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Formação de Professores e Escolaridade Básica

A problemática da formação inicial de professores tem tido tão pouco visibilidade pública que qualquer reflexão que se produza sobre essa problemática não poderá deixar de se basear nalgumas constatações, mais ou menos evidentes, e num prudente conjunto de interrogações capazes de estimular um debate bastante mais amplo e obrigatoriamente urgente.
A formação inicial de professores em Portugal é, actualmente, da responsabilidade das instituições do Ensino Superior Público e Privado. Enquanto as educadoras de infância, os professores do 1º e do 2º Ciclos do Ensino Básico obtêm os seus diplomas, salvo raras excepções, em Escolas Superiores de Educação integradas nos respectivos Institutos Politécnicos, os professores do 3º Ciclo do Ensino Básico e do Ensino Secundário obtêm, por sua vez, as licenciaturas em instituições universitárias. Porque é que se continua a verificar uma tal fractura ao nível da formação inicial? Porque é que, pelo menos, a formação dos professores do 3º Ciclo do ensino Básico não se realiza nas instituições onde se formam os professores do 1º e do 2º Ciclos do Ensino Básico, de forma a contribuir-se, também por esta via, para uma articulação congruente e consequente entre os três ciclos que constituem o Ensino Básico?
A Escola Básica, em Portugal, vive uma crise de afirmação social, cultural e educativa que tanto pode ser explicada pela sua expansão e alargamento como, por consequência, pelo novo conjunto de atribuições que competem a essa Escola e aos docentes que aí intervêm. Sendo a escolaridade básica um direito social não cumprido para muitos dos alunos que a frequentam, quer devido ao insucesso que gera, quer devido ao abandono que não consegue evitar, quer devido, finalmente, ao processo de desqualificação pedagógica que a perverte, erguem-se as vozes daqueles que defendem a necessidade da sua refundação, de forma a poder tornar-se num espaço mais inclusivo e numa instituição socialmente credível.
Apesar de reconhecer que a transformação da Escola Básica não se circunscreve, apenas, à actuação dos professores que aí educam e ensinam, isso não significa que esta actuação possa ser menorizada, enquanto contributo inestimável para essa transformação tão pertinente quanto necessária. Como é que esta reflexão influencia, condiciona e potencia os projectos de formação inicial de professores? Até que ponto é que a refundação da nossa Escola Básica, que implica a reconceptualização das suas finalidades, dos seus saberes de referência, das modalidades de relacionamento e de mediação pedagógica, do conceito de excelência académica que a constrange e da estrutura organizacional que a sustenta, afecta, por exemplo, as estratégias de formação, o clima pedagógico, a concepção de conhecimento dominante, os modos de ensinar e avaliar e o tipo de relacionamento que se vive nas instituições especialmente vocacionadas para promover a formação de professores ?
Embora exista muita gente que fica satisfeita, apenas, por saber que a "Pedagogia do Oprimido" se tornou numa obra de leitura obrigatória nos contextos de formação inicial de professores, preferimos pertencer ao número daqueles que sabem que essa obra é indubitavelmente útil e pedagogicamente pertinente quando não é usada como mais um instrumento, entre outros, de opressão. Resumo assim, através desta espécie de axioma, a profunda inquietação que me assalta quando verifico que as escolas do Ensino Básico já não podem ser definidas apenas a partir da sua função escolar, embora os professores continuem reféns dessa função. Sofrem as consequências dessa atitude como se de uma opção se tratasse, embora nunca tenham podido, de facto, optar.
Será que puderam viver outras experiências escolares nas instituições onde se formaram como docentes, substancialmente diferentes daquelas que viveram ao longo de toda a sua vida escolar ?
Como é possível aprender a lidar com a diferença, numa Escola que se quer inclusiva e multicultural, se a diversidade foi sempre vivida, em todas as escolas que frequentaram, como um obstáculo e um problema, excepto nas experiências analisadas e teorizadas nos livros que foram obrigados a consultar para elaborar um trabalho de grupo cuja nota seria decisiva para obter uma positiva em Sociologia da Educação?
Como é possível entender que um currículo deve ser gerido de forma flexível e diferenciada se todos eles, estudantes dos mais diversos cursos relacionados com a formação de professores, estudaram para o teste de Organização e Desenvolvimento Curricular através dos apontamentos de alguém que tinha feito a cadeira três anos antes?
Como é possível compreender que uma criança é um protagonista activo no âmbito do processo de ensino-aprendizagem se, em Psicologia da Educação, se aprende tal afirmação como uma sentença a reproduzir mesmo que, na verdade, pareça uma afirmação estranha e sem sentido porque dificilmente experienciada em aulas expositivas de duas horas, dirigidas para mais de cem alunos?
Como ser capaz de reflectir sobre as atitudes de indisciplina das crianças e dos jovens se eles próprios, alunos de um curso de formação inicial de professores, não puderam conhecer outro modo de lidar com a indisciplina senão através da autoridade inquestionável dos seus professores e da sua submissão estratégica como discentes que sabiam, tão exactamente quanto possível, o valor de mercado do diploma que ambicionavam ?
Como ser capaz de reflectir sobre as dificuldades de aprendizagem dos alunos provenientes de meios sociais desfavorecidos apenas em função das leituras de Basil Bernstein recolhidas de uma colectânea de textos ? Como entendê-las se o professor que lhes propôs essa leitura se mostrou incapaz de compreender as suas próprias dificuldades, enquanto alunos-quase-professores, face a conceitos como dispositivo pedagógico, código restrito ou currículo de colecção? Como entendê-las se esse professor nunca organizou as sessões lectivas que animava, de forma a lidar com essas dificuldades e a ajudá-los a enfrentá-las como um momento e uma oportunidade de estimular o seu desenvolvimento pessoal e social ?
O que concluir, finalmente, da atitude de um Ministério da Educação que se refugia na autonomia das instituições do Ensino Superior para justificar a sua neutralidade face ao assunto ? O que concluir quando a política desse Ministério, neste âmbito, se resumiu à criação do INAFOP (Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores), instância à qual compete assumir a regulação do sub-sistema da formação de professores, o que não só contribuiu para reafirmar o estatuto de neutralidade do M.E. face à problemática em questão, como acabou por reduzir a questão da formação inicial dos professores a uma dimensão eminentemente técnica ? Há, todavia, uma questão que subsiste e que nos obriga a perguntar se, politicamente, o Ministério da Educação se pode abster de uma participação mais activa relativamente aos projectos de formação inicial de professores, particularmente quando estes constituem um recurso a ter em conta no âmbito do processo de acreditação social das nossas escolas, especialmente daquelas que se confinam ao Ensino Básico.

Ariana Cosme
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação - Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 92
Ano 9, Junho 2000

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto

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