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Porto 2001: Capital Europeia da Cultura ou do "show off" político?

"Cultura é comer bem, vestir decente e habitar seguro"
Agostinho da Silva

Quase cem anos depois da Exposição Mundial que o Porto organizou em 1908, no outrora magnífico Palácio de Cristal, a cidade prepara-se para outro grande acontecimento internacional. Falamos, claro, da Capital Europeia da Cultura, título que o Porto reparte este ano com a holandesa cidade de Roterdão. Um pretexto para renovar os equipamentos culturais e o tecido urbano da cidade, mas também uma oportunidade para os habitantes passarem a entender o teatro, a dança ou as artes visuais como um elemento importante do seu quotidiano. Um ciclo de renovação, de espantamento, que se espera seja a base de um futuro "mercado cultural". A Capital da Cultura veio ou não para ficar?

Algumas pessoas gostam de observar as obras na rua. Afinal, elas são sempre uma espécie de palco onde se vai desenrolando a transformação da cidade, animado com o movimento e o engenho dos operários que a constroem. Também aí existem espectadores. E não menos atentos, nem menos críticos, do que os que batem palmas nos palcos verdadeiros: também comentam e sugerem. Foi talvez a pensar na curiosidade própria dos transeuntes que o tapume da emblemática Casa da Música, em edificação na zona da Boavista, tem "olhais" propositadamente instalados para que se possa ver a evolução das obras no interior. Uma política de "transparência", dir-se-ia, que não deixa indiferente quem passa pelo local.

"É um buraco gigantesco...", constata com alguma admiração José Fonseca, um reformado que admite gostar de ver o "movimento" do autêntico formigueiro humano que ali se instalou. "Mas não vai estar pronta a tempo, pois não?". Que não, só em 2002. "Pois é, eles atrasam-se sempre", diz, encolhendo os ombros. Na sua opinião, uma casa da música "tão grande" não faz sentido. "Há outras salas boas no Porto, não sei porque se lembraram de construir isto. Ainda por cima aqui, onde estavam os eléctricos...".

Uma nostalgia do passado que a outros, porém, não toca. "A transformação é importante, porque dá alento às pessoas para acreditarem num futuro melhor", afirma uma jovem que caminhava apressada, quando questionada sobre as mudanças que ocorrem actualmente na cidade. Os jovens, aliás, são aqueles que melhor se parecem reconhecer nesta transformação: "É preciso dar ao Porto condições para que a cultura seja vivida pelos cidadãos, e isso implica a construção e renovação de equipamentos", afirma Sónia Nogueira, 24 anos, estudante de Letras.

Mas nem todos pensam com a mesma simplicidade. João Gonçalves é arquitecto e considera que o Porto 2001 foi uma "oportunidade perdida" para operar uma reconversão urbanísitica de qualidade, que não se ficasse apenas pelas "obras de fachada", como ele próprio designa. "Se a burocracia e a politiquice não emperrassem este país, teria havido tempo para planear mais cuidadosamente as diversas intervenções em curso e dar-lhes coerência. É bom que se renove, mas planeadamente".

Quanto à programação propriamente dita, este jovem arquitecto afirma que o facto de o Porto ser capital da cultura não lhe irá alterar os hábitos. "Não estou a pensar ir ver nem menos nem mais espectáculos do que é habitual". Talvez um pouco mais de dança, reconhece, uma das apostas do programa na qual se reconhece, uma área artística que considera "fascinante, mas pouco divulgada".

Alterar os hábitos...

"Os habitantes do Porto são pouco críticos e não têm hábitos de consumo cultural regular, ao contrário do que acontece com Roterdão. Esperemos que isso mude", afirma com um vago ar de esperança M. T., um estudante de belas artes que preferiu identificar-se pelas iniciais, para quem a apetência pela cultura deve ser fruto de um "acto contínuo de reflexão e de liberdade", porque, afinal, a cultura é "tudo aquilo que nos faz pensar".

Uma definição interessante, que levará a questionar qual será o grau de apetência dos portuenses para "pensar" a cultura. O Porto é reconhecidamente uma cidade com baixos índices de "consumo cultural" - expressão cada vez mais recorrente - apesar de, no ano passado, por exemplo, ter sido proporcionalmente a cidade da Península Ibérica com maior número de espectadores de cinema.

