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Movimento dos Sem Terra do Brasil: A revolução tranquila

O pai é um pequeno agricultor ?assentado? em 1979, final da ditadura militar e início da tomada da terra aos grandes fazendeiros, período de lutas e batalhas que fizeram correr sangue pelos campos do Brasil. Com o crescimento da família, o pequeno pedaço de terra conquistado já não satisfazia as necessidades de todos e o filhos tiveram de partir na procura do seu próprio sustento, ajudando a organizar aquilo que é hoje o Movimento dos Sem Terra (MST) do Brasil.
Esta é, em poucas palavras, a história de Vanderlei Martini, 26 anos, também ele agricultor, hoje um dos principais dirigentes do MST. "DepoiMovimento dos Sem Terra do Brasil: A revolução tranquilas de muita luta já consegui o meu pedaço de terra, mas continuo a contribuir politicamente na organização dos camponeses para que mais gente possa ter acesso a ela, tal como aconteceu comigo", diz Martini. Nesta entrevista, o testemunho na primeira pessoa de alguém que participou nas frentes de ocupação do MST e que considera estar em curso uma revolução social no país dos coronéis. 


Em que contexto surge o Movimento dos Sem Terra (MST) do Brasil?
                                  

A luta pela terra no Brasil começa no final de 1979, por altura do declínio da ditadura militar. A fundação oficial do MST dá-se em Janeiro 1984, apoiada em três grandes motivos. Em primeiro lugar pelo esgotamento do modelo agro-industrial que foi implementado no país entre 1930 e 1970 - através do qual muitos camponeses foram incentivados a deixar o campo para ir trabalhar nas fábricas que proliferavam nos meios urbanos -, que entra em plena crise na década de 70 por não haver emprego que satisfizesse a procura.
Por outro lado, pela necessidade de implementar uma reforma agrária no Brasil. Apesar de historicamente sempre ter havido gente que lutou por essa reforma agrária, o Brasil nunca tinha tido um movimento social organizado que a reivindicasse e lutasse por ela. 

Uma reforma agrária que, inclusivamente, está inscrita na constituição brasileira desde 1988?

Sim. E cujo principal objectivo é o de desenvolver o mercado interno brasileiro.
O terceiro grande factor que impele o surgimento do MST foi a melhoria das condições de vida da população camponesa brasileira. De acordo com algumas estatísticas recolhidas no final da década de 70 e princípio de 80, a vida no interior brasileiro era uma das mais atrasadas do mundo. A reforma agrária era também, nesse sentido, um instrumento para elevar o nível cultural e de qualidade de vida dessa população.

O MST é um dos movimentos sociais que mais tem contribuído para suster o avanço de políticas económicas neo-liberais no Brasil. Como caracterizaria o vosso papel nessa ?contra-ofensiva??

O MST obedece a três grandes princípios: democratizar o acesso à terra no Brasil; implementar uma reforma agrária - que seja mais do que uma simples conquista de terra e implique políticas públicas orientadas para o meio rural -; e lutar por uma sociedade diferente e igualitária, o que implica necessariamente suster o avanço das políticas neo-liberais no Brasil. Elas não trazem nenhum benefício para a maioria da população brasileira, tal como não beneficiam a maioria da população mundial.
Esta luta do MST contra o neo-liberalismo, empreendida em conjunto com a sociedade civil organizada, insere-se numa ?contra-ofensiva? estratégica que se direcciona mais concretamente para a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), impulsionada pelos Estados Unidos, através da qual haverá uma regressão ainda mais drástica nas conquistas sociais que o povo brasileiro conseguiu adquirir ao longo da história mais recente.

Em que ponto está esse acordo? O Brasil já o assinou?

