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As ditaduras e o saber das crianças

Para a Sra. Dra. D. Dulce de Freitas.

1. Os eruditos.

A ditadura não é virtual, é a materialidade da acumulação do poder nas mãos de apenas de uma pessoa que governa. A ditadura não é virtual, assume todos os poderes para agarrar. Para agarrar qualquer um que pense de forma diferente. Qualquer um que deseje a divisão do comando do poder. A ditadura apoia-se, normalmente, nas armas e na proibição de pensar de todos os seres que queiram serem diferentes. Principalmente, na proibição de pensar. O perigo da ditadura não são os opositores políticos, são os intelectuais das ciências, da ciências definidas, normalmente, como sociais, especialmente. Ou, qualquer um capaz de pensar de forma diferente e angariar forças para se opor ao ditador. Ditador nunca eleito pelo voto, sempre apoiado pelos interesses da gestão dos bens e da força de trabalho, das pessoas que os possuem e os querem alargar. Lucrar. Ganhar, triplicar o poder sobre os bens e as pessoas. A ditadura é a cobiça dos proprietários que apertam os laços sociais, da memória e do pensamento, para lucrar sem pagar e aumentar a mais o valor já incrementado na democracia formal gerida entre proprietários de bens e proprietários de força de trabalho. Tal e qual Tomás de Aquino define, tal e qual Ludwig Feurbach, professor de Karl Marx, apela para a greve, como Aristóteles tinha já definido, como Durkheim fala mais tarde, como Wagner escreve na sua ópera, como Max Weber analisa para os diferentes grupos do mundo. A ditadura é o governo do povo pela mão da tirania que eu defino como o grupo de avareza que tenta se fazer bem enquanto cobiça a força de trabalho dos seres humanos e controla o seu pensamento. Pensamento, a arma mais difícil de combater pela tirania. Não pela definida tirania dos gregos, que é mitológica. Falo directamente dessas que tiveram resultado em nós e persistem ainda nas suas consequências. Como observo nos países que tenho o prazer de estudar, essa tiranias que temos vivido no Chile, na Espanha, em Portugal, entre outras que também nos têm afectado, como as de Jugoslávia, a do Iraque, a de Burundi, a de Angola, a da Indonésia, de grupos de nacionalidade Estodounidenese que Oliver Stone soube-nos expor como tese. Noertamericanos a possuírem bens e pessoas além fronteiras...Ditaduras..tantas...Os eruditos souberam bater e combater. Definirem. Analisarem. Fazerem teoria. Para combaterem. Para se salvarem da dor quotidiana. Mas, e as crianças? O que entendem, sabem, percebem vivem exprimem.? As crianças, sentem e entendem?. Sublevam-se? Como lutam? Qual a herança? Tentei falar já sobre o assunto, mas toca pensar outra vez . Ao pé do leitor do quotidiano e não só.

