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O Logro ou A Memória do "Novo Romance"

No começo dos anos 60, despontou em Portugal um vivo interesse literário pela estética literária que constituía a "école du regard", sobretudo em França, com romances de excelente qualidade como A Modificação de Michel Butor, O Planetário de Nathalie Sarraute, O Ciúme de Alain Robbe-Grillet ou Moderato Cantabile de Marguerite Duras, que avançaram por renovados caminhos de expressão de que Jean Reverzy foi precursor com O Corredor, na esteira de Joyce ou de Kafka. Mas esse sentido de renovação trazido pelo chamado novo romance teve desde logo os seus defensores e praticantes, sem excessivas polémicas, mas provocando alguma indiferença em relação aos livros publicados dentro dos postulados estéticos que bem definiam as suas coordenadas no domínio da criação literária. Os casos mais flagrantes surgiram através de obras de ficção como Avenida de Roma ou Código de Hamurabi (Artur Portela Filho), A Centopeia e No Fundo Deste Canal (Alfredo Margarido) ou ainda O Logro (Mário Dias Ramos), a par de intervenções críticas de Manuel Antunes e de Vergílio Ferreira ou mesmo daqueles que por todos os meios procuravam defender os postulados a que obedeciam os seus livros. Podemos talvez dizer, na distância de tantos anos, que o fenómeno durou pouco e permitiu conhecer livros ainda de inegável interesse, não apenas por terem sabido entender os valores dessa corrente literária que chegava de França, mas por se revelarem como uma pedrada no charco face ao romance de tendência neo-realista e ter sido em oposição a esse movimento que mais nitidamente o novo romance se manifestou.
Não importa agora relembrar a história que está feita, mas é necessário dizer, na hora de se reeeditar um dos livros mais marcantes do novo romance em Portugal, que O Logro de Mário Dias Ramos, afirmando-se no plano da ficção como obra exemplar e um dos pontos altos na sua tão fragmentada obra literária, ainda se deve reler pelo sentido, intenção e clara originalidade expressiva do próprio romance, que procurou obedecer a um dos postulados de Robbe-Grillett quando afirmava por esse tempo "que o que persiste na nossa memória, o que surge como essencial e irredutível a vagas noções mentais são os gestos em si, os objectos, os movimentos e os contornos aos quais a imagem restituiu, quase sem o querer, a sua realidade, porque nesse universo romanesco gestos e objectos estão lá antes de serem qualquer outra coisa".
Romance de uma vida vivida e fixada em termos literários com pouco mais de vinte anos, O Logro afirma-se como apelo a uma verdade narrativa, não só pelo recurso à memória de infância e de adolescência, mas sobretudo como levantamento ficcional das pessoas e lugares que povoaram essa vida e ainda pela recorrência feita em sinceridade ao que de mais devastador marcou esse tempo que é recuperado ou reabilitado nas páginas do romance. Na sua forma fragmentada como interliga os elementos estruturais narrativos, falando do que sabe, recorda ou revive, Mário Dias Ramos elabora como "memória descritiva" tudo o que por dentro do narrador "se recusa" e a si mesmo ele recusa, porque tudo por aí renasce e morre ao mesmo tempo, no modo incessante de tudo saber relacionar e narrar, como se o discurso em queda livre fosse uma espécie de torrente que leva as suas águas para outros rios, sejam eles os da descoberta do mundo e do amor, dos atropelos dos outros, da procura de emprego ou da consciência da morte, como no tão comovido diálogo do narrador com o pai acerca da morte. Mas o que mais sobressalta em O Logro é ainda a plena e lúcida consciência que o narrador denota, um pouco como afirmara Vergílio Ferreira num breve ensaio sobre o "romance de ideias", de que um romancista não pode nunca alhear-se do que narra em oposição ao espectadorismo do romance realista, "por saber para onde se inclina, que afirmação, negação ou interrogação o traduz".
Romance de vincada sensibilidade, directo e objectivo nos pretextos narrativos de que parte, o fascínio de O Logro, como então Fernando Namora pôde observar, "reside fundamentalmente na fusão, equilibrada e autêntica, entre os problemas que nos impressionam e o modo como são transmitidos" ou seja, não mergulha em nenhuma espécie de ambiguidade que diminua o sentido intencional do seu discurso literário ou se esconda em subterfúgios ficcionais que prejudiquem a verdade do que narra: a emotividade que domina a escrita, passados quase quarenta anos sobre a sua primeira edição, reabre em nós, quando fomos companheiros de sonhos de muitas horas pelas ruas do Porto tão longínquo, esse sentimento de adesão e de comunhão com um discurso que ainda ressoa na distância do tempo e se arvora com a força das grandes vagas que tudo varrem, mas deixam atrás de sinais imperecíveis desse embate. No caso concreto deste breve romance de Mário Dias Ramos o que mais nos comove e renova a nossa emoção é ainda o sentido de tudo ser verdade e o tempo não ter apagado ou varrido as muitas pedras que espalhou pelo caminho, na lembrança do poema de Drummond de Andadre de que "no meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha um pedra".
E por isso dizemos que essa pedra continua no meio do caminho pela releitura sentida que agora fazemos de O Logro, no longo e tão breve trajecto percorrido por Mário Dias Ramos desde o primeiro livro - 8 Poemas para a Nova Madrugada (1959) - de que Jorge de Sena fez a apresentação na forma pessoal de saudar um jovem poeta que trazia consigo a claridade de outros sóis. Nem tudo se cumpriu, é verdade, porque o poeta de A Palavra Nua muitas vezes se deixou vencer por outros anseios, espalhou outras pedras no caminho, que evidenciam o sentido fragmentário de uma vocação literária que poderia ter marcado presença mais destacada no domínio da nossa ficção e poesia. Mas ao reler-se agora este reedição de O Logro, valorizada com excelentes texturas fotográficas de Miguel Louro, devemos ainda repetir o que afirma Baptista-Bastos no seu prefácio numa idêntica forma de clara cumplicidade: "Eis um belíssimo texto que os anos remoçaram, que os anos não perderam devido ao facto de tocar em sentimentos eternos, e de expor esses sentimentos através de um idioma simples mas não singelo, claro mas não fútil, e intenso, e complexo, e significativo. Estamos lá todos. Você também".

Serafim Ferreira

Mário Dias Ramos
O LOGRO, 2ª. edição
Prefácio de Baptista-Bastos
Ed. DAFNIS / Lisboa, 1999.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 87
Ano 8, Janeiro 2000

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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