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Um Grande Baile de Máscaras em Honra do Lixo Tóxico

1. Primeiro os factos e o seu encadeamento. O parlamento incumbiu o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) de escolher uma "comissão científica independente" (CCI) encarregue de fazer a caracterização dos "resíduos industriais" e estudar tratamentos possíveis. O CRUP aceitou a incumbência e escolheu quatro Professores Universitários portugueses para a dita CCI. Esta produziu um relatório, que os leitores poderão consultar na Internet (http://www.incineracao.online.pt/home.htm). As conclusões e recomendações desse relatório têm sido utilizadas pelo ministro do Ambiente como uma prova irrefutável da bondade das decisões que o governo tomou em matéria de co-incineração do lixo tóxico nos altos fornos de algumas cimenteiras, uma das quais situada no parque da Arrábida, reserva natural.

2. São tantas as confusões e tamanhos os equívocos que este encadeamento dos factos denuncia, que se impôe (por razões de espaço tipográfico) uma selecção drástica em favor dos mais fáceis de esclarecer.

3. 1ª confusão: os senhores deputados da República Portuguesa (a maioria, pelo menos) entendem, pelos vistos, que o CRUP representa a comunidade científica. Mas estão equivocados. A comunidade científica não se confina a um país, nem nunca se confinou à universidade, mesmo quando esta era uma instituição supranacional. A comunidade científica é (e sempre foi) uma entidade supranacional. Além do mais, não tem representantes. Nem sequer eleitos. Cada cientista só se representa a si próprio. A qualidade de cientista não se obtem por eleição, muito menos por nomeação de qualquer poder constituído. Corresponde a uma vocação e a um certo tipo de actividade. Ou se possui essa vocação e se pratica essa actividade ou não. Ponto final parágrafo.

4. 2ª confusão: o CRUP, pelos vistos, entende que tem legitimidade para nomear uma "comissão científica independente", para executar um mandato parlamentar (ou outro qualquer). Mas está equivocado, pelas razões que se expenderam no ponto anterior. A independência (científica) de um cientista, ou de um grupo de cientistas que trabalhem em "comissão", não é atestável pelo CRUP ou por qualquer outro poder constituído. Só é atestável pelos cientistas (e, se os houver, pelos não cientistas) que queiram discutir o seu trabalho com probidade, seriedade e vontade de aprender uns com os outros através da discussão.

5. 3ª confusão: o ministro do Ambiente entende, pelos vistos, que aumenta a sua autoridade e blinda as suas decisões políticas contra as críticas e protestos dos adversários invocando a "autoridade" da ciência, que ele julga vertida no relatório da CCI. Os leitores talvez o tenham visto dizer numa estação de televisão que o seu combate era o das "luzes" contra a ignorância e o obscurantismo. O ministro está equivocado. Confunde as recomendações da CCI com as bulas do Papa (situação que, presumo, deve repugnar aos membros da CCI, já se verá porquê) e, mais geralmente, trata as verdades relativas e sempre provisórias da ciência como se fossem os artigos de fé de uma Igreja.

6. Concluamos: a CCI nunca existiu. O que existiu foi uma comissão de peritos independente (políticamente) do governo e dependente (politicamente) do parlamento, perante o qual teve de prestar contas do seu trabalho. Peritos e cientistas são, em princípio, gente de perfil bem distinto. (Os primeiros estão para os segundos como, na música sinfónica, os maestros estão para os compositores). Uns ocupam-se em esquadrinhar em todas as direcções os ilhéus de conhecimento objectivo que a ciência, com muitas reservas e qualificações, declarou terra habitável. O segundos ocupam-se em descobrir terra incógnita.

7. 2ª conclusão: nem o CRUP nem a "CCI" cumpriram o mandato do Parlamento. Não podiam cumpri-lo, por muito que se esforçassem. Esse mandato era inexequível. Os membros da CCI disseram-no com todas as letras e no lugar próprio, como se pode verificar por este diálogo esclarecedor: "Faltam dados no nosso país" sublinhou Formosinho Simões, da CCI [no Parlamento]. "Tivemos de fazer uma súmula com as experiências dos outros porque parece que nunca tivemos vontade de investir no conhecimento sobre a situação nacional", não conseguiu deixar de criticar Henrique de Barros. (...) "Mas o vosso mandato era o de fazerem a caracterização dos resíduos e estudar tratamentos possíveis. Estão dispostos a cumprir o mandato?", questionou José Eduardo Martins, do PSD. "Essa proposta não é exequível", respondeu Casimiro Pio, da CCI. "Os senhores deputados sabem quanto lixo produzem em vossas casas por ano? Não, porque não são obrigados a pesá-lo. Pois as indústrias até agora também não, mas quando começarem a ter de pagar para tratar os resíduos vão passar a ter de saber", acrescentou Roberto Cavalheiro, o quarto elemento da "CCI"( Público, 31Maio 2000).

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal


  
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Edição:

N.º 93
Ano 9, Julho 2000

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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