2. As crianças.

Não tenho dúvida nenhuma que a criança vive, sente, não entende mas imagina. Imagina tudo o que há de pior numa sociedade na qual há uma concentração do poder nas mãos de uma pessoa. Ou, que parece ser, para a criança, uma pessoa, essa que aparece sempre a falar, a aconselhar, a dizer. Preside os desfiles, convoca as Câmaras, administra justiça, tem o poder sobre a liberdade das pessoas ou do afastamento das mesmas. Sabe-se da sua vida porque é estudada, de forma obrigatória, na instituição escolar. Fala-se, caso se falar, em silêncio, em casa. Nunca na rua. A infância está dividida. Há casas onde se fala com louvor do ditador, há casas onde é proibido se referir ao facto, hás casas onde se chora o ser humano desaparecido. As crianças começam por sentir que os adultos não sabem mentir, que podiam libertar-se de serem apressados se disserem santa inocência dos mais novos -, que eram entusiastas aderentes do omnipotente senhor que aparece todos os dias nas fotos dos jornais, que decide qual escola funciona e qual não, que sabe as vias por onde andam todo e cada um dos indivíduos da sua pátria. Há as crianças que têm medo por existir, além da Omnipotência divina, essa outra Omnipotência humana que comanda no sussurrar das conversas de casa, caso essa casa fale do social. Raro é que aconteça em meios que dependem para viver, do favor e simpatia do chefe que é o degrau entre o Omnipotente Senhor e a sua distinta esposa essa dupla necessária para serem o exemplo do dever ser de todo lar: ou o santo ritual do casamento, ou castidade absoluta para nunca comprometer as horas devotadas ao governo do povo e assim, nunca pecar por abandono da vigilância do corpo social. Pecado, conceito recriado para além dos Concílios das Igrejas, um pecado social que não se pára no Inferno, mas sim na policia política, essas garras esticadas pelas sombras da noite e deter as ofensas de pensar em se ser opositor. Que indecência!, dizem os adultos, falar mal do nosso salvador!. Mais um outro encrave de desentendimento dos mais novos que sabem existir um Nosso Senhor que morreu na Cruz, e, a folhas tantas, um nosso senhor que salva a Pátria sem ter que ir ao sacrifício. Embora diga esse nosso senhor, Ai Deus, quanto trabalho me dais!. E a criança tem o duplo castigo da culpa do pecado ritual e do pecado civil que cai, normalmente, sobre os seus adultos esses seres que devem ser o seu exemplo de comportamento e acabam por serem culpados por pensar. O que é que posso eu dizer?, a criança pergunta-se. É o que as de Pencahue no Chile, me têm sempre repetido sempre: é preciso concordar com a professora ou o professor, se eu não concordo, o meu pai pode desaparecer. Como em Pencahue acontecia, pais que nem túmulo tinham porque não havia corpo...estranho!, quando há morto há cadáver. Mas cá, o cunhado do nosso senhor é o proprietário de todas as terras e ele sabe por onde andamos e murmuramos e para estar mais certo de ninguém falar mal dele ou do seu senhor cunhado, nomeia nos altos mandos do Concelho e dos bancos e da escola, e da paróquia, aos seus fieis servidores. Será o nosso senhor uma divindade que é preciso respeitar porque anda em todos os sítios? É a forma lenta por meio da qual a pequenada entende que é obedecer a lei; e a três senhores: o do Céu, o de casa, e esse que manda. Ele em directo, ou os seus parentes e compadres que gerem o património Nação, terra de todos que era antigamente, mas hoje em dia terra unitária do ditador, a sua família e os seus amigos investidores. Doutor, diz Marcelo de Pencahue, esta terra nunca foi nossa, foi dos conquistadores que civilizaram o país, esse grupo de ignorantes que éramos antigamente. Porém, senhor doutor, as ruas levam esse nomes, dos capitães que civilizaram aos nossos antepassados nesta terra em que vivemos. E eu pergunto ao Marcelo se é assim que na sua casa pensam e ele cala...e diz-me ao ouvido que está proibido dizer o que em casa falam. E eu digo...e ele cala...e eu pergunto...e ele cala. Até os pais falarem comigo e pedirem-me para nunca mais perguntar. A censura do ditador, que já não dita, fica como herança entre esses pequenos que me acompanham a escrever os meus livros. Como vão eles comparar? Com o quê? Será que nas aulas de História se fala das Repúblicas que escolhem os seus governantes? Estudo em profundidade os textos de Pencahue, tal e qual os de Portugal antes do 25 de Abril de 1974, tal e qual os da Espanha dos anos 39 do Século XX até quatro anos mais tarde a seguir à morte do ditador em Novembro de 1974: repete-se sem hesitar a história dele ter sido o mais jovem general de todos os tempos. História que fica gravada, pela obrigação de ensinar, nas palavras de maestros que deviam simpatizar com o ditador ou perder o trabalho. E, tanto se diz e se repete, que os docentes ficam convictos, agradecidos e infelizes agora que tudo parece que vai mudar. Ou, mais duro ainda, calar a morte, detenção ou desaparecimento do pai, da mãe, do tio, sem poder gritar a dor nas ruas como os vizinhos sempre fazem. Essa rapariga de Vilatuxe sempre pensou que esse pai ao pé dela, a seguir a sua volta da prisão, era um homem de máscara adesiva, como se via na Espanha nos capítulos do filme televisivo Missão Impossível. Criança que nunca soube a explicação da morte do pai: os adultos pensavam que enquanto a criança menos saiba, mais seguros eles ficam. O moto de toda família resignada a suportar o nosso senhor no país, essa presença grande, a viver em todos os cantos da vida. Ai se souber e entender essa infância que em casa não se estava feliz! Uma geração completa resultado do pensamento temente e contraditório dos pais. Filhos que, para sua sorte, nunca souberam bem o que aconteceria à mudança do ditador: diz o Alfaiate velho da Espanha, Esse que agora será ditador, é filho ou neto do que morreu? O seu nome mudou, já não é Caudillo, é Rei, queira explicar. Povo e crianças entontecidas pelo cortar da informação pública, desligadas do debate, sem lógica para se basear nas suas ideias, sem método comparativo. Quem debatia, o fez calado e em casa, como esse operário português da palavra, José Gomes Ferreira. Esse poeta que lutou com a pena e o papel, como vários deles. Mas o José não era povo, menos ainda os que liam os seus versos. Hoje, celebridade comemorada com uma descendência perdida na transição abrupta entre o que se lia em casa, o que se calava na rua, o que era preciso dizer para criar a nova república que Gomes Ferreira não chegou a formar, desapareceu e, com ele, a orientação dos mais novos, revoltados contra o regime mas não reordenados para organizar uma nova forma de governar. Lutadores infatigáveis, mas como todo Portugal, com um fardo pesado por herança: contra quem lutou agora, se apenas sei estarem contra? A transição portuguesa... anarquista...diferente...sem um orientador da mesma...sem um ditador a ser julgado. Era melhor esquecer. O que entende a criança? Um pandemónio de ideias e emoções- um salto entre a geração que lutou em silêncio e a geração mais nova a organizar a vida socialista ou a vida do lucro. De duas, uma via: não há amos, há apenas muito dinheiro para comprar tudo o que antes nunca tive.

