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Os «hominhos» verdes

A professora sentiu-se esquisita quando lhe disseram o número do código da escola que lhe saíra no concurso. Ter um número era sinal de que ia ter trabalho. Mas onde? Ficou imensamente curiosa em saber que nome se escondia por trás do número. Quando lhe disseram o nome da terra esta era-lhe completamente desconhecida. O nome estranho da terra fez-lhe aumentar o nervosismo e aquele sentimento esquisito que tinha tomado conta dela.
Em casa procurou o nome da terra num mapa das estradas de Portugal. Mas o nome não constava. Alguém alvitrou que talvez através do 118 conseguissem saber alguma coisa sobre a terra, por exemplo um número de telefone ao qual ligar a pedir informações. Ao fim e ao cabo devia haver um telefone naquele sítio. Havia. Foi assim que recebeu indicações sobre o modo de lá chegar.
A professora acompanhada pelo namorado aproveitou o primeiro fim de semana para ir descobrir o seu futuro local de trabalho. Descobriu uma aldeia perdida numa serra, isolada mas ainda com vida. Na pequena aldeia, assustadoramente silenciosa, havia algumas crianças.
Alguns dias depois, ultrapassada a surpresa e controlado o sentimento esquisito, a professora encetou o trabalho de se fixar no local, durante o ano de trabalho que tinha pela frente. E lá ficou, como pôde.
Iniciou o trabalho com entusiasmo. Com a ajuda das crianças  deu um jeito ao espaço de trabalho para que não continuasse tão feio e frio. Depois do primeiro fim de semana levou algumas coisas de casa. Humanizou, como pode, o mundo onde ela e as crianças iriam trabalhar e viver. E começaram então a trabalhar e a aprender.
A professora foi conhecendo as suas crianças e, pouco a pouco, elas começaram a ser-lhe indispensáveis. Foi reparando nas imensas carências que tinham. Umas mais dolorosas que outras. Umas mais difíceis de superar que outras. Mas não desistiu.
Entre outras coisas de menos, as crianças nunca tinham visto o mar, um combóio, uma cidade. E os manuais escolares falavam dessas coisas. Foi por isso que se meteu na cabeça da professora a indispensabilidade de levar as crianças a visitar a cidade. Foi um objectivo que se revelou difícil de concretizar.
Conversas com o presidente da junta de freguesia. Ofícios à Câmara Municipal. Reuniões com os pais. Idas à Câmara que os ofícios não tinham resposta. E depois de muito trabalho, de muita conversa, de muito anda para cá e para lá, conseguiu-se uma camioneta. E um lanche preparado pelas mães das crianças.
A professora decidiu-se por uma visita à cidade do Porto. Era uma oportunidade de irem ver o mar, espreitar os comboios e sentir uma cidade. Assim foi. Saíram cedo. Fizeram boa viagem. Cantaram. Foram à foz e viram o mar. Merendaram no Palácio de Cristal. Viram os comboios na estação de São Bento e passearam pela rua de Santa Catarina. No fim do dia estavam, crianças e professora, excitadas e cansadas. Regressaram à aldeia onde chegaram com grande alarido e contentamento da pequenada e olhar saudoso e aprovador dos pais.
Diz a professora que a visita deu um inestimável material de trabalho.
Durante algumas aulas conversou-se sobre a viagem. Tudo serviu para  descobrir e redescobrir coisas. A viagem, os pequenos acontecimentos, os comportamentos deste e daquele, foi tudo devidamente explorado e comentado. Depois da conversa passou-se a aulas práticas. A professora decidiu começar pelo desenho. As crianças tiveram dias de desenho. Assim ilustraram, com muita cor, o que viram e como o viram. Veio depois  a escrita. Escreveram, primeiro sobre vários aspectos da viagem, a pedido da professora. Finalmente chegou-se à expressão livre, ao exercício de criatividade. A professora pediu a cada menino e menina, das que já sabiam escrever, que escrevessem um texto sobre o que mais gostaram de ver na cidade. Foi então que uma das crianças escreveu: «o que mais gostei de ver na cidade foram os ?hominhos? verdes». E mais à frente explicava: «nas cidades só se atravessam as ruas quando os ?hominhos? estão verdes». «A senhora professora disse que se os ?hominhos? estiverem vermelhos não se pode passar». «Quando os ?hominhos? estão amarelos, temos de olhar para um lado e para o outro para ver se podemos passar».
Esta composição que falava dos «hominhos» impressionou muito a professora e foi muito comentada por ela. É que só ao ler o texto da criança se deu conta de quanta coisa faltava explicar. Lá começou por dizer aos meninos e às meninas que era verdade que, por agora, só havia «hominhos» verdes, vermelhos e amarelos, mas que um dia, quando o mundo não fosse só mandado pelos homens, nos semáforos das cidades, também haveria «mulherinhas» verdes, vermelhas e amarelas e a cidade seria ainda mais bonita.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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