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A Arte como terapia e instrumento de integração

Retrato de dois projectos
onde se trabalha o "eu" e a relação com o "outro"

A arte, enquanto conjunto de diferentes expressões, é considerada cada vez mais como um importante veículo na integração social de pessoas portadoras de deficiências ou provenientes de meios sócio-económicos desfavorecidos. No Brasil, por exemplo, o "Teatro dos Oprimidos", de Augusto Boal, é um bom exemplo de como a arte dramática pode servir este último fim, baseando-se em conceitos como a elevação da auto-estima e o trabalho comunitário, tendo conseguido resultados bastante positivos nos bairros sociais e favelas das grandes cidades. Em Portugal, esta nova forma de encarar a arte começa agora a consolidar-se e existem já algumas iniciativas interessantes neste campo.
É o caso do Espaço T, no Porto, inaugurado há cerca de seis anos, que poderá considerar-se, no mínimo, como um projecto singular. O seu percursor é Jorge Oliveira, enfermeiro de profissão, que, enquanto técnico de saúde, procurou desde sempre alterar a relação meramente técnica com os doentes, não só através de uma maior afectividade, mas utilizando mecanismos inovadores que permitissem transformá-la numa relação dialogante.
A arte - uma das suas paixões - foi um desses mecanismos de terapia que descobriu poder ajudar os doentes com quem trabalhava, nomeadamente toxicodependentes, debelando, através dela, comportamentos agressivos e sentimentos de depressão, para os quais recorria à pintura ou ao sócio-drama, apoiando-se, ao mesmo tempo, numa forte dinâmica de grupo. "Muitas vezes, punha-me no papel deles e eles no meu", conta Jorge Oliveira, "como forma de nos aproximarmos".
Depois de muito trabalho para pôr de pé a estrutura organizativa e conseguir um espaço para a realização das actividades, Oliveira conseguiu que o Espaço T fosse uma associação reconhecida pelo Estado e tutelada pelo ministério da Saúde - apesar de ali estar afastado qualquer recurso aos fármacos -, o que, na sua opinião, "só vem provar que a arte pode ser terapêutica".


Um espaço polivalente

Actualmente, são cerca de 120 os utentes que ali procuram atendimento, distribuindo-se por um público tão heterógeneo como toxicodependentes e sem abrigo, até às pessoas ditas "normais". As actividades estão distribuídas por 16 ateliers de re-socialização - desde a teatro, à dança, passando pela fotografia ou pela pintura -, procurando que os formadores, sem qualquer experiência na área da patologia da doença, interajam com as pessoas através da forma mais positiva: a "relação com o outro".
"Delegamos nos formadores a autonomia da relação com os formandos. As sessões são definidas em conjunto com os alunos, não havendo qualquer plano pré-estabelecido, tendo como objectivo último incutir auto-estima para que eles se reconheçam enquanto pessoas", explica.
O teatro é uma das expressões previligiadas. Neste momento, trabalham em simultâneo quatro grupos, constituídos por pessoas com deficiências motoras e mentais, alguns deles mongolóides, sob a orientação de Armindo Gaspar.
Este técnico de reinserção não tem dúvidas em afirmar que as técnicas de dramatização, aliadas à expressão das emoções e ao contacto físico, contrariam a tendência inicial de receio face aos outros e de dificuldade de expressão habitualmente sentidas pelos deficientes. A improvisação é uma das técnicas mais recorrentes. "Dou-lhes um determinado tema e a partir daí eles desenvolvem-no como entenderem", diz. Uma forma de trabalhar a autonomia e a criatividade, tornando estes cidadãos, frequentemente arredadas da sociedade, mais extrovertidos e sociáveis com eles próprios e com o meio.
2001 é um ano com muitos projectos em carteira. A primeira filial abre, em Janeiro, na Trofa, com o apoio da autarquia local, e, após ter sido reconhecida como entidade formadora, o Espaço T irá criar um departamento de formação, com cursos dirigidos não só aos utentes - que darão a equivalência ao ensino básico e à certificação de competências profissionais - como também a técnicos de saúde.
Depois de no ano passado ter organizado um encontro internacional, cujo tema era precisamente "A Arte como Terapia", o Espaço T organizará o II Congresso Internacional de Arte, sob o tema "O Onírico, a Arte e a Terapia", apresentando, ao mesmo tempo, uma exposição internacional com trabalhos de deficientes, que está a percorrer a europa e terminará no Porto.
Espaço ainda para a promoção de uma "Exposição para Invisuais e para os Outros", sugestivamente intitulada "Di-Visões", actualmente em concurso, com a qual se pretende que os artistas elaborem obras que possam ser percepcionadas não só através da visão, como pelos restantes sentidos.


