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Ajustamentos Curriculares no Ensino Secundário - As árvores e a Floresta

É genericamente reconhecido que o actual ensino secundário em Portugal não serve os desígnios da heterogénea população escolar que o frequenta, desde logo ao não preparar para o acesso nem para o sucesso dos que prosseguem estudos nem habilitar ? ao que parece - para o exercício competente de uma profissão. (Daremos de barato, aqui e agora, que responsabilidades têm nesta situação o próprio ensino superior e o universo patronal português). Outros sectores envolvidos ? pais, professores, investigadores ? têm identificado, com ou mais ou menos empenho e clarividência, um amplo leque de pontos críticos, impeditivos da consecução das grandes finalidades deste sub-sistema, que ultrapassam, como é sabido, aquelas duas já referidas.
Deixando de lado questões de pormenor ? mais uma ou menos uma hora na carga lectiva semanal, incluir ou excluir esta ou aquela disciplina desta ou daquela componente de formação ? avanço para uma ou duas questões de fundo que poderão ser decisivas no impacto dos ajustamentos anunciados.
As funções naturais do ensino secundário de preparar para o prosseguimento de estudos (não apenas universitários) e para o desempenho competente de uma actividade profissional (especialização de nível III de acordo com as certificações da Comunidade Europeia) só farão sentido no quadro de uma formação global que assegure os objectivos definidos na Lei de Bases do Sistema Educativo. Nesta linha é legítimo perguntar que medidas de enquadramento serão implementadas (medidas de gestão e organização curricular com particular incidência pedagógica, formação inicial e contínua de professores, regime de acesso ao ensino superior e de ingresso no mercado de trabalho) que permitam ajustar a formação secundária na sua globalidade e não apenas este ou aquele percurso e esta ou aquela modalidade do ensino secundário.
É neste contexto que faz sentido a questão da equivalência curricular dos cursos gerais (CG) e cursos tecnológicos (CT)1, cujo corolário redentor, do ponto de vista social, é (ou não) a igualdade de oportunidades de acesso e de sucesso no ensino superior. Seria bom que o anunciado reforço da diferenciação curricular entre CG e CT contribuisse para dotar os alunos dos CG de competências tecnológicas que os seus saberes teóricos implicam. É tempo de perceber que o prosseguimento de estudos na linha da compreensão e investigação teóricas dos diferentes ramos do saber não dispensa a capacidade de utilizar saberes práticos na composição de técnicas de produção e intervenção concretas. Existe uma tecnologia da produção de texto nas línguas e literaturas, por exemplo, como existe uma tecnologia de materiais nas ciências físicas. Ou seja, que o anunciado reforço da diferenciação entre estes dois percursos sirva para adequar as formações à diversidade de expectativas e motivações dos alunos e às necessidades sociais e não para vincar diferenças de formação que outro fundamento não têm que o de representações socialmente obsoletas e culturalmente retrógradas: os teóricos não sujam as mãos, os práticos não pensam.
Também não me parece possível prever grandes alterações reais no perfil dos futuros alunos certificados se não forem introduzidas alterações concretas na natureza da componente curricular. Destaco dois bons sinais: a criação das áreas de projecto e a decisão de renovar os programas. Mas penso que serão precisas alterações a nível da avaliação (natureza e regime), organização e gestão das escolas e formação de professores, aliás como prometido pelo Ministério. É bom não esquecer, no meio da retórica e da técnica da engenharia curricular, que é também na gestão concreta do processo de ensino-aprendizagem que, em última análise, se decide o êxito dos percursos formativos e educativos..
O resto é política... Se, como dizem uns, a política é a arte do possível, esta proposta do Governo poderá constituir uma plataforma comum de partida para todos os que sentem que a situação no ensino secundário já atingiu (há muitos anos) o descalabro e está em vias de ruptura eminente. Para os que entendem que a política é a arte do impossível, o que para já foi tornado público, mesmo podendo ser animador, sabe a (muito) pouco...
Existe em Portugal uma questão educativa que é uma questão social, isto é, de toda a sociedade ? tentar resolvê-la sem implicar todos os sectores da sociedade nela directamente envolvidos é condená-la (condenar-nos) ao fracasso.

1 Predominantemente orientados para o prosseguimentos de estudos os primeiros e para o ingresso no mercado de trabalho os segundos.

Paulo Pais
Escola Secundária do Padrão da Légua / Matosinhos

 


  
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Edição:

N.º 88
Ano 8, Fevereiro 2000

Autoria:

Paulo Pais
Professor, Porto
Paulo Pais
Professor, Porto

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