Página  >  Edições  >  N.º 92  >  Analfabetismo Como Exterminá-lo?

Analfabetismo Como Exterminá-lo?

«Precisamos do pessimismo da razão
e do optimismo da vontade.»
(Stefano Rodotá)

O DN no seu inquérito diário da página 3, colocava, no passado 22 de Abril, a questão: «Que falta para combater o analfabetismo em Portugal?». Entre as cinco individualidades inquiridas, um ex-dirigente sindical (da Fenprof), hoje subdirector de uma DRE (Direcção Regional de Educação), dizia, com desconcertante ligeireza, que para a resolução do problema «Faltava a Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos [ANEFA], que tem já uma comissão instaladora e vai coordenar todas as iniciativas de combate ao analfabetismo. Por um lado, evitará que os jovens abandonem o sistema sem saber ler, escrever e contar. Por outro, certificará as competências, literárias ou profissionais, entretanto obtidas pelos adultos.»
Como se vê, mais um que também já herdou o "vírus imaginário do poder", que dá, a quem exerce o mando, o convencimento de que o "voluntarismo governativo" resolve, numa penada, todos os problemas, mesmo os crónicos, os estruturais, os históricos, como é o caso deste «indomável analfabetismo português» 1.
Um olhar retrospectivo pela história da educação portuguesa aconselharia, ao novel dirigente da política educativa, mais moderação e sensatez. Entre nós, a escolaridade obrigatória, apesar de consagrada legalmente desde 1835, continua por cumprir, volvidas todas estas décadas ? um em cada dez não sabe ler nem escrever. Como explicar então esta resistência estrutural à escolarização quando já a Carta Constitucional (artº 145, § 30º) garantia a todos os cidadãos a instrução primária gratuita, tal como nos dias de hoje a Constituição da República o assegura para a escolaridade básica (artº 74º, 3.a)? A incapacidade de escolarizar não é com certeza um problema só de regime, pois tanto a monarquia, como a república, a ditadura ou a democracia, se mostraram incapazes de levar à plenitude este direito universal.
Em 1878, ainda sob o regime monárquico e meio século transcorrido sobre a revolução liberal, o analfabetismo em Portugal atingia os 82,4%, quando era apenas de 0,08% na Noruega, 0,36% na Dinamarca, 0,4% na Suécia e 0,51% na Alemanha 2. Em 1900, ainda se andava pelos 78,6%, um verdadeiro "sudário" como lhe chamava Trindade Coelho no seu Manual Político do Cidadão Português, onde denunciava o estado caótico da instrução pública.
Com a I República as questões educativas ganharam centralidade (mais no discurso que na acção concreta). Confiava-se plenamente na escola, «Templo sagrado e belo! /tu és eternamente o Sol da nossa vida /a mais alta expressão do pensamento humano!/ tu és na Terra o espelho da Verdade» 3. Esta "fé e esperança" (laicas, entenda-se) na missão da escola e dos seus agentes, como factores de progresso e de desenvolvimento, era tão grande quanto o voluntarismo e a utopia dos republicanos. Mas apesar de todo o empenhamento, os resultados foram frustrantes: em 1920, a taxa de analfabetismo só tinha descido para os 66,2%.
Seguiu-se o Estado Novo, pouco valorizador da Educação como o atestam a redução da escolaridade obrigatória, o fecho das escolas do magistério e o recurso às regentes escolares, entre muitos outros exemplos que podiam ser acareados. Finou-se o regime nos 20,5%, segundo o censo de 1970.
Vinte e seis anos depois do 25 de Abril, e apesar de todo o "esforço" (palavra muito usual no discurso da hodierna classe política), ainda andamos às voltas com este mal de que não nos conseguimos ver livres! Temos ainda a mais alta taxa europeia (e não admira, pois neste "campeonato" jogamos noutra divisão). O que nos espanta é António Barreto, tão centrado na comparação estatística da sociedade portuguesa nos últimos 30 anos, mostrar-se tão benevolente com os números actuais: Portugal «já só tem hoje 8%» de analfabetos 4. Só ou ainda? Entrar no 3º milénio com mais de um milhão de portugueses sem dominar essas utensilagens básicas que são a leitura e a escrita, é de lastimar. E a preocupação aumenta quando se constata o recrudescimento do fenómeno (no período entre 1992 e 1997) nos Açores, Algarve, Região Centro, assim como entre as mulheres. Mas tão ao mais grave é a iliteracia que grassa: «cerca de metade dos portugueses é "quase incapaz" de utilizar com facilidade a escrita e a leitura na vida quotidiana», como revela um recente estudo, de âmbito internacional, coordenado por António Firmino da Costa 5 e que corrobora o "estado de crise" já denunciado, em 1996, pelo Estudo Nacional sobre Literacia.
Como é que perante este quadro complexo se pode vir defender a simplicidade redutora da solução do analfabetismo, convencidos que estão do achamento da "lâmpada de aladino" ? a ANEFA, ? organismo a que não falta sequer essa instituição tão nacional e tão cultivada que dá pelo nome de "comissão instalad[or]a". Depois da experiência "bem sucedida" (na formação de professores) de equiparação a bacharéis (na sequência do arranque das ESE e CIFOP 6 ) e, recentemente, num processo mais discreto, o de equiparação mitigada a licenciados (através da creditação prolixa nos cursos de formação complementar que este ano se iniciaram 7), eis agora a intenção de aplicar a fórmula do expediente burocrático também aos analfabetos. Os 84 centros de reconhecimento e validação de competências, a instalar em todo o país até 2006, vão possibilitar ao cidadão comum «ter a escolaridade obrigatória sem frequentar a escola» (sic). Eis o novo milagre da transformação da água em vinho. Isto, numa altura em que o país dispõe, como nunca teve na sua história, de tantas instituições de formação, pessoal docente em excesso, instalações escolares desocupadas 8, e fundos comunitários. Alguns impenitentes detractores diziam que os diversos Governos constitucionais tinham deixado a resolução deste problema à "lei da vida" (como sabemos, os analfabetos encontram-se fundamentalmente nos estratos etários mais idosos). Nada disso, à custa da reengenharia administrativa, vamos finalmente abandonar esse humilhante 101º lugar do indicador «alfabetização» para, num ápice, saltarmos para o pelotão da frente, onde agora achamos dever estar, sempre e em tudo. Cá estamos para fazer o balanço daqui a uns anos?