"Conhece os outros, conhecendo-te a ti próprio"

Outro projecto igualmente interessante, onde a arte - neste caso específico o teatro - funciona também como instrumento de auto-integração no meio, é o que decorre, desde o início de 1998, na freguesia de Campanhã, no Porto, envolvendo animadores comunitários e profissionais do teatro.
A iniciativa partiu de um convite enderaçado por duas actrizes e técnicas sócio-culturais inglesas, pertencentes à organização "Hope Street" ("Rua da Esperança"), que realiza acções de formação de animadores a nível internacional, para que estes, posteriormente, ajudem a desenvolver projectos de animação junto das suas próprias comunidades.
Neste caso, o trabalho incidiu sobre um grupo de jovens do bairro do Cerco - uma zona da cidade claramente desfavorecida em termos sócio-económicos -, com idades entre os 18 e os 25 anos, na sua grande maioria desempregados ou sem qualquer ocupação.
Vitor Gonçalves, sociólogo de formação e animador sócio-cultural da Fundação para o Desenvolvimento do Vale de Campanhã, conta que os primeiros tempos foram os mais difíceis: "houve uma enorme dificuldade para que eles deixassem aquela capa de pessoas muito sérias, "mafiosas", que nunca dão o braço a torcer". Foi preciso um trabalho paciente, que se desenrolou ao longo dos seis meses seguintes - por entre desistências e novas caras -, "para que fossem conseguindo aprender a rir e a jogar consigo próprios, conhecendo-se melhor a si mesmos e aos outros".
Paralelamente, as formadoras inglesas acompanhavam o projecto de perto, tentando incentivar uma dinâmica de grupo que permitisse pôr a nú os sentimentos de cada um, expôr abertamente as dificuldades sentidas, e de, em comum, resolver os problemas que fossem surgindo.
"O objectivo principal de um trabalho como este é o de desenvolver o conceito de cidadania e a ideia de que é necessário cumprir certas "regras", nomeadamente o respeito pela diferença e pelo outro, para atingir determinados direitos. Não através de uma integração "forçada", mas procurando seguir os ritmos de cada um e deixando que eles próprios o encontrassem", refere Vitor Gonçalves, ele próprio com alguma formação na área do teatro. "O teatro funciona como elemento de re-ligação dos laços sociais e é um fim em si mesmo para os levar a acreditar neles e nos seus projectos de vida", explica.
Aos poucos, os resultados evoluiram. Os mesmos jovens que a princípio pareciam irredutíveis na sua maneira de estar, foram mudando o seu perfil. "Muito do trabalho de teatro é feito nesse sentido: trabalhar a minha especificidade e ver como ela funciona em interactividade com ao outro, tentando coabitar com a diferença", refere aquele técnico.
Um dos aspectos mais interessantes deste trabalho reside no intercâmbio que se estabelece entre comunidades de diferentes países, permitindo aos jovens participantes contactar com outras realidades culturais, como aconteceu neste caso, onde os jovens do Cerco puderam travar conhecimento com outros jovens oriundos de minorias étnicas - e mesmo sexuais -, o que, na opinião de Vitor Gonçalves, "contribuiu para relativizar alguns preconceitos que eles tinham".
Com o acompanhamento de um novo formador, o Adilson, o grupo encenou uma versão contemporânea do conto "Hansel e Gretel", adaptado por eles próprios e apresentado na comunidade. Pelo meio, no contexto do intercâmbio, trabalharam também com jovens de Liverpool, com os quais conviveram 15 dias, e de onde resultaram três apresentações de teatro de rua, duas no Porto e uma em São João da Madeira. Mais tarde, foi a vez deles visitarem a região de Manchester e algumas cidades vizinhas, repetindo o mesmo processo.
