligação com a indústria, que muitas vezes constitui o motor para determinadas áreas de investigação.

Encontrou muitas diferenças entre Portugal, os Estados Unidos e a Holanda em termos de organização e de infra-estruturas?

Sim, sem dúvida. Nos Estados Unidos pensa-se geralmente ?em grande?. Lá, mesmo os grupos de trabalho que não têm tanta visibilidade conseguem obter linhas de financiamento significativas. Nesse sentido, dou mais valor à ciência feita no nosso país ou na Holanda, porque com menores investimentos consegue-se obter mais resultados.
Uma outra diferença reside no facto de os Estados Unidos terem uma grande percentagem de cientistas estrangeiros a trabalhar nas universidades e centros de investigação, o que só agora vai acontecendo na Holanda e ainda de uma forma insípida em Portugal.
Quanto à Holanda, penso que a sua principal característica é a de ser um país muito organizado. E não me refiro apenas ao sector de investigação mas à generalidade do sistema, assemelhando-se nesse aspecto com os países nórdicos.
Os holandeses pareceram-me muito pragmáticos, com uma noção muito clara de qual deve ser o retorno de cada investimento, chegando mesmo a ser um pouco frios nessa análise. Ao mesmo tempo arriscam, atrevendo-se a apostar em novas áreas de investigação. E essa aposta reflecte-se no próprio estatuto do investigador.
Isto porque, na Holanda, um aluno de doutoramento não é entendido como um mero estudante, é considerado um assistente de investigação, com direitos e deveres, sendo-lhe no final atribuído um grau científico. E essa experiência conta para efeitos de carreira, isto é, reconhece-se ao estudante uma prática de trabalho.
Em Portugal o aluno tem o estatuto de bolseiro, de alguém que está a aprender mas que não é considerado um elemento activo. Quando nos dirigimos a uma empresa é diferente afirmar que estivemos quatro anos a estudar ou que passamos quatro anos como assistentes de investigação.

Pensa que esse estatuto contribui para reforçar a auto-confiança nos investigadores em início de carreira?

Sim, e que de certo modo ajuda a mudar a mentalidade do investigador, que não vê a si próprio apenas como estudante. Claro que essa atitude depende, em última análise, dos próprios investigadores, que devem saber afirmar a si próprios que possuem quatro anos de experiência e não apenas quatro anos de aprendizagem. Até porque um doutoramento exige uma gestão rigorosa do tempo e da condução de um projecto de investigação, o que constitui, para todos os efeitos, uma experiência de trabalho.
Costuma-se dizer que em Portugal as empresas não apostam na investigação, mas provavelmente será necessário que os próprios investigadores mudem também a sua atitude face ao meio empresarial.

Produção científica é imprescindível ao desenvolvimento do país

Portugal consegue ter retorno do investimento aplicado em produção científica própria ou haveria vantagens em importá-la de países que a desenvolvem a mais baixo custo?

Quando se fala no desenvolvimento da investigação e da produção científica associa-se habitualmente essa dimensão ao fabrico de produtos. Mas ele representa muito mais do que isso, já que implica investir em conhecimento, em especialização e em qualificação, factores que nos podem trazer mais valias.
Hoje em dia, como já referi, a competitividade é muito grande, mas não acho que o desenvolvimento do país passe por produzir mais barato e mais rápido. O desenvolvimento passa sobretudo por sabermos fazer melhor. E a única forma de conseguirmos atingir esse objectivo é investir em ciência, em formação e em melhores equipamentos. A formação acrescida dos cidadãos é sempre uma ferramenta que nenhum país deve desprezar.

Referia-me mais concretamente à relação entre o custo e o benefício da investigação científica?

Sim, julgo que esse esforço vale definitivamente a pena. Penso que ainda é possível tirar melhor proveito daquilo que por cá se faz, mas considero que é a única forma de fazermos avançar o país.

Entre 2001 e 2002 o número de licenciados em Matemática, Ciências e Tecnologia cresceu 7 por cento, ultrapassando em larga medida os 1,6 por cento que haviam sido definidos nos objectivos da Estratégia de Lisboa para a educação e a formação na Europa. Afinal o que falta em Portugal: investigadores ou maior apoio à investigação?

Quando se pensa na formação de investigadores associa-se habitualmente a sua actividade futura a laboratórios experimentais. Porém, é importante pensar na formação de investigadores que se dediquem a funções não exclusivamente técnicas, como a melhoria da capacidade de produção das empresas ou na área de aconselhamento, entre outras.
É fundamental não descurar essas necessidades, principalmente quando se sabe que em Portugal existe pouca procura pelas áreas científicas, muitas vezes justificada precisamente pela falta de saídas profissionais. Nesse sentido, considero que existem cursos das áreas científicas e tecnológicas aos quais seria importante dar um impulso.
Por outro lado, e partindo do contacto que vou estabelecendo com os alunos do ensino secundário, os jovens têm frequentemente a ideia de que as formações nestas áreas são muito limitadas em termos de percurso profissional, o que não corresponde à verdade. Há que pensar que hoje em dia um curso não é um fim em si mesmo, é uma base, uma ferramenta.
É o meu caso, por exemplo. Apesar de ter uma formação em engenharia alimentar, trabalho na área de biomateriais e química de polímeros aplicados à medicina. Assim, quando recebemos visitas de estudantes é esta a mensagem que procuramos passar. É importante fazermos o curso da nossa preferência, de forma a estarmos motivados, mas o fundamental é ter uma boa base científica e linguística, pensando que após a formação inicial devemos actualizar permanentemente os nossos conhecimentos.

Os investigadores portugueses a trabalhar no estrangeiro afirmam habitualmente que não pretendem regressar ao país por falta de condições para desenvolver o seu trabalho. Concorda com esta posição?