Ao contrário, o teatro ainda não parece ter conquistado um público alargado e atento. O número de novas companhias da cidade tem crescido significativamente nos últimos anos e tem-se apostado na formação de actores e técnicos. Os espectadores, porém, vão permanecendo uma continuada minoria. Destaque para o facto de este público, apesar de tudo, ser constituído por um número crescente de jovens, o que poderá abrir boas perspectivas.

"A última vez que fui ao teatro foi para ver uma revista, mas já foi há mais de vinte anos", recorda Júlio Moreira, também ele reformado, com 54 anos, a quem a Capital Europeia da Cultura irá passar completamente ao lado. "Já ouvi falar, mas a reforma que tenho não dá nem para as despesas do mês. Isso é para os ricos...". Uma opinião partilhada por Francisco Rebelo, um encadernador de 43 anos, que não se mostra muito entusiasmado com o evento. "Eu até gosto de ir ao cinema, mas teatro e essas coisas não me puxam". Além disso, desconfia que os bilhetes "devem ser caríssimos" para quem, como ele, tem uma família de três pessoas e um salário que não chega aos cem contos.

Mas não são apenas os mais velhos que recusam o convite da autarquia e da Sociedade Porto 2001. João Pedro tem apenas 17 anos e frequenta o ensino secundário. Os tempos livres passa-os a jogar computador e acha "uma seca" ver exposições, assistir a concertos ou a outras manifestações culturais. Apesar de já ter ouvido falar do Porto 2001, quando lhe é pedido que enumere algumas das salas de espectáculos da cidade recorda-se apenas do Coliseu. "Cultura é ver filmes, teatro e exposições, mas isso não são coisas que me interessem por aí além", refere o jovem. Não aprecia porque não gosta, pronto.

Ou não a aprecia porque não a compreende e, por isso, não sente necessidade dela? É no sentido de formar novos públicos para a cultura - ou para o "mercado cultural", conforme as interpretações - que uma das principais apostas da Capital da Cultura passa por, através de projectos localizados, tentar mostrar às pessoas habitualmente arredadas destes acontecimentos em que sentido a cultura poderá fazer algum sentido.

Neste capítulo, destaque para um interessante projecto que está a ser desenvolvido em parceria pela Sociedade Porto 2001 e pelo departamento educativo da Birmingham Opera Company (BOC), da Grã-Bretanha, nos bairros de Aldoar e da Fonte da Moura, através do qual se pretende cativar uma centena de pessoas - sejam eles jovens, adultos ou idosos - e envolvê-las activamente na apresentação conjunta da ópera "Wozzeck", de Alban Berg, a estrear em Abril na Central Eléctrica do Freixo.

Uma ópera que não é de "reis e rainhas, passada na corte", mas antes de extremos sociais e de "pessoas comuns, como vocês, ou como nós", refere um dos responsáveis da BOC no folheto que apresenta o projecto, dirigido à população local.

"O projecto da companhia é aproximar da arte e da cultura pessoas que não lhe têm acesso e que, portanto, não lhe sentem necessidade", explica Susana Ralha, técnica do departamento educativo da futura Casa da Música. "É um trabalho de paciência que envolve, numa primeira fase, os organismos de serviço social e as colectividades locais, e só agora, lentamente, as pessoas que se vão aproximando".

Ao longo do ano, duas outras companhias de ópera britânicas, do País de Gales e da Escócia, vão desenvolver projectos educativos no sentido de "aproximar as pessoas da ópera e a ópera das pessoas": em escolas do 2º e 3º ciclo e com alunos da Escola Superior de Educação, na área da expressão musical, e na formação de "baby-sitters" para a futura Casa da Música.

Apesar de Susana Ralha não considerar de âmbito escolar este projecto, o facto é que ele parece, a início, estar a envolver muitos jovens em idade escolar. A Patrícia Lopes, por exemplo, tem 15 anos e frequenta o 7º ano de um curso de formação profissional, e considera-o "uma oportunidade única". "Além de ser bom para o meu desenvolvimento e para o desenvolvimento do sítio onde moro", diz esta esta futura operadora de transformação de pescado, que gosta de ir ao teatro, ao cinema e de ver exposições.