No ano seguinte, em 1999, o objectivo do projecto estendeu-se à tentativa de criar um percurso pré-profissional, desta vez com um grupo alargado. Do trabalho resultou uma potencial actriz, que dentro em breve será integrada num projecto de promotores comunitários de teatro, realizado em parceria com a Academia Contemporânea de Espectáculo. Outros ainda foram sendo colocados no mercado de trabalho, à medida que demonstravam interesse em fazê-lo, em colaboração com o centro de emprego local.
Mais recentemente, em Setembro do ano passado, Vitor Gonçalves iniciou um projecto semelhante no bairro do Lagarteiro - outro dos bairros sociais problemáticos da freguesia de Campanhã - com alunos da escola primária local, com o qual se pretende - mais uma vez através do recurso à dramatização - suplantar a falta de competências sociais e emocionais.
O trabalho é feito em parceria com a escola de 1º ciclo e com a escola secundária, bem como com as associações locais. "A escola funciona como elemento central e nós, animadores, enquanto elemento de reforço, dando apoio naquelas pequenas coisas que podem ditar o caminho entre o sucesso e o insucesso", sublinha Vitor Gonçalves.
A presença de Sarah Turton, actriz de formação a trabalhar também como animadora comunitária, foi uma novidade que os miúdos acolhera com agrado. Apesar das dificuldades iniciais causadas pela barreira linguística, Sarah foi um elemento importante para demonstrar a utilidade do Inglês no quotidiano, que, na sala de aula, pode muitas vezes ser encarado como uma "seca".
Sarah, que trabalhou já em projectos semelhantes em algumas localidades inglesas, admira principalmente o facto de as crianças portuguesas manterem a meninice própria da sua idade. É que em Inglaterra, conta, "um miúdo pode ter onze anos mas age como um adolescente de quinze, as crianças e jovens tornam-se adultos mais cedo. Aqui ainda há simpatia e respeito".
Apesar de estar a achar esta nova experiência um desafio interessante, considera "frustrante" o facto de, no nosso país, nem sempre ser fácil obter verbas que apoiem o trabalho criativo.
A ideia de constituir um grupo de teatro partiu dos próprios miúdos, com o qual já tinham contactado anteriormente. E a ideia para o primeiro exercício não foi propriamente uma surpresa: simular o "Big Brother". Mas porquê o "Big Brother"? O Fernando, de 14 anos - futuro "jogador de futebol" - diz que "gostava de viver a sensação" daquilo que vê no écran. "É uma experiência nova e eu gosto de experimentar sensações novas", diz, por sua vez, o Hélder Silva, que também quer ser uma estrela dos estádios. Para já, joga no Futebol Clube Unidos de Campanhã.
"Neste contexto, pensamos que seria mais interessante fazer um projecto onde, mantendo a ideia inicial, fossem eles e o meio os protagonistas e onde contassem as suas próprias experiências", explica Vitor Gonçalves.
"Aqui, mais do que explorar técnicas teatrais, interessa que sejam eles próprios de uma forma mais solta, mais desinibida, explorando as virtudes do jogo dramático como instrumento de uma reflexão sobre si mesmos". Um "jogo" de relações que, na opinião de Gonçalves, compensará sempre "enquanto eles cá vierem e tiverem um sorriso".

Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

e
Ano 9, Dezembro 2000

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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