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Maldita ou bendita matemática...?

O ensino da matemática tem estado em foco pelos piores motivos. Portugal aparece nos últimos lugares dos estudos internacionais que avaliam o desempenho dos alunos nesta disciplina. Se alguns vêm no laxismo dos alunos a causa para este descalabro, outros não hesitam em apontar aos professores a causa para este insucesso. Mas será assim tão simples? João Pedro Ponte, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, acha que não e desmonta nesta entrevista as razões que o levam a dizer que, mais do que procurar bodes expiatórios, vale a pena analisar em que consiste essa crise e procurar estratégias que possam ser utilizadas para a ultrapassar.

 
Parece haver uma espécie de sentimento fatalista em torno da matemática. Porém, nem todas as pessoas têm o mesmo entendimento acerca do insucesso nesta disciplina. O professor é uma delas. Pode explicar-nos em que medida?

Para muitas pessoas, ter insucesso em Matemática é não saber a tabuada, errar uma conta ou não saber o que é uma arroba ou um quarteirão. No entanto, na minha perspectiva, pensar que a Matemática é uma colecção de regras a aplicar conforme as situações, ou pensar que todo o problema tem sempre uma e uma só solução, são também indicadores de insucesso. Achar que a Matemática não serve para nada e ser incapaz de usar ideias e representações matemáticas para lidar com situações do dia a dia, são talvez os aspectos mais negativos do insucesso nesta disciplina. Por isso, parece-me um erro reduzir o problema do insucesso às dificuldades de muitos alunos na realização de algoritmos e na memorização de factos específicos, pois esses aspectos são os que mais facilmente podem ser torneados recorrendo a instrumentos de cálculo e a outras fontes de informação.
O que lhe estou a dizer sugere que o insucesso real é ainda maior do que o que muitas vezes se pensa. Note, no entanto, que o problema não é só de agora. Há muitos e muitos anos que é assim. Tem-se tornado, talvez, mais evidente por força dos estudos internacionais de comparação de desempenho dos alunos e pela atenção que os meios de comunicação social têm dado aos resultados dos exames.
Trata-se de um problema que, necessariamente, levará muitos anos a resolver e que exigirá o concurso de vários intervenientes: professores, alunos, encarregados de educação, matemáticos, investigadores em educação, formadores de professores, técnicos da administração educativa e políticos a nível local e nacional. Infelizmente estes actores educativos têm estado de costas voltadas uns para os outros e, por vezes, guerreando esterilmente entre si.

Que factores contribuem para o insucesso da matemática no seio dos estudantes portugueses? O método de ensino e aprendizagem é, segundo refere, um dos principais, senão o principal, factor para esse insucesso. Pode comentar?

Os factores são vários. Temos de ter em atenção que os problemas não são só em Matemática. Na verdade, existe uma crise geral da escola. A Matemática, no entanto, constitui um caso à parte, mais sério do que das restantes disciplinas, e para isso concorrem aspectos, antes de mais, de natureza curricular. Isso traduz-se numa tradição pobre de desenvolvimento de programas e materiais de ensino, numa insuficiente concretização das orientações curriculares dos programas em vigor e no carácter algo difuso das finalidades do ensino na Matemática e das expectativas de desempenho dos alunos. Como consequência, os métodos de ensino-aprendizagem que se usam nem sempre são os mais indicados para cada grupo de alunos.
Se o professor não apresenta situações que despertem o interesse do aluno, se não fala uma linguagem que ele entenda, se não o desafia com tarefas adequadas, o mais natural é que este se desinteresse pela Matemática e volte a sua atenção para outras actividades e oportunidades que a sociedade lhe oferece. É preciso, portanto, preservando os valores e as características próprias dos conceitos e ideias matemáticas, trabalhá-los de um modo que se estabeleça efectiva ressonância cultural com os jovens de hoje.
Mas não nos devemos esquecer que há outros factores, para além dos métodos de ensino-aprendizagem, que contribuem para a existência de insucesso. Um deles é que a Matemática tem sido o principal instrumento de selecção dos alunos, nomeadamente, para a frequência do ensino superior. Nesse papel actua de modo cego, através de um programa único, subordinado à lógica da Matemática Pura e às necessidades dos cursos de ciências e tecnologia. E, além disso, tem havido também muita ligeireza no tratamento das questões da formação e do recrutamento de professores, em especial na definição das chamadas "habilitações próprias" e na avaliação do funcionamento de muitos cursos de formação inicial de professores.

Outro dos principais factores, na sua opinião, é uma "cultura profissional marcada pelo individualismo" e a "falta de investimento político". É preciso, então, dar início a uma reforma educativa no ensino da matemática?