De acordo com a agenda norte-americana está previsto que ele entre em vigor nos vários sectores de actividade económica em 2005, mas já existem grupos de trabalho que iniciaram a implementação de algumas das medidas previstas. É o exemplo da agricultura, onde se está a proceder à introdução de culturas transgénicas e de extensas áreas de monocultura, mas que se reflecte igualmente nas pequenas e médias empresas, que têm fechado a um grande ritmo.
O pior de tudo é que a ALCA pretende ?dolarizar? a economia brasileira, extinguindo o real, e acabar de privatizar as empresas estatais que ainda existem no Brasil, nomeadamente na área da educação e da saúde.

Em que fase está a reforma agrária no Brasil?

Pode dizer-se que a reforma agrária no Brasil está actualmente numa fase de ?disputa?, já que existe um sector da sociedade - como os grandes banqueiros, os grandes proprietários (que possuem aproximadamente 120 milhões de hectares de terras improdutivas, o equivalente a dez vezes o território português), o poder judicial e os grandes meios de comunicação, - que não quer a implementação da reforma agrária; mas há outro que a quer e que acredita nela como o meio mais eficaz de resolver alguns dos grandes problemas da sociedade brasileira, e nele se incluem o MST, outras organizações de camponeses e o próprio presidente da República, Lula da Silva.

De que forma pode esse processo de reforma agrária contribuir para ajudar a resolver os problemas do Brasil?

No Brasil existem hoje 20 milhões de pessoas desempregadas; 14 milhões que não têm uma casa para morar; 50 milhões são indigentes; 80% é semi-analfabeta (ou sabem quando muito escrever o primeiro nome); é um país onde 1% dos proprietários rurais possui 46% das terras do país, um dos que concentra o maior rendimento a nível mundial e, ao mesmo tempo, produz uma das maiores desigualdades sociais.
O MST considera que a reforma agrária poderia ajudar a resolver alguns destes problemas na medida em que criaria emprego na área da agricultura e traria uma maior dinâmica económica. Basta lembrar que um emprego na indústria ou no comércio custa aproximadamente 30 mil euros, ao passo que para gerar quatro empregos na agricultura esse custo baixa aproximadamente para os 10 mil euros, com a vantagem de cada emprego criado directamente originar a criação de quatro empregos indirectos.

O presidente Lula da Silva tem correspondido às expectativas dos movimentos sociais que ajudaram a elegê-lo, nomeadamente o MST?

Nós costumamos dizer que o presidente Lula tem dado ?uma no cravo, outra na ferradura?. Porém, temos de compreender que o presidente Lula não formou propriamente um governo de esquerda, já que agrupa diversas forças políticas, inclusivamente do centro e da direita. É o exemplo do ministro da agricultura, Roberto Rodrigues, que está associado a empresas multinacionais americanas.

Não será provavelmente a melhor pessoa para conduzir uma reforma agrária de cariz popular?

Sim? Aliás, o actual ministro não tem qualquer responsabilidade na realização da reforma agrária?

Não faria sentido o MST pressionar o governo para mudar o ministro?

Quem formou este governo foi o presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores, a responsabilidade é deles. Quanto a nós continuamos a cumprir o nosso papel, mostrando ao governo quais as necessidades e as demandas sociais do povo brasileiro, e isso temos cumprido. Mesmo no ano em que o novo governo tomou posse, o MST continuou com a ocupação de terras, com as marchas e com todo o trabalho que vínhamos realizando, sem prejuízo do diálogo com o presidente Lula. A melhor maneira de pressionar um governo é apontando necessidades concretas e não abdicar de uma luta contínua.

Como é a vida quotidiana num assentamento do MST?

O dia-a-dia num assentamento é bastante complexa porque obedece a uma organização social que simula o embrião da sociedade que o MST almeja para o futuro de todas as trabalhadoras e trabalhadores deste planeta. Nos assentamentos toda a gente trabalha - o dia inteiro, o mês inteiro, o ano inteiro -, todos têm uma casa para morar e todos comem três vezes por dia, alimentados pelo seu próprio trabalho. Nos assentamentos todos participam nas actividades políticas e culturais, nomeadamente no resgate da cultura camponesa brasileira. É uma vida em harmonia, onde não existe nem prostituição, nem droga, nem violência.

Como se estrutura essa organização de que falou?

