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Explicações

Algumas (particulares) Explicações

Explicáveis nas falhas do sistema educativo

Quantos dos professores que nos estão a ler não deram já explicações particulares a um ou outro aluno? Seja a título gratuito, ou de forma não menos justa - contra pagamento, é quase certo que muitos se devem ter confrontado com este pedido. Mas onde acaba a boa vontade e começa um negócio potencialmente lucrativo? Não é uma pergunta com resposta fácil. Sobretudo se tivermos em conta que, neste domínio, as questões de ordem ética - é ou não correcto tirar partido económico de alunos com dificuldades de aprendizagem - são facilmente discutíveis.
As causas directas para esta procura devem, em primeira instância, ser assacadas às falhas do sistema educativo - seja qual for a forma de que elas se revistam. Mas depois, quem, senão ao estado, cabe a responsabilidade de garantir condições de trabalho nas escolas e de apoios capazes? Por outro lado, não caberá também aos encarregados de educação uma quota parte dessa responsabilidade? É o funcionamento do sistema, dir-se-á uma vez mais.
A vaga de novos exames que foram sendo introduzidos no sistema educativo - nomeadamente as provas globais ao fim de cada ciclo de aprendizagem - têm indubitavelmente feito subir a procura. Na mesma proporção, a falta de emprego generalizada e, mais concretamente, o cada vez menor número de saídas nas vias de ensino, aumentaram a oferta. Para estes, a solução passa muitas vezes por esta alternativa.
É o caso de Helena Morais, que não hesitou em fazer das explicações individuais a sua principal actividade. Aos 22 anos, quando concorreu pela primeira vez aos mini-concursos, não fazia ideia das dificuldades que iria encontrar para conseguir colocação no ensino público. A história já é conhecida: filas intermináveis para as candidaturas, escolas situadas longe de casa, salário abaixo das expectativas. Um rol de situações que, refere a jovem professora, "não consegui suportar por mais de dois anos".
Um dia surgiu a oportunidade de dar explicações a dois alunos que se preparavam para as provas específicas de matemática do 12º ano. A experiência funcionou como uma espécie de teste. "Não sabia se tinha capacidade para me relacionar com miúdos mais velhos e, sobretudo, se conseguiria ter êxito com eles". Essas preocupações ficariam dissipadas cerca de quatro meses mais tarde, quando ela soube dos resultados dos exames dos seus explicandos. "Telefonaram os dois a agradecer-me. Fiquei muito contente".
A partir daí dedicou-se exclusivamente a preparar e a acompanhar alunos do 3º ciclo e do secundário. A jornada de trabalho é ocupada com duas a três horas de explicações diárias, consoante os dias da semana, podendo chegar às quatro em alturas de maior solicitação, como o final dos períodos escolares ou as épocas de exames. Apesar de ter consciência de que não exerce propriamente uma profissão - não passa recibos e não desconta para a segurança social -, nem de que esta será uma actividade para toda a vida, Helena sente-se agradada com o que faz. Tanto, que já pensou mesmo em legalizar a sua situação.
Isto, explica, porque além de ganhar praticamente o mesmo que no ensino oficial, tem mais tempo para si própria e pode organizá-lo como prefere. "É bom porque posso fazer muitas das coisas que habitualmente não podia: ler, fazer compras ou simplesmente sair para tomar café com um amigo. Em termos de satisfação pessoal é bastante recompensador".

