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Agora em Portugal até as moscas andam magras

Nesta viragem do ano, as nossas vidas são comandadas pela direita nacional e internacional. Em Portugal, o Governo e os jornalistas que o apoiam, desenvolvem um discurso que faz apelo ao sacrifício, à pobreza, à perda de direitos sociais e cívicos e ao regresso à vida triste e sofrida dos pobres e remediados do passado. Chego a ter a impressão de que está de regresso a velha concepção salazarista da vida.

Entramos num ano novo numa conjuntura desagradável. Internacionalmente domina o puritanismo protestante. Em Portugal cheira a um certo catolicismo bolorento. Em ambos os casos, os poderes dominantes dizem que as desigualdades sociais, o sacrifício e a subalternidade dos trabalhadores, a pobreza como norma, a frugalidade dos famélicos e o sofrimento, são elementos essenciais à boa marcha das sociedades. Nos dois casos se defende que os ricos devem ser cada vez mais ricos porque as migalhas que caírem da sua mesa serão a benção e a salvação dos mais pobres.
Num livro de leitura da minha escola primária, dos anos cinquenta, havia uma lição ilustrada por um desenho de duas mãos. Uma mostrava dedos com anéis, na outra os dedos estavam nus. O professor explicava às crianças que a dos anéis, a rica, era a mão do Diabo e que a nua, a pobre, era a mão de Deus. A lição prestava-se para disseminar a ética salazarista então vigente. Os assalariados deviam sofrer no presente em nome do futuro. Um sofrimento que seria compensado pela entrada no Céu depois da morte. O professor explicava-nos que era dos pobres e dos ofendidos o reino dos céus ? desde que aceitassem com humildade a sua condição de pobres. Quanto aos ricos teriam de comprar a entrada no Paraíso. No presente, os pobres deviam trabalhar muito, pedir pouco, dispor-se a sofrer e a obedecer respeitosamente aos seus «superiores». Ser-lhes submissos. Aceitar a desigualdade com naturalidade. Agradecer aos poderosos as migalhas que tombassem da sua mesa farta, o trabalho duro, o salário parco ou a esmola, a reprimenda e o conselho moralistas.
Alguma desta ética salazarista está agora a regressar a Portugal pela mão de políticos da direita, extrema-direita e jornalistas. Os governantes no poder e os papagaios do neoliberalismo na comunicação social, fazem apelo ao sacrifício, á perda de direitos e à pobreza dos trabalhadores em nome da economia e do futuro. Dizem e escrevem que os trabalhadores são uns malandros que é preciso meter na ordem e pôr a trabalhar e que é imperioso que entreguem  a vidinha ao «esforço nacional». A direita e extrema-direita dizem que os trabalhadores se habituaram nos últimos anos à malandragem. Ganham demais. Não poupam. Não trabalham. São improdutivos. Só pensam em férias e baixas. Consomem demais. Em resumo, são uma coisa reles, pior que a cigarra? são trabalhadores portugueses.
Escrevem e afirmam que no meio de toda esta imoralidade, escandaleira e esbanjamento nacional, quem mais sofre são os nossos empresários. Trabalham e investem imenso e mesmo assim não conseguem competir no mercado globalizado. É que os trabalhadores atrapalham. Mas o Governo, recuperando a austeridade, alguma pose e sisudez tão típicos do Estado salazarista ? pose magnificamente interpretada por Paulo Portas ? tomou a peito repor o bom andamento nacional, a moral, a «ética do esforço», o trabalho alto e a bola baixa. Aos donos do capital está a dar-lhes condições para que possam viver e robustecer-se em paz. Não os incomoda com impostos. Oferece-lhes incentivo económico do Estado e propõe-se publicar um novo código de trabalho que reconduza o povo ao trabalho servil, precário, obediente e dependente.
Aos trabalhadores, em particular aos que exercem a função pública, está a metê-los na ordem. Começou pelos mais jovens despedindo-os. Longe do trabalho não correm o risco de adquirirem os vícios dos mais velhos. Estes novos náufragos do trabalho, vivendo a incerteza do emprego, criarão o instinto de sobrevivência, a filosofia do salve-se quem puder, a capacidade de se agarrarem  ao primeiro destroço do mercado de trabalho. Aprenderão a aceitar agradecidos o que aparecer. Provavelmente regressarão velhos costumes que julgávamos em vias de extinção, fruto da dinâmica e segurança do mercado de trabalho. Regressará o compadrio, a cunha, o pedido, o empenho, o «faz favor», o agradecimento, a dependência, o chapéu na mão, a humildade perante os donos do emprego, numa palavra, o trabalho como um favor e não como um direito. O novo código de trabalho tem como principal objectivo a criação deste clima.
Quanto aos outros, os acomodados, os patifes com emprego fixo, alteram-se as leis de modo a retirar-lhes a ilusão de uma vida segura. Ao primeiro descuido, ao primeiro desagrado do patrão, à primeira gravidez, à primeira ruga do trabalhador, ao primeiro cabelo branco, à primeira dor nas cruzes,  perdem o emprego. Vão para o caixote do lixo do mercado de trabalho dando azo, finalmente, à criação de um verdadeiro mercado de trabalho competitivo e flexível.
Com um nó na garganta, reconhecemos que num par de meses a situação se alterou radicalmente em Portugal. Paragem atrás de paragem o país foi parando. Parando, estagnando, entristecendo e empobrecendo. O povo interiorizou o discurso público da miséria. Em nome do déficit e da retórica do futuro uma parte do povo parece em risco de se conformar e de aceitar  a mão nua, sem anéis, a mão dos pobres e a desigualdade social que as mãos retratadas  na velha lição simbolicamente representavam.
O Governo da direita está a reconduzir Portugal à sua condição de país pequenino ? no tamanho e nas ambições ? pobre e periférico. Ao reduzir o investimento na educação, ciência e cultura faz com que nós, que tanto precisávamos de aprender e de saber mais, passemos a aprender e a saber menos. Se continuar esta política pequenina e miserável de regresso à pobreza do passado, em Portugal até as moscas andarão magras, os piolhos esganados de fome e as pulgas saltarão com problemas psiquiátricos.
Não é mais animador o panorama internacional. Domina o Império da arrogância, cinismo e hipocrisia. A ganância e a violência ao seu serviço. O Governo de Bush ? que dirige o Império ? é como um petroleiro rebentado. Desprende-se dele uma mancha de óleo, de destino incerto,  que ameaça a vida de todas as espécies circundantes. O imperativo moral que obriga Bush a matar iraquianos não o obriga a fazer nada para melhorar o meio ambiente. À arrogância e impudor do Império contrapõe-se a capitulação e subserviência dos Estados nacionais e das organizações internacionais. Uma lástima.
Escrevermos sobre a conjuntura significa reconhecer que tudo isto é transitório e pode ser remediado num futuro próximo. Basta que mudemos os poderes dominantes. Entretanto façamos esforços para circunscrever a mancha de óleo. Procuremos diminuir os prejuízos e preparemos o outro Portugal, a outra Europa, o outro Mundo. O mundo do sonho, do prazer, do gosto de trabalhar e de viver. «Um outro Mundo é possível».


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 118
Ano 11, Dezembro 2002

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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