3. A nova juventude.

A juventude do debate. A juventude da empresa. Da livre e pequena empresa. Das habilitações. Da corrida ao poder. Da corrida às formas de escrita a favor, em prol da confiança, a liberdade de expressão na qual tudo e mais alguma coisa se diz, sem se reparar se o que se diz ajuda ao debate político. Parece que a morte ou a prisão do ditador fez desaparecer a necessidade do debate político, do debate do futuro da República o do Reino, conforme Chile, Portugal ou Espanha. Parece não haver mais ditadores desde que em 1998 foi assinado um tratado internacional para responsabilizar os governantes de qualquer abuso de poder. Parece que não há mais motivos para debater que não seja o da livre empresa, essa de Adam Smith nos fornecera e que Hegel multiplicara na sua pesquisa sobre os motivos que levam aos seres humanos a se governar: pela ciência e os conceitos. Pela posse e gestão dos recursos. Liberais e Hegelianos, retorquidos por Marx e outros, poucos, autores, entre os quais Dürkheim. Formas de debate que não são consideradas pela geração da descendência dos revolucionários que tentaram, os seus pais e avós, acabar com as ditaduras que tiveram que sofrer. Entre o silêncio desses adultos, a não explicação dos factos às crianças, ficou no imaginário das mesmas o medo à rebelião e ao debate, por enquanto. É evidente que muita infância da ditadura é hoje parte do poder do país que sofreu mortes e perseguições, mas, era possível entender essa mente, que a ditadura servia para acumular? Não passa de um mito de um homem mau, personalizado no nome do ditador. Razão tem o Advogado Coordenador do julgamento do ditador do Chile quando, num jantar que muito me honrou, disse: É preciso desvincular factos de tortura de pessoas, que evidentemente o ditador comandou, desse outro tipo de torturas feitas pelos investidores que o apoiaram, a fome, o desemprego, a censura, a ocultação de corpos, porque, sabe? há muito mais pessoas envolvidas em diferentes tipos de delitos nunca contabilizados no nosso Código Penal Acrescentei: Entre os quais, meu caro, as crianças, que nem sabem que estão a viver uma história que tem um vazio: o dos anos de luto a par dos seus anos de infância É, meu caro leitor, a herança que a ditadura deu à nossa descendência: o silêncio da História. Uma História que é dos velhos. Em Portugal, uma tarde, a minha amiga Dra. Dulce de Freitas de Ferreira de Almeida, disse-me um dia na sua casa: sabe Raúl, todos nós lutámos e calámos enquanto combatíamos e protegíamos as nossas crianças, sem nunca lhes ocultar a verdade. Mas, sabe? somos outra geração: já não é connosco e com os nossos filhos, é com os filhos deles, sabe.... A Dra. Dulce sempre teve razão, no entanto, teimou em dizer que era preciso abrir o debate entre adultos perante os jovens que pouco sabem do real da ditadura, exprimida logo na introdução. É o que dela e da sua família aprendi. E tenho tentado fazer.

Mais nada para dizer, hoje. Seja o leitor a entender o que é transição numa República de empresários e pequenos capitalistas.

Raúl Iturra
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
ISCTE/ Lisboa


  
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Edição:

N.º 98
Ano 10, Janeiro 2001

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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