Em cada assentamento existe uma organização por grupos de famílias. Num assentamento com cem famílias, por exemplo, existem dez grupos de famílias, cada qual formando um núcleo com a respectiva coordenadora e coordenador, que têm como tarefa incentivar e coordenar os debates internos. Cada assentamento tem, por sua vez, uma coordenadora e um coordenador que o representa, e os vários assentamentos formam uma coordenação regional do MST, que se amplia para uma organização estadual. É uma vida democrática e participativa.

Quantos assentamentos existem no Brasil?

Cerca de dez mil, juntando quinhentas mil famílias, representando um total aproximado de 2,5 milhões de pessoas.

Como se distribuem geograficamente?

Depende da relação de forças concreta e das possibilidades de poder realizá-los ou não. O movimento está organizado nos 23 estados, do Ceará ao Rio Grande do Sul. Há apenas quatro estados onde não estamos organizados, situados no extremo norte, próximos da região amazónica. Apesar desta amplitude geográfica do movimento, ele concentra-se sobretudo na metade sul do país, devido, em parte, às melhores condições climáticas e de produção agrícola.

Referiu-se às condições climáticas mais propícias no sul, mas não estarão também reunidas melhores condições políticas?

O norte do Brasil está mais atrasado por causa dos interesses políticos que caracterizam a região. Se houvesse realmente interesse por parte das elites brasileiras em investir nessa região ela já teria ultrapassado o subdesenvolvimento que a caracteriza. É um problema político e de poder negocial. Nesta região a democracia só funciona na teoria. Os proprietários das terras têm milícias armadas e muitas vezes são eles próprios, ou os familiares, os representantes do poder político, judicial e policial. Os trabalhadores agrícolas trabalham, em algumas situações, sob condições desumanas, muitas vezes apenas a troco de comida. Aliás, muitas fazendas foram fechadas nos dois últimos anos por denúncias de trabalho escravo.

O Estado reconhece os assentamentos?

Os assentamentos são reconhecidos pelo Estado através da lei inscrita na constituição federal, nos artigos 184º e 185º, onde se refere que toda a terra que não estiver a cumprir uma função social deve ser destinada à reforma agrária. Tal como os assentamentos, também os acampamentos são reconhecidos pela legislação. Mas, mais importante, eles são igualmente reconhecidos pela sociedade brasileira como uma forma legítima e pacífica de pressionar o Estado a cumprir a reforma agrária.

Como é a relação com as comunidades locais?

No Brasil existem cerca de 5300 cidades, a maior parte delas com dez, quinze, vinte mil habitantes. A larga maioria dos assentamentos que ajudamos a erguer, através da democratização do acesso à terra, acabaram por se tornar no principal motor de desenvolvimento da economia local, dinamizando as relações comerciais e criando emprego directo e indirecto. É preciso não esquecer que a maioria dos latifúndios a que me refiro não produziam nada até essa altura.

Qual foi o sentimento que o dominou quando participou na sua primeira ocupação de terra?

É natural que o primeira sentimento seja de medo, que foi o que aconteceu comigo. Mas depois de percebermos que estamos acompanhados de temos uma multidão que tem exactamente os mesmos objectivos, que sente na pele a mesma história de opressão, de exclusão social e que caminha na mesma direcção, alimentamo-nos de esperança e enchemo-nos de orgulho. A sociedade capitalista ensina-nos que se estamos numa situação de pobreza a culpa é nossa. Mas ninguém é pobre nem excluído das questões sociais só porque quer.

O MST dá um particular destaque ao processo educativo e baseia muitos dos seus métodos nos ensinamentos do Paulo Freire. Até que ponto o pensamento deste pedagogo influencia a aprendizagem nas escolas dos assentamentos do MST?

