Funções públicas
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A sala de espera tornara-se familiar. O sorriso da funcionária da recepção mostrava uma cumplicidade misturando dó e piedade. Era a terceira vez que Carlos preenchia a hora do almoço e mais algumas de trabalho para se deslocar ao 6º andar da repartição a fim de tratar da papelada. Dispensou dizer ao que vinha. Pois mal ainda se aproximara do balcão de atendimento já a recepcionista avisava: «Tem de esperar um bocadinho, a doutora está ocupada, mas atende-o já!» Em sinal de assentimento Carlos procurou uma cadeira e sentou-se. À sua volta, apesar dos lugares vazios, algumas pessoas permaneciam em pé. Novatos, pensou sorrindo de si para si. No primeiro dia todos caiam no logro do "atende-o já", da recepcionista. Pousou a pasta no colo e deitou a mão a uma revista das muitas pousadas numa mesinha de apoio. Era a RFR, a revista dos funcionários da repartição dedicada à Páscoa. Na capa um coelho a saltar de um ovo ilustrava um título sugestivo: "Funcionários da Repartição saem da Casca". Lá dentro, uma reportagem contava as aventuras dos funcionários na prova de raly paper organizada pelo clube desportivo durante um fim-de-semana, prolongado pela ponte da Semana Santa. A responsável pela contabilidade mostrava o seu jeito para a culinária e publicava a receita dos "Ovos Moles à La Contabilista". E alguns dos filhos dos funcionários publicavam as suas primeiras obras literárias na secção Filhotes Sobredotados dedicada à divulgação dos dotes artísticos da pequenada dos 5 aos 12 anos. Estava Carlos a ler a secção Funcionário do Mês, que premiava os mais rápidos nos atendimentos e onde se faziam as contas aos rankings para a grande final dos desempenhos anuais, quando a recepcionista o interrompeu: «A doutora vai recebe-lo!» Pousou a revista sem desejar voltar a ter de pegar nela, mas sem ter a certeza que dela se despedia e dirigiu-se ao gabinete da doutora. «Posso?», perguntou ao abrir a porta. «Entre.» «Obrigada.» «Faça favor?» De braço estendido a doutora indicava-lhe a cadeira à sua frente. Carlos sentou-se. «Bom, não sei se está recordada, eu vim aqui ontem entregar a papelada do processo mas faltou-me um documento. Uma procuração?» «Ah, sim? e já a tem?» «Sim, está aqui tudo o que me pediu?» Sorrindo a doutora pegou na papelada pousou-a na secretária. «Ora bem, vamos lá ver isto. Portanto: a procuração original e a fotocópia, o.k. Agora deixe ver, fotocópia do bilhete de identidade, do cartão de contribuinte, o.k. Fotocópia da declaração do IRS, muito bem, e a fotocópia da nota de liquidação do IRS?» «Está aí?» «Ah, o.k. está aqui, fotocópia do contrato? ora bem?mas isto está ilegal!!!» «Como?» «Isto está ilegal!!!», repetiu a doutora olhando para o papel. Mas quando ia a explicar a razão de tal evidencia o telefone tocou sem dar tempo a Carlos de manifestar a sua estupefacção perante a situação. «Estou sim? Olá querida. Tudo bem contigo?» (?) «Pois é, pois é, estou em dívida? é verdade.» (?) «Pois não, pois não?» (?) «Ando muito ocupada, muito trabalho, muito trabalho e ainda por cima estou sem empregada?» (?) «Uma chatice? ai nem imaginas? são dois andares para limpar, é roupa para passar que não fazes ideia olha, um horror?» (?) «Não sei? ela disse-me que ia faltar uns três dias por razões pessoais? eu disse-lhe que tudo bem? mas já me desapareceu há duas semanas.» (?) «Pois, mas é tão difícil arranjar alguém de confiança?» (?) «Pois não, sei que não? mas e se ela me aparece e eu já lá tenho outra pessoa? é muito aborrecido?» (?) «Eu sei, eu também queria estar contigo para conversar? mas queria estar com tempo e não às pressas?» (?) «Olha, estou a ouvir qualquer coisa? é o meu telefone ou o teu?» (?) «Olha, tenho aqui um atendimento?» (?) «Não te preocupes que tu estás na minha lista de prioridades? assim que tiver um tempinho, ele é teu?» (?) «Olha , tenho mesmo de ir?» Carlos assistia nervoso com a suspeita de ilegalidade, mas sem mostrar cara de frete pois podia ainda depender muito da doutora e não a queria ver maçada com a sua impaciência. Por isso sorria. Condescendente, acenava com a cabeça em sinal de compreensão. «Desculpe a interrupção», disse por fim a doutora pousando o auscultador. «Mas estava a dizer que o contrato está ilegal?» «Ah ? Pois? isto não pode ir assim porque só aceitamos um contrato e este ponto dá a entender que existem dois?» «Como assim?» «Olhe, vamos lá ver este português? É que não está compreensível: "Artigo 3.º O contrato é celebrado por três meses, período acordado pelas partes como necessário à realização do disposto no artigo 2º. , findo esse período, o contrato é automaticamente renovado por cinco anos." Vê, não está lá muito claro, pois não?»
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Ficha do Artigo
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Edição:
Ano 14, Abril 2005
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Autoria:
Jornalista, A Página da Educação
Jornalista, A Página da Educação
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