O Nuno Ricardo, por seu lado, tem 16 anos e já trabalha como padeiro. "A fascinação pelo espectáculo e o facto de gostar de teatro" foram as motivações que o levaram a aderir ao projecto, e garante que se "tiver categoria" um dia gostava de enveredar por uma carreira teatral. "Porque não..."

...alterar a política

Rogério de Carvalho, encenador e director artístico do grupo de teatro "As Boas Raparigas Vão para o Céu, as Más para Todo o Lado", refere que tem "boas expectativas" relativamente à programação do Porto 2001 e não concorda com a opinião, muitas vezes manifestada, de que ela ou é "muito elitista, ou muito popular".

"O Porto 2001 deve ser sobretudo entendido como uma oportunidade para todos, desde que as pessoas se mostrem interessadas. A cultura deve ter essa perspectiva democrática". Apesar de reconhecer que haverá espectáculos que apenas "alguns previligiados conseguem ter a capacidade e o sentido de deles usufruir", procura a raiz do problema: "É preciso educar as pessoas para estes eventos, fazendo um trabalho preparatório nas escolas, porque de contrário existirá uma marginalização crescente, apesar de não imposta". Quanto às condições de acesso financeiro à cultura, o caso torna-se diferente: "só uma pequena percentagem pode participar neles", lembra o encenador.

De acordo com as últimas informações conhecidas, os espectáculos programados para o Porto 2001 têm tido uma larga procura, tendo a maioria mesmo esgotado. Algumas pessoas, no entanto, têm criticado este facto e mostrado o seu desagrado na comunicação social. É que uma boa parte dos lugares disponíveis - um quinto, pelo menos oficialmente - "esvai-se" nos convites institucionais. Em primeiro lugar para os mecenas, três grandes empresas com o seu exército de directores, administradores e responsáveis dos mais variados sectores, passando pela comunicação social, agentes culturais, funcionários, sem esquecer os respectivos familiares e amigos. O pior é que muitos convites nunca chegam a ser levantados e os lugares acabam por ficar vazios.

M.M., uma jovem estudante de teatro que preferiu não ser identificada, critica esta "cultura do convite", que, na sua opinião, só vem prejudicar quem realmente se interessa pelos espectáculos e pagaria de bom grado para os ver. "As pessoas que habitualmente recebem convites são as que têm maior poder de compra e as que, por essa razão, deveriam suportar o custo integral dos bilhetes", diz.

A Câmara Municipal do Porto e a Sociedade 2001 já tentaram pôr água na fervura e impuseram novas regras para o levantamento antecipado dos convites, mas a vereadora da cultura da autarquia, Manuela Melo, afirmou já, no entanto, que a política de convites é uma prática a seguir e que o contrário seria impensável. "Não concordo, porque se os mecenas patrocinaram o evento penso que não o fizeram por questões de interesse. A existirem convites eles deveriam ser cedidos a pessoas com menos posses", comenta a jovem M.M..

Nem de propósito, a organização do festival de Cinema de Roterdão, incluído na programação da capital da cultura daquela cidade, distribuíu bilhetes gratuitos para dezoito salas, tentando "fazê-los chegar aos habitantes mais marginalizados, desde os sem-abrigo aos toxicodependentes", como relatava o jornalista do PÚBLICO que acompanhou a abertura. "Uma lição de democracia", era o título da sua crónica. Subscreve-se.

"Não percebo como se investe tanto em cultura ornamental, quando a educação cívica em Portugal é tão menosprezada", afirma por seu lado Mariana Oliveira, de 22 anos, estudante de sociologia. "Temos uma sociedade que enche as ruas de lixo e não respeita o espaço público. Não estou a querer dizer com isto que a cultura não deva ser promovida, mas para compreendê-la e apreciá-la a população precisa ainda de passar por outros patamares civilizacionais. É nessa medida que entendo o Porto 2001 mais como um "show off" político do que outra coisa".

Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 99
Ano 10, Fevereiro 2001

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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