Notas

(1) Título de um artigo de Baptista-Bastos, publicado no Diário Económico de 28/4/00.
(2) Esta tão acentuada diferenciação entre os países do norte da Europa ? industrial, urbano, protestante e frio ? e os do sul (agrícola, rural, católico e quente), tem na relação com a Bíblia o factor explicativo de maior peso: enquanto que para uns (os católicos) o livro sagrado era apenas acessível por interpostas pessoas (os sacerdotes que dominavam o latim), para outros (os protestantes) o acesso à Bíblia devia ser directo e para isso era necessário aprender a ler.
(3) Excertos do poema "A Escola" de Artur Inês (chefe de redacção do jornal República) incluído no seu livro de estreia Sol d'Outono, 1920, pp. 97-98.
(4) Público, 7/5/00, p. 19. Segundo o INE, dados de 1977, a taxa era de 10,2%.
(5) "Literacia e Sociedade - Contribuições Pluridisciplinares", estudo apresentado publicamente no ISPA, a 9/5/00.
(6) Decreto-Lei nº 139-A/90 de 28/4 (artº 143º) e Lei nº 50/90 de 25/8.
(7) Decreto-Lei nº 255/98 de 11/8 (artº 17º).
(8) Fernando Santos "Crianças a menos escolas a mais. Formação de adultos está secundarizada", DN, 15/04/00, p.65.

Luís Souta


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 92
Ano 9, Junho 2000

Autoria:

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo