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A crise do secundário e o alargamento da escolaridade obrigatória
«Cresce de Novo o Pântano na Esperança?»
O Pão da Palavra, Cristóvão Aguiar.

O secundário passou para o centro da agenda educativa e não deixa de alimentar os media, mesmo no sossegado período das férias escolares. A caricata "novela" dos atestados médicos a que mais de 250 alunos de duas escolas de Guimarães se socorreram para escapar às provas globais (!), arrastou-se pela praça pública num processo pouco dignificante para os principais intervenientes (pais, alunos, médicos). Só em finais de Agosto, com a intervenção do Provedor da Justiça, que «não vê qualquer problema na marcação de uma chamada extraordinária» 1, o caso parece conhecer o seu desfecho. Dois dias depois da tomada de posição do provedor, o Ministério da Educação, com um inusitado sentido de oportunidade política, anuncia o fim das provas globais no 10º ano. Esta era uma das múltiplas alterações introduzidas pelo novo regime de avaliação do secundário, a entrar em vigor só no ano lectivo de 2002/03, e que no essencial mais não faz do que alargar a este ciclo terminal os princípios do "facilitismo" avaliativo já em prática nos outros três ciclos do básico. Entretanto, no início desse mesmo mês, haviam sido tornados públicos os resultados dos exames: «Baixaram as médias de sete disciplinas dos exames nacionais do 12º ano» (sendo as de Matemática e Física preocupantes ? 5,4 e 6,7 respectivamente 2). A conjugação destes acontecimentos, que sem dúvida deram certa animação à silly season, evidencia as fragilidades estruturais do secundário e a sua incapacidade para inovar o sistema e melhorar a formação.

A centralidade da escola

A escola é hoje das poucas, senão a única instituição que «reúne e socializa grandes grupos etário» (Cortesão, 1999), depois de instituições que tradicionalmente ofereciam formas significativas de socialização normalizadora e uniformizadora (como o exército, a igreja, ou a família) terem entrado em declínio acentuado. A tropa, que durante a guerra colonial militarizou toda uma juventude, é agora só para alguns (poucos) e por tempo quase irrisório; a igreja catequisa cada vez menos e vê os jovens afastados de uma prática regular; a família vai definhando no número dos seus elementos (3,1 era a média em 1991, ou seja, cada vez mais nuclear ou monoparental), reduzindo o tempo de convívio entre pais e filhos, numa crise profunda das suas funções substantivas. Talvez por tudo isto e face a um quadro crónico de debilidade de formação dos nossos recursos humanos, a escola assuma uma progressiva centralidade na sociedade portuguesa e, naturalmente, ganhe terreno a proposta de alargamento da escolarização obrigatória 3.

Propósitos do alargamento da escolaridade

Este alargamento para 12 anos (ou será 13?, face à «possibilidade da criação de um pós-12º ano» como consta do documento de revisão curricular do ensino secundário) visa, na nossa perpectiva, dois propósitos fundamentais:

(i) propósitos educativos: formar cidadãos para uma sociedade agora denominada «da informação e do conhecimento» tornou-se a prioridade do momento. A cimeira de Lisboa dos líderes da UE, por ocasião da presidência portuguesa, incluiu finalmente a Educação nas preocupações comunitárias, definindo objectivos para os sistemas educativos dos estados membros e respectivos programas plurianuais de educação e formação, de modo a enfrentar o imparável processo de globalização, onde o "navegar" massificado na Net se impõe como condição essencial para o desenvolvimento da internacionalização da economia digital, onde os concorrentes americanos nos levam já uma larga dianteira. Daí a generalização da língua franca ? o Inglês ?, desde o 1º ciclo (chega de experiências pontuais, vamos generalizar, vai ser a palavra de ordem) e o retomar da segunda língua estrangeira com carácter obrigatório (que a Reforma pós LBSE de 1986, em má hora abandonou). Nunca como hoje o currículo sentiu de forma tão explícita e intensa a "pressão social" a sobrepôr-se às outras duas fontes do currículo ? o saber e o aluno.

(ii) propósitos de "terapêutica sócio-económica": a expansão da escolaridade obrigatória ao secundário tende a fazer da escola uma "instituição-tampão" do desemprego (que afinal não é conjuntural mas estrutural, pelo que temos de saber viver com ele). Continuar na escola, de curso em curso, de estágio em estágio, ou (também para alguns) de mestrado em doutoramento é, indiscutivelmente, uma forma de ir adiando a entrada real no mercado de trabalho, o mesmo que dizer, um meio de "dissimular" as estatísticas oficiais do desemprego, e naturalmente evitar fenómenos mais graves de exclusão social.

