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Um outro mundo é possível? ( segmento 1 de 2 )

(exercício crítico sobre o desenvolvimento e o progresso - conclusão)


Por detrás do desenvolvimento... a ideia do progresso

Olhando para a história humana, focando a observação, em especial, sobre os artefactos produzidos, Lévi-Strauss (1996: 61-63) afirma a inevitabilidade da admissão de um progresso, tão evidente que qualquer discussão em torno da sua existência não vai mais além do que a mera discussão retórica. Considerando que o progresso não é nem imperioso nem contínuo, rejeita uma concepção linear, defendendo antes a coexistência no mesmo tempo e espaço de diferentes formas evolutivas.

Representando o principal legado filosófico do período entre os séculos XVII e XIX para as ciências sociais contemporâneas e para a própria modernidade, enquanto elemento fundamental da sua arquitectura, a ideia do progresso dá força ao pensamento dominante acerca da evolução linear de todas as sociedades: da pobreza, da barbárie, do despotismo e da ignorância para a riqueza, a civilização, a democracia e a racionalidade, esta última a mais alta expressão da ciência (cf. Shanin 1997). É de ressaltar também que "a teoria do progresso evolucionário envolveu não apenas a assunção de que o sistema posterior é melhor do que o anterior, mas também a assunção de que um novo grupo dominante substituiu um grupo dominante anterior" (Wallerstein 1998: 77)[4]. Mais, a ideia não ficou circunscrita aos filósofos, antes trespassou, de cima a baixo, as sociedades modernas contemporâneas, popularizando-se, caindo no domínio do senso comum (Shanin 1997: 66)[5].

De uma forma geral, a ideia do progresso está associada à modernidade. Porém, alguns autores recuam a tempos bem mais remotos. É o caso de Nisbet (1994), que coloca as origens da ideia no período clássico. Desde então, não mais esta ideia abandonou as cabeças dos filósofos e de outros intelectuais, atravessando todas as épocas até à modernidade.

Se existem divergências, como vimos, em relação ao tempo em que a ideia do progresso começou a fermentar, menos incerto é o tempo onde se deu o seu triunfo e apogeu. Aceitando a datação de Nisbet (1994) - 1750-1900 -, este triunfo é inseparável de duas das grandes transformações da modernidade, as revoluções industrial e científica. Desde então, elas têm sido vistas como o meio de realizar a abundância e eliminar todas as formas de sofrimento humano, nomeadamente físico.

Apesar de ainda dominante, esta convicção triunfante do progresso, por via da ciência e da tecnologia, está sujeita a crescente contestação. Constatando, entre outros aspectos, que a degradação do ambiente e a eliminação em massa de seres humanos só foi possível devido ao progresso da ciência e da tecnologia, Taplin (1990: 144-145) interroga-se: "Até que ponto será bom para a humanidade este inexorável e acelerador avanço da ciência e da tecnologia?"

Prosseguindo a crítica, agora guiado por Lévi-Strauss (1996: 71), a civilização ocidental, na modernidade, empenhou-se em desenvolver equipamentos mecânicos cada vez mais eficientes.

Adoptando este critério, é forçoso assentir que a quantidade de energia disponível por habitante seja um indicador razoável do nível de desenvolvimento das sociedades humanas. Mas se elegermos outro critério - por exemplo o da adaptação a condições ambientais extremas -, outras sociedades tomariam a dianteira. No mesmo sentido, Wallerstein (1998: 72), reconhecendo as dificuldades na análise do progresso devido ao carácter unilateral de todas as medidas propostas, afirma: "Diz-se que o progresso científico e tecnológico é inquestionável, o que é certamente verdade, em especial na medida em que a maioria do conhecimento técnico é cumulativo. Mas nunca se discutiu seriamente sobre a quantidade de conhecimento perdido, por via da vassourada mundial imposta pela ideologia universalista".

Examinando as condições de vida das forças de trabalho, Wallerstein (1998: 74) conclui que a maioria delas vivem em zonas rurais ou movem-se entre estas e os bairros-de-lata das periferias urbanas, estando piores do que aquelas que viviam há cinco séculos atrás. Para além de duvidar que a esperança de vida à idade de um ano seja maior do que anteriormente e de terem uma dieta alimentar inferior, para garantirem a sua reprodução elas trabalham mais arduamente e durante mais horas por dia, por ano e por vida, pelo que a taxa de exploração aumentou significativamente.

Conferindo solidez a este argumento, Wallerstein [1990 (1974): 31] mostra, citando os arquivos ingleses da época, que na Idade Média um dia de trabalho na agricultura estava compreendido entre o nascer do sol e o meio-dia. Continuando a medir o bem-estar com base no critério do tempo de trabalho, a nossa situação actual é mais desfavorável, quando comparada com aquela que usufruem os povos que vivem, ainda hoje, e em condições incomensuravelmente mais adversas do que os seus antepassados remotos, da caça e da recolecção.