Sim, a educação desempenha um papel primordial no seio da nossa organização, e na nossa perspectiva deve ser desenvolvida a partir da realidade existente. Qualquer lugar é para nós um lugar de escola e de educação, através de um processo que procura respeitar a realidade das famílias, da sua história, da sua cultura e dos seus valores, no intuito de formar seres humanos. Essa é a principal diferença em relação à educação tradicional, que forma as pessoas numa perspectiva de qualificação para o mercado de trabalho e para a competição. No MST procuramos uma educação que privilegie o ?ser? e não o ?ter?.
É nesta perspectiva que colhemos uma contribuição fundamental do Paulo Freire ? mas também de Macarenco e Pistrac - e da própria pedagogia da luta dos Sem Terra, entendendo a educação como um meio de transformação da sociedade. Costumamos dizer que se fizermos a reforma agrária na educação e nas escolas concerteza faremos a reforma agrária nos campos. E se fizermos uma revolução na educação e nas escolas podemos também conseguir fazer uma revolução no Brasil. 

Porquê essa valorização da educação no vosso movimento?

Diria que à volta de 85% dos camponeses que ingressa no MST não sabe escrever sequer o próprio nome. É difícil para estas pessoas enfrentar uma sala de aula, sendo por esse motivo que o processo de alfabetização se dá nos próprios assentamentos. E tem dado bons resultados. As pessoas começam a aprender e, aos poucos, vão sendo capazes de aproveitar os conhecimentos em coisas práticas da vida, como apresentar um projecto para pedir um empréstimo ao banco, participar nas reuniões, tomar notas, escrever? Puxa vida! O destino destas pessoas transforma-se por completo porque se tornam cidadãos de pleno direito e crescem na sua auto-estima.
Consegue imaginar o que isto representa para alguém que não tem emprego, que não tem nada para dar de comer aos filhos, que não sabe escrever o próprio nome? Em poucas palavras, o objectivo do nosso processo educativo é recuperar o cidadão e a fragilizada auto-estima do povo trabalhador brasileiro.

Sei que contam com o trabalho voluntário de muitos professores e pedagogos?

Uma parte do trabalho desenvolvido recorre a professores contratados, mas a maior parte provém, de facto, do trabalho voluntário de muitas professoras e professores, para o qual contamos também com o apoio de organizações internacionais e de convénios com o ministério da educação brasileiro, ajudando-nos a desenvolver as escolas nos assentamentos.
Por outro lado, seria injusto não referir a importante contribuição política da igreja mais progressista do Brasil neste movimento ? em especial a Comissão Pastoral da Terra e as comunidades eclesiásticas de base, apologistas da teologia da libertação. É uma contribuição mútua, porque se a igreja, na sua essência mais abstracta, encontra uma alternativa concreta no MST, o MST, como elemento concreto, também se alimenta dessa espiritualidade para continuar a sua luta.

O MST tem alguma ambição em transformar-se num partido político?

O MST é mais do que um simples movimento social que luta pela reforma agrária, mas só terá a ganhar se mantiver as suas características originais. Um dia que elas se percam deixamos de ser o MST.
O MST pode definir-se como movimento sindical na medida em que luta por conquistas sociais e pela melhoria da qualidade de vida do povo, como um movimento popular, pela ampla base de apoio que possui e que cresce diariamente, como um movimento autónomo, independente dos partidos políticos, das igrejas e dos sindicatos, e como movimento político, não no sentido que tradicionalmente se lhe associa mas no sentido de reivindicar as mudanças sociais e políticas que a sociedade brasileira reivindica.
Se as eleições resolvessem os problemas do povo os brasileiros não estariam a enfrentar as dificuldades que actualmente atravessam. O que resolve os problemas é uma força social organizada e governos comprometidos com as exigências sociais.
No entanto, nada disto impede que o MST colabore com o poder político, nomeadamente com as autarquias do Partido dos Trabalhadores. Uma reforma agrária de características populares como esta, que pretende beneficiar os trabalhadores do campo, não é possível de ser concretizada no interior de um sistema que tem uma lógica completamente inversa. Por isso, é preciso mudar o sistema, e é também para isso que trabalhamos. 

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 129
Ano 12, Dezembro 2003

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Vanderlei Martini

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Vanderlei Martini

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