Estudantes explicadores

Para além dos professores, ou dos candidatos a professores, existem ainda, e principalmente, os estudantes. Os motivos são óbvios: equilibrar um já de si parco orçamento ou, mais simplesmente, ganhar algum dinheiro enquanto não se procura emprego. As experiências podem variar significativamente, como iremos ver a seguir.
"Uma experiência pouco agradável". É desta forma que Ana Almeida, estudante do 4º ano do curso de línguas germânicas da Faculdade de Letras do Porto, se refere ao curto período em que trabalhou como explicadora. Foi praticamente no início do curso, quando uma amiga lhe pediu que a substituísse por um ano num centro de estudo situado em Gaia.
O desafio não parecia fácil. Helena conta que na mesma sala chegavam a juntar-se seis e mais alunos de diferentes níveis de ensino, situação que, frequentemente, fazia dispersar a concentração de uns e outros. "Tive alunos que não compreendiam ao certo porque ali estavam". Um aluno do 1º ciclo, recorda, chegou mesmo a admitir-lhe que não gostava de aprender e que estava ali por mera obrigação. "Quando acabar de estudar vou para trolha e vou ganhar mais do que a 'stora', que tem de dar explicações por ganhar tão mal...", conta com um misto de divertimento e de estupefação. "Temos de ter imenso 'cabedal' para lidar com situações destas".
O trabalho tornava-se tanto mais difícil quando as disciplinas estavam divididas por dois grupos genéricos - humanidades e ciências -, o que levava à acumulação de diferentes matérias pelas três únicas explicadoras de serviço: ela própria, outra rapariga que raramente encontrou e a gerente do estabelecimento, uma contabilista. Do extenso rol que lhe estava confiado constavam disciplinas tão díspares como português, inglês, francês, geografia, história e mesmo filosofia.
"Até ao 9º ano, onde os conhecimentos são básicos, ainda é relativamente fácil explicar-lhes a matéria e pô-los a trabalhar através de exercícios. Mas com os miúdos mais velhos já não é assim. É necessário pesquisar alguns temas e estudá-los para saber como explicar-lhes". É o caso de filosofia, por exemplo. Além disso, sublinha, "os alunos de níveis de ensino mais avançados requerem uma disponibilidade quase exclusiva, o que ali se tornava difícil". Na sua opinião, é cada vez mais frequente recorrer-se a este tipo de estudo em grupo. "As explicações individuais ficam para quem tem poder de compra, que já por si são aqueles que têm, à partida, melhores condições de acompanhamento em casa".
Além da evidente falta de preocupação pelas exigências pedagógicas que o estudo acompanhado requere, Ana descobriu também que a responsável pelo centro passava facturas falsas aos encarregados de educação. Os verdadeiros recibos eram meticulosamente controlados para dar a impressão de existir uma contabilidade organizada. Ana Almeida soube apenas que os preços praticados eram baixos - alguns alunos chegavam a pagar apenas trezentos escudos por hora -, mas nunca teve acesso às fichas de inscrição nem aos valores recebidos.
Estas e outras situações irregulares levaram-na abandonar o lugar, cerca de um mês e meio mais tarde. Apesar de ter tentado contactar a dona do estabelecimento, nunca conseguiu encontrá-la ou receber qualquer vencimento pelo trabalho prestado.
Motivações um tanto ou quanto diferentes levaram Cláudia Costa, aluna do 4º ano do curso de Engenharia do Ambiente, a dedicar-se às explicações de matemática e física. Começou há três anos, para ganhar algum dinheiro extra, e conseguiu juntar o útil ao agradável: "além de gostar de explicar, acho que tenho capacidade para 'dar a volta ao texto' e explicar-lhes por outras palavras aquilo que à partida parece ser difícil de compreender. Mas só dá explicações até ao 9º ano, refere, porque não sabe se teria capacidade para lidar com alunos de níveis de ensino mais avançados.
A maior ou menor facilidade de atingir os objectivos varia. Afinal, a diferentes personalidades correspondem, necessariamente, diferentes motivações. "Depende muito dos alunos. Há os que estão com atenção e dispostos a aprender e outros que vêm por obrigação, porque os pais até acharam melhor. A esses é difícil chegar e é necessário aplicar outros métodos". Recorrendo a jogos e brincadeiras, por exemplo, como é o caso da lei da queda dos sólidos, explicada com um objecto mais leve e outro mais pesado. Além de lhes explicar física, química e biologia, ajuda-os também a organizar o estudo nas disciplinas de Português e Inglês.
Apesar deste jeito quase "natural" para dar explicações, garante que não gostava de ser professora. "É relativamente fácil chegar a um ou dois miúdos. A uma sala com vinte ou trinta é muito diferente. Acho que me sentia frustrada de não conseguir chegar a todos e de ver alguns a ficarem para trás."
Cláudia Costa não consegue disfarçar uma ponta de orgulho quando refere que conseguiu ajudar os seus três alunos a recuperar as negativas que traziam. Os preços que pratica são módicos - 1500 escudos à hora -, mas, tendo em conta os resultados, considera-se mal paga. "Faço-o em consideração pelo facto de serem vizinhos e de já os conhecer há algum tempo. Mas sempre são 22 contos por mês, o que dá jeito". Acima de tudo, garante com ar sincero, "sinto-me realizada por ter tido sucesso com eles".
À parte destas experiências esporádicas, há quem encare seriamente este tipo de actividade, se organize de forma legal e veja nela uma profissão mais estável do que outras.

Na base de empresas

Começaram a dar explicações em casa, mas cedo perceberam que o espaço era exíguo para as solicitações. Decidiram, por isso, abrir um espaço que permitisse não só albergar um maior número de explicandos, como também proporcionar-lhes melhores condições e aumentar a oferta de disciplinas. E não se saíram mal. O Kepler-Centro de Estudo - assim denominado pela admiração que têm por este físico e matemático da antiguidade - fica numa rua sossegada e as salas são iluminadas e acolhedoras.
Os sócios desta aventura são ambos jovens. L. Marcos tem 35 anos, e Carlos Pacheco - o "relações públicas" -, tem 31. Este último não recusa a ideia de se tratar de um negócio como qualquer outro: "é um negócio na medida em que vivemos disto. Um compositor que venda as suas composições vive desse negócio. Tudo depende da definição que lhe quisermos dar", defende.
Carlos Pacheco faz das explicações a sua principal actividade desde há dez anos. Não concluiu o curso. "É preciso uma paixão e uma dedicação muito grandes para estudar matemática pura. E eu a certa altura desapaixonei-me". Apesar disso, diz que continua a nutrir um gosto especial por esta ciência e, talvez mais importante, gosta de explicá-la aos mais novos.
Quando fazemos referência a centros de estudo similares sem qualidade pedagógica, garante imediatamente que qualquer um dos explicadores que contratam, para trabalhar em parceria com eles, estão habilitados a fazê-lo. "Em termos de conhecimentos isso nem sequer se põe em causa. A nossa preocupação passa fundamentalmente por arranjar pessoas que estejam habilitadas a lidar com os alunos". O primeiro passo é uma entrevista pessoal. Se não ficarem com boa impressão da pessoa, recusam a candidatura. "O importante é que os alunos se sintam à vontade. E habitualmente sentem-se: tratam os explicadores por tu e vêem-no apenas como colegas mais velhos".
Candidatos não faltam. O ano passado colocaram um anúncio no jornal a pedir explicadores e no próprio dia da publicação telefonaram 37 pessoas. Este ano, sem publicarem qualquer anúncio, já receberam vinte candidaturas, na sua maioria proveniente de estudantes da Faculdade de Letras. "É para se ter uma ideia de como anda o mercado de emprego", diz, por seu lado, L. Marcos.
De acordo com Carlos Pacheco, a procura por este tipo de serviço tem vindo a crescer, entre outras razões, devido ao aumento do rendimento médio das famílias portuguesas. "Muitas vezes são os próprios pais que, mais do que os filhos, se preocupam em assegurar-lhes um complemento