Eu compreendo que por vezes se possa ter essa opinião, sobretudo quando se esteve muito tempo fora e se perdeu o contacto com a realidade portuguesa. Após um certo período a viver num país estrangeiro é natural que as pessoas acabem por se habituar ao meio. No entanto, penso que actualmente se estão a criar condições para aqueles que eventualmente queiram regressar. E o seu contributo seria sem dúvida importante, porque trazem consigo outros métodos de trabalho e de organização.
Depois, tudo depende da área científica de que estejamos a falar. Admito que em algumas áreas seja mais interessante ficar no estrangeiro, eventualmente pela existência de nichos ou por motivos de prestígio. Mas também acontece o contrário, isto é, investigadores estrangeiros que escolhem Portugal para trabalhar.
Além disso, acho que actualmente já não podemos pensar que o nosso emprego estará no sítio onde crescemos e estudamos, mas antes onde estão as oportunidades de trabalho. É um aspecto novo nas nossas vidas, especialmente tendo em conta a realidade portuguesa, mas que é inevitável. Hoje em dia a competição já não se faz apenas a nível local, mas internacional. Quando aqui [INEB] é aberto um concurso para um lugar, por exemplo, candidatam-se pessoas de todo o mundo.

O Estado, as empresas e a universidade na investigação científica

Qual deve ser a responsabilidade do Estado na promoção da investigação científica no nosso país?

Na minha opinião, o papel do Estado é imprescindível no que se refere ao investimento e à promoção da área científica, nomeadamente na construção de equipamentos, porque quando bem aproveitados são uma fonte geradora de riqueza. No entanto, acho que esse investimento ainda se encontra aquém do desejável.

Em que áreas julga, então, que o Estado deveria privilegiar o investimento?

No financiamento de projectos, na formação de recursos humanos, na modernização de equipamentos, tendo em conta que o ritmo de desactualização é hoje mais rápido, e na abertura de mais concursos para a carreira de investigação.
Se estabelecermos uma relação entre a produção científica portuguesa e o número de investigadores existentes, julgo que podemos considerá-la adequada e de boa qualidade. O principal óbice reside no facto de ainda não existirem investigadores em número suficiente dedicados exclusivamente à investigação. Esses lugares acabam muitas vezes por ser ocupados por docentes, que, no entanto, têm de dividir o seu tempo entre as aulas e o laboratório.
Assim, na minha opinião, é necessário criar condições diminuir a carga horária daqueles que querem dedicar-se em exclusivo à investigação, permitindo, ao mesmo tempo, que os investigadores em início de carreira ? que será provavelmente o período mais produtivo ? possam também eles dedicar-se também eles mais à investigação e menos às aulas. Seria uma forma de o Estado, embora indirectamente, contribuir para a promoção da investigação científica.

Nesse sentido, acha que o Estado tem uma estratégia clara para a área da investigação?

Eu penso que nos últimos anos foi feito um esforço para dotar o país de massa crítica. Foram criados os laboratórios associados, houve investimento em equipamento, a preocupação em formar técnicos e, talvez mais importante, a implementação de sistemas de avaliação ? e acredito que esta é a única forma de garantir a credibilidade, a qualidade e o investimento. Esta mudança implicou mexer com as práticas instaladas, mas julgo que criou as condições que permitem actualmente pensar em termos estratégicos para o futuro.
Isso não significa, porém, que agora nos acomodemos. Nenhum país, por mais desenvolvido que seja, pode afirmar que não precisa de investimentos contínuos, porque se o fizer pára. Muito menos o nosso. Temos de pensar que este é um processo em constante dinâmica.

Considera que o tecido empresarial português está também apostado nessa mudança?

Há empresas em Portugal que apostam seriamente na investigação. A maioria, no entanto, encara esse investimento apenas numa perspectiva de curto prazo, o que na maioria das vezes é impossível de concretizar. No entanto, acho que os próprios investigadores têm alguma quota de responsabilidade nessa situação, porque também passa por eles a mudança deste tipo de cultura.
Portugal reúne condições para ser competitivo em áreas como as engenharias, as tecnologias ligadas às comunicações e a própria investigação médica e biomédica, porque são nichos de mercado que podem ser rentáveis. Mas para isso é preciso apostar, entre outras fontes de financiamento, na atracção de capitais de risco e não ficar sempre à espera que o Estado seja a tábua de salvação.
Seria importante, e vantajoso que as empresas, se elas também contribuíssem para esse esforço, porque dessa forma o Estado não teria de suportar a totalidade dos encargos e os investigadores e as universidades teriam mais oportunidades de desenvolver produção científica.
Porém, há que reconhecer que a ligação entre o ensino superior e as empresas é ainda ténue, em parte porque o sector industrial em Portugal não está muito apostado em desenvolver investigação aplicada, indispensável para a progressão do conhecimento.

De que forma é garantido o financiamento dos centros de investigação?

No caso do INEB, que é o exemplo que conheço mais de perto, a maioria do capital provém de verbas atribuídas pelo Estado, através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, e da União Europeia. O sector privado tem um peso ainda relativamente pequeno.
Na nossa área, são habitualmente os investigadores quem propõe os projectos de investigação, para os quais existem concursos de financiamento, que são avaliados por avaliadores externos para determinar a sua aprovação.
Depois, há também empresas que encomendam projectos de investigação para o desenvolvimento de produtos específicos, que podem ou não ser objecto de comparticipação de verbas públicas.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 157
Ano 15, Junho 2006

Autoria:

Ana Paula Pêgo
Investigadora de biomédicas
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ana Paula Pêgo
Investigadora de biomédicas
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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