Como esclarece Harris (1987: 129), baseando-se nos trabalhos de Lee, o tempo médio diário despendido por um adulto bochimane kung ronda as seis horas[6]. Mais, se considerarmos, tal como faz Sahlins [1997 (1972)], que uma sociedade é de abundância quando todas as necessidades materiais dos indivíduos que dela fazem parte são facilmente satisfeitas, então, teremos de concluir que o progresso falhou, também aqui, retumbantemente. Observando que pelo menos um terço da humanidade termina o dia de barriga vazia, Sahlins [1997 (1972): 18-19] conclui que o tempo da fome sem precedentes é o nosso. Ou seja - insiste o autor -, no tempo do progresso técnico vertiginoso, a fome tornou-se uma instituição[7].

Em termos sistémicos, (Wallerstein 1998: 71) considera que "a ideia de progresso justificou toda a transição do feudalismo para o capitalismo. Ela justificou a quebra da remanescente oposição à mercantilização de tudo, e tendeu a subvalorizar os aspectos negativos do capitalismo, com a justificação de que os benefícios ultrapassavam, de longe, os prejuízos".

Embora sentindo "o tremor que acompanha a sensação de blasfémia", Wallerstein (1998: 72) sustenta que o capitalismo, como sistema histórico, não representou progresso em relação aos vários sistemas históricos anteriores que foram por ele destruídos ou transformados.


Da retórica do desenvolvimento a uma utopia para uma vida decente

Aqui chegados, é tempo de concluir que se descortina uma ligação entre os fracassos do desenvolvimento e da ideologia do progresso e o desenvolvimento do capitalismo. Reflectindo sobre ele, Santos (1994: 43) encontra duas contradições. À definida por Marx - a contradição entre o capital e o trabalho -, junta a contradição entre o capital e a natureza, na qual a intensificação da produção vai a par da degradação das condições de produção, fazendo com que "a relação de exploração da natureza seja a outra face da relação de exploração do homem pelo homem" (Santos 1989: 73). Deste modo, o capitalismo não é apenas condenável pela brutal e impiedosa exploração a que sujeita milhões e milhões de seres humanos; é condenável, também, porque a lógica que o conduz não é sustentável em termos ecológicos.

Dizer isto implica colocar, de novo e mais uma vez, a questão: que alternativa? Enjeitando quer o ?fim da história?, quer a visão mecanicista de um futuro já escrito, considero atinente a definição de uma alternativa societal que reintegre, como acertadamente sugere Wallerstein [1990 (1974): 338)], "os níveis de decisão política e económica"[8]. No essencial, trata-se de pensar e agir em favor de um programa que combine, com imaginação e criatividade, valores e elementos socialistas e ecológicos num quadro de disseminação e de aprofundamento da democracia, de modo a assegurar a todos uma vida digna que mereça a pena ser vivida. Santos (1994: 289ss) designa esta alternativa societal como paradigma (emergente) eco-socialista. Seguindo o autor, esta construção intelectual assenta num diálogo intercultural largo, ligado, por um lado, à satisfação das necessidades humanas básicas, a nível mundial, e, por outro lado, à dignidade humana, um valor presente em todas as culturas.

Mudar o mundo é possível! As reflexões e as propostas são conhecidas, resta continuar o trabalho de gerações de homens e mulheres que não se conformaram, tomando a expressão de Santos (1994: 278), com o "que existe, só porque existe"[9]. Ramonet (2000: 6-7) apresenta-nos uma excelente síntese do programa para mudar o mundo: (i) uma nova economia, mais solidária com a partilha social da riqueza e do bem estar; (ii) o desarmamento dos mercados financeiros e a asfixia dos paraísos financeiros; (iii) uma nova partilha do trabalho e dos rendimentos numa economia plural, onde o mercado deixará de ter um papel hegemónico, com um sector solidário e um tempo livre cada vez mais importante; (iv) a atribuição a cada indivíduo, desde o nascimento, sem ligação à sua condição familiar ou profissional, de um rendimento pessoal mínimo que garanta o acesso aos bens sociais fundamentais.

Trata-se de substituir o princípio de um rendimento para existir pelo princípio do rendimento porque existe. Proposta revolucionária, baseia-se na ideia de que a capacidade produtiva para gerar riqueza assenta nos saberes científicos e técnicos acumulados pelas gerações anteriores. Este programa pode, desde já, ser aplicado a todos os seres humanos, sem distinção, uma vez que a riqueza mundial equitativamente partilhada é suficiente para o efectuar.

Qual o melhor caminho para se cumprir a utopia realizável? Não tenho a certeza...