Essa cultura profissional ainda é a prevalecente. Vêem-se muitos professores a colaborar com um ou dois colegas na preparação de materiais para as suas aulas ou na elaboração de instrumentos de avaliação, mas são raras escolas em que o grupo disciplinar de Matemática tem uma prática efectiva de colaboração profissional.
A colaboração, o estudo, a actualização permanente, a reflexão e a própria investigação sobre os problemas da sua prática, deveriam ser, quanto a mim, aspectos salientes na cultura profissional dos professores, pois só desse modo teríamos a garantia de um ensino atento aos problemas e necessidades concretas de cada região, de cada escola e de cada grupo de alunos.
Quando falo na necessidade de mais investimento político refiro-me a programas mobilizadores, com continuidade, que tornem inequívoco para professores, alunos e pais, a importância se quer dar efectivamente a esta disciplina escolar. A constituição de parcerias e projectos envolvendo diversos actores educativos, sociais e políticos, como referi, poderia ser um bom meio de concretizar esta perspectiva.

Nesse sentido, defende, por exemplo, que os programas e exames deveriam adequar-se ao percurso escolar e aos objectivos dos alunos...

Actualmente, no ensino secundário, os mesmos programas servem os cursos superiores das áreas de ciências naturais, de ciências sociais e de índole artística, tanto para os alunos do cursos gerais como dos cursos tecnológicos. É claro que os alunos dos cursos tecnológicos têm normalmente uma preparação matemática muito mais fraca e um interesse pela disciplina à partida muito inferior ao dos seus colegas dos cursos gerais. Tendo que trabalhar o mesmo programa e que fazer o mesmo exame, não admira que estes alunos tenham taxas de reprovação elevadíssimas. O que defendo, portanto, é que no ensino secundário se diferenciem as vias de formação matemática, de acordo com as necessidades e características dos alunos, tendo cada uma delas a avaliação correspondente.
Nas últimas restruturações curriculares têm-se dado passos em frente neste campo, mas há ainda muito por fazer. E também se têm dado passos para trás, como a eliminação da disciplina de Métodos Quantitativos (no 10º ano) que, com todos os seus defeitos, sempre dava o seu contributo para um pouco mais de literacia matemática nos alunos das áreas humanísticas, artísticas, etc.
Para além disso, é de notar a avaliação dos alunos não tem que ser apenas feita exclusivamente através de exames. Existem formas alternativas de avaliar algumas das capacidades dos alunos, incluindo por exemplo relatórios, trabalhos e portfolios, que poderiam ser usados, de acordo com as circunstâncias, nos diversos níveis de ensino.

Finalmente, sugere cinco linhas fundamentais para um programa de combate ao insucesso em matemática. Quais são elas?

Haverá muitas coisas a fazer, mas há cinco aspectos que considero fundamentais. Em primeiro lugar, penso que deveríamos, clarificar as finalidades do ensino da Matemática, de modo equilibrado, tendo em atenção que, no ensino básico e secundário, o que está prioritariamente em causa, é a formação da generalidade dos alunos para participar activa e criticamente numa sociedade marcada pela presença da tecnologia, não é a formação de uma elite científica.
Em segundo lugar, é preciso que se saibam quais são as expectativas que tem do desempenho dos alunos. Eles devem saber que se acredita que são capazes de atingir esses objectivos e que têm uma responsabilidade fundamental nesse processo.
Outro domínio é o da diversificação dos programas. No ensino secundário é necessário atender à diversidade de interesses e de capacidades dos alunos, por demais evidente nas áreas e vias de ensino que escolhem. No ensino básico, é preciso que os professores façam uma gestão criativa do currículo em função das realidades locais e das características dos seus alunos.
Em quarto lugar, é preciso reduzir o papel da Matemática como instrumento de selecção ao estritamente necessário. O ideal seria repensar todo o sistema de acesso ao ensino superior. Este nível de ensino, por sua vez, deveria ter em atenção o modo de lidar com os alunos que lhe chegam com uma preparação matemática inferior ao esperado.
E, finalmente, será de promover uma nova cultura profissional entre os professores, proporcionando-lhes oportunidades de formação adequada, apoiando e valorizando os seus projectos, e dotando as escolas das necessárias condições e recursos.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 125
Ano 12, Julho 2003

Autoria:

João Pedro Ponte
Professor na Faculdade de Ciências, Univ. de Lisboa
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
João Pedro Ponte
Professor na Faculdade de Ciências, Univ. de Lisboa
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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