A cultura do sucesso obrigatório

A escolaridade obrigatória, extensível progressivamente a novos ciclos, tem aparecido associada a «iniciativas no sentido de aligeirar, flexibilizar e relativizar os conteúdos lectivos» (Queiró, 1999). Como corolário tem vindo a impor-se a cultura do "sucesso obrigatório". Os "chumbos", desculpem a minha linguagem politicamente incorrecta, as "retenções", assim é que deve ser, reduzem-se ao mínimo (já só as temos no fim dos ciclos! e nem os exames, no ensino básico, contam para a avaliação dos alunos!). Agora, até os estudantes do secundário deixam de estar sujeitas ao regime de precedência: vão poder passar de ano com negativa a duas disciplinas, sem precisar depois de repetir as matérias deixadas para trás (é o princípio da fé na «recuperação dos alunos no ano seguinte»). Não reprovar passou a ser a forma de impedir o abandono de quem está no sistema, e que confrontado com o revés académico fugiria à escola (também a persistência é um valor em queda), agravando então os problemas sociais que uns querem evitar e outros se contentam em adiar. Convém ter presente que Portugal lidera o abandono escolar, após o 9º ano, com uma taxa de 40%, entre a população de 18/24 anos 4 e com a pior percentagem de jovens com 22 anos que conclui o secundário ? 55%, quando a média europeia atinge os 71%.

A alternativa a este panorama é então manter artificialmente nas aulas uma juventude que pouco ou nada aprende, desmotivada e sem grandes expectativas, que coloca problemas acrescidos aos já atribulados espaços escolares (agressividade, violência, consumo de tabaco, álcool e droga,?). E como escreveu Prado Coelho (e desta vez não posso deixar de o subscrever) «os pedagogos decretaram uma coisa que a própria velocidade dos tempos favorece: é sabido que ninguém pode cair na tentação de se aborrecer [?] Mas desde que se proclamou que a pedagogia deve ser uma forma de evitar o esforço chegou-se rapidamente à conclusão de que todo o esforço é chatíssimo.». E por isso, as escolas passam a ser cada vez menos locais de ensino e de aprendizagem para serem "campos de manutenção de uma juventude que se quer ocupada" que, mais do que estudar, precisa de animação, entretenimento e diversão. Os professores, por sua vez, sentem que deles se espera o desempenho de novas funções (designer curricular, assistente social, animador e mediador cultural), para as quais nem sempre estão preparados nem se calhar o têm que estar, o que não evita que progressivamente se vão vulnerabilizando. A continuar assim, ao analfabetismo (que não dá mostras de baixar) sucederá uma outra chaga educativa ? a iliteracia funcional 5 ? que já assume contornos preocupantes como o denunciam os vários estudos promovidos desde 1996, designadamente o da OCDE que coloca Portugal «entre os piores» 6.

Notas e Referências
  1. Público, 22/8/00, p. 21.
  2. Público, 2/8/00, pp. 1, 22-23.
  3. Por exemplo, a Fenprof e a FNE propõem o prolongamento da escolaridade obrigatória até ao 12º ano, a JSD até ao 11º.
  4. Segundo o relatório da Comissão Europeia, a mais alta entre os 26 países europeus analisados. Diário de Notícias, 6/6/00, pp. 24-25.
  5. De acordo com The World Competitiveness Yearbook de 1999, que compara 47 países a partir de uma vasta bateria de critérios, Portugal (cf. pp. 17, 262-267) no referente à «iliteracia» está em 40º (desceu um lugar em relação ao ano anterior) e em 41º na «iliteracia económica».
  6. Cf. BENAVENTE, Ana (coord.) (1996) A Literacia em Portugal: Resultados de uma Pesquisa Extensiva e Monográfica. Lisboa: C.N.E ? Fundação C. Gulbenkian. MARTINS, Mª Raquel Delgado, Glória Ramalho, Armanda Costa (org.) Literacia e Sociedade ? Contribuições Pluridisciplinares. Lisboa: Caminho, 2000. Público, 15/6/00, pp. 24-25.

 

COELHO, Eduardo Prado (2000) "Eça chato". Público, 17/8/00, p. 40.

QUEIRÓ, João Filipe (1999) "Educação: silêncios e problemas". Público, 9/12/99, p. 9.

STOER, Stephen R. & CORTESÃO, Luíza (1999) "Levantando a Pedra": da pedagogia inter/multicultural às políticas educativas numa época de transnacionalização. Porto: Edições Afrontamento/ Biblioteca das Ciências do Homem, nº 12, p. 20.

Luís Souta
ESE de Setúbal


  
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

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