Certamente existem vários, que dependem do contexto e das correlações de força entre os diversos grupos sociais em confronto. Necessariamente, o caminho a tomar pelos povos da América Latina ou da África será diferente do caminho que nós, europeus, iremos empreender. Mas é bom que se comece, uma vez que o caminho é para se ir fazendo.

Como começar? Julgo que José Saramago conhece os primeiros metros... Dizia ele, não há muito tempo, num colóquio na Universidade do Minho, que esteve em Cáceres num encontro cujo objectivo era encontrar soluções ao neoliberalismo. Também ele não quis deixar de dar o seu contributo, que se resume a uma simples, mas forte e urgente, palavra - consciência.

Fernando Bessa Ribeiro
UTAD (Chaves)

Notas

[4] Dando continuidade ao argumento de Wallerstein em torno do evolucionismo, é necessário salientar que, para além do seu forte carácter etnocêntrico, ele surge muitas vezes disfarçado de teoria do "desenvolvimento", postulando que os valores ocidentais, modernos e urbanos são superiores a todos os outros e que a mudança só tem uma única direcção possível (Bastide: 1979).

[5] A influência da ideia chega a domínios que muitos julgariam imunes. É o caso da psicanálise e da psicologia, com, respectivamente, Freud e Piaget. Segundo Lewis (1997: 72), o primeiro articulou a ideia do progresso com o desenvolvimento psicológico e a saúde mental; Piaget, pelo seu lado, relaciona o progresso com a ideia dos estádios e a transformação das estruturas cognitivas básicas, ambos visando um objectivo comum - as operações formais.

[6] A ociosidade dos povos africanos foi algo com que os colonizadores se deram mal e contra a qual se insurgiram reiterada e permanentemente. Como salienta Feliciano (1998: 53), a propósito de Moçambique, "percorrendo a documentação portuguesa, uma das notas mais salientes é o ?queixume? constante acerca da proverbial imprevidência, ociosidade e preguiça dos indígenas de Moçambique".

[7] Esclareça-se que Sahlins [1997 (1972)] estabelece uma relação entre o aumento da fome e a evolução cultural (o progresso). Se é certo que este argumento está solidamente escorado nos diversos trabalhos antropológicos sobre as sociedades de caçadores-recolectores, por ele designadas, muito sugestivamente, como "original affluent society" (cf., entre outros, Lee e DeVore 1968), gostaria de rebater este aparentemente fatalismo, colocando uma questão: qual o papel das relações sociais de produção e, num sentido mais lato, do modo de produção na produção da fome para muitos e da abundância para alguns?

[8] A ideia do ?fim da história? quer fazer acreditar que o sistema-mundo existente, com as suas estruturas sociais, as suas práticas e as suas relações de poder, é eterno. Ora, também aqui estamos perante um porfioso "trabalho de eternização" (Bourdieu 1999: viii), levado a cabo por instituições como o Estado, as escolas de economia e gestão, os partidos políticos hegemónicos e os media.

[9] Refira-se que vivemos tempos de renovada dissidência. Nos últimos anos temos assistido ao aparecimento de novas formas de resistências à globalização hegemónica, com o despontar de novos movimentos sociais como é o caso, entre outros, da ATTAC - Associação para uma Taxação das Transacções financeiras para a Ajuda aos Cidadãos (cf. Ribeiro e Portela 2000). De forma articulada com os ?velhos? movimentos sociais, como os sindicatos, e utilizando com criatividade as novas tecnologias da comunicação, levaram para as ruas de Seattle, de Washington e de Praga as inquietações e as angústias dos homens e das mulheres que não se revêem na nova (des)ordem mundial. A cidade francesa de Nice será [foi], aquando da cimeira europeia de 6 a 8 de Dezembro, o próximo [seguinte] rendez-vous de contestação e, sobretudo, de imaginação construtiva de uma alternativa. Já no plano da produção teórica, Silva (2000) apresenta-nos algumas pistas para a construção de um programa emancipatório, relevando a importância da articulação do global com o local e discutindo o papel dos velhos e dos novos movimentos sociais.

Referências bibliográficas

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  • HARRIS, Marvin (1987), Cultural Anthropology. Nova Iorque: Harper & Row.
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  • RAMONET, Ignacio (2000), "Pour changer le monde", Manière de Voir, nº 52: 6-7.
  • RIBEIRO, Fernando Bessa e PORTELA, José (2000), "Globalizações, resistências e/ou alternativas: David frente a Golias?", Actas do IV Congresso Português de Sociologia (no prelo).
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Fontes documentais

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RELATÓRIO SOBRE O DESENVOLVIMENTO MUNDIAL 2000/2001: LUTA CONTRA A POBREZA in www.worldbank.org/poverty/wdrpoverty/report/Poroverv.pdf (28 de Outubro de 2000).


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 98
Ano 10, Janeiro 2001

Autoria:

Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves
Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves

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