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O Esplendor e a Morte de Algumas Palavras

Como todos sabem foi anunciada a morte das ideologias. Se morreram alguém as deve ter enterrado. Eu não fui convidado para nenhum funeral. Não participei em nenhuma cerimónia fúnebre. Suponho que as ideologias, como acontece a outras coisas, "nascem, crescem, vivem e morrem". Do que eu duvido é que morram por decreto, todas no mesmo dia, e que não nasçam outras que ocupem o seu lugar. Existe realidade sem suporte ideológico?

Neste número de «a Página», Jacinto Rodrigues (a Política da Política), diz-nos que "(...) a transformação social faz-se com perturbações de avanços e recuos, faz-se com disfunções reguláveis mas também com rupturas incontroláveis. Para nos apercebermos destas interacções sistémicas, não basta termos sensibilidade ecológica para o ambiente exterior, que observamos. É necessário que o próprio pensamento seja ecologizado, isto é, que o nosso próprio pensamento seja capaz, internamente, de reflectir e revelar os próprios ecossistemas em mudança." Convido-vos a lerem o resto do artigo. Cá por mim, depois de ler o que nos diz Jacinto Rodrigues, reforcei a convicção de que em educação ? e na vida ? o mais importante é ter a capacidade de pensar (teorizar) a nossa própria prática, tanto quanto possível fora dos quadros conceptuais que a produzem. Despirmo-nos de preconceitos ? não significa, antes pelo contrário, perder o conhecimento das ideologias ? aprender a vestir e a despir, a nadar nús, com prazer, ao largo, no oceano, quase sem fundo, sem rumo ou de rumo incerto. Mas nadar de improviso que é nadando que se descobrem outros caminhos.

Despirmo-nos de preconceitos. Vestir e despir ideologias. E despir sonhos. Despir e deitar fora o que já não serve. Redesenhar. Reconstruir. Fabricar de novo. Não por moda, mas por necessidade e conforto. Por brincadeira. É brincando que se aprende, em criança e em adulto. Reconstruir, nuns casos, reinventar e inventar ideologias e sonhos, noutros casos e sempre que for preciso.

Aqueles que são servidos pela ideologia dominante gostariam que aceitássemos com naturalidade a morte das ideologias. É como se em nome da paz apelassem ao desarmamento geral e o armamento com que ficam ? e que aperfeiçoam e desenvolvem ? nos fosse apresentado como meios necessários à nossa protecção e bem estar. Afirmar a morte das ideologias, a uniformização de interesses e de pensamento, é um traço profundo da nova ideologia dominante. Mas existem outros traços e outros sinais.

A grande comunicação social ? televisão, rádio, imprensa, comunicação digital ? procura passar a ideia de isenção na notícia e na análise ao mesmo tempo que se esforça por fazer passar a ideia de que não existem alternativas às actuais condições de existência da maioria das pessoas. Para conseguir este objectivo suprimem-se conceitos e palavras ou são subvertidos assumindo novos sentidos que os tornam inoperacionais.

Já experimentei. Experimente você também. Faça um pequeno exercício empírico de análise de conteúdo. Compare dois jornais com vinte e cinco anos de diferença. Verifique as palavras e conceitos que desapareceram. Olhe a realidade e veja se mudou tanto como as palavras. Aposto que mudaram mais as palavras e os conceitos do que a realidade.

Registo palavras que parece terem sido acometidas de morte súbita: exploração; contradição; imperialismo; marginalização; igualdade; participação; capitalismo; socialismo (mudou de sentido e a social-democracia também); comunismo (passou de grande inimigo a qualquer-coisa-que-deixa- saudades-a-quem-esperava-fazer-carreira-combatendo-o-e-agora-teve-de-se-reciclar profissionalmente); e desapareceram outras palavras e conceitos que deixo ao vosso cuidado descobrir.

Mas apareceram outras. Agora já não se diz imperialismo. Diz-se, de forma alegre e positiva, globalização. Claro que se formos europeus conscientes, não dizemos imperialismo americano, dizemos globalização mas com azedume. (Já agora devo dizer que eu também já não digo internacionalismo ? palavra morta e esquecida ? eu já digo que sou defensor da globalização de baixo para cima e de dentro para fora que é o modo de eu escapar à globalização alegre e à globalização com azedume, pois essas são globalização de cima para baixo e de fora para dentro).

Morreu a palavra capitalismo. No seu lugar temos o termo economia de mercado. Imaginem uma manifestação em que os manifestantes gritam: economia de mercado sim! sociedade de mercado não! (a isto eu chamaria manifestação da Terceira Via após ser apeada do poder). Não sei se será diferente mas tem um som diferente se a frase gritada fosse: capitalismo sim! sociedade capitalista não! E ainda há quem diga que o marketing político não evoluiu!

Fiquem também sabendo que a tendência é para não haver desempregados. Agora só temos excluídos! Por isso é que já não têm sentido as políticas de "combate ao desemprego". A nova lógica política é de "apoio à exclusão social". O desemprego é intolerável e caracteriza as chamadas políticas de direita. O desemprego é de algum modo inconstitucional visto que a nossa Constituição reconhece, como sabem, o direito ao trabalho e a um salário justo. Por isso a esquerda acabou com o desemprego. É verdade que desgraçadamente temos exclusão social, mas esta é apoiada, na medida do possível, pelo rendimento mínimo garantido. Recordo que na Cimeira de Lisboa foram traçadas rigorosas metas para acabar de vez com o desemprego na Europa. Vamos superar a economia de mercado e vamos entrar na do conhecimento. Devo confessar que fiquei um pouco apreensivo pelo facto de nada se dizer quanto às metas para acabar com a exclusão social. Erradamente estava convencido que esta era, de acordo com a nova terminologia, a questão de fundo.

Se compararem os tais jornais repararão que classes sociais também já não há. Quando muito agora o que há é homens ou mulheres com muita classe. As classes levaram um tal sumiço que até desapareceram do ensino, neste já só há anos, que é uma coisa mais fácil de contar.
Coisas como pobreza, miséria, desigualdade, fome, subnutrição (...) são coisas que ainda existem mas só nos países do chamado Terceiro Mundo. Entre nós não existem semelhantes coisas. São males dos países que não adoptam a democracia ocidental e não aprendem a seguir os nossos bons exemplos. Não tem nada a ver com exploração dos países pobres pelos países ricos, visto que já não há exploração e também já não há países ricos e países pobres. O que há, como já ficou entendido, é que há países com economia de mercado e países sem economia de mercado. Não havendo entre nós pobreza, analfabetismo, miséria, fome (...) fica entendido que há contudo problemas sociais. Mas estes são o campo de acção das Organizações Não Governamentais (ONG?s) e das Instituições de Solidariedade Social que são organizações muito próprias, necessárias e mostram o elevado grau de desenvolvimento de competência e de comportamento democrático da sociedade do conhecimento.

É verdade que os jornais actuais ainda falam de especuladores financeiros, de máfia, de droga e dos seus traficantes. Mas é natural. Ou será que pensam que a economia de mercado e a do conhecimento poderiam sobreviver sem as injecções de capital dos especuladores financeiros e dos narcotraficantes?

José Paulo Serralheiro


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 90
Ano 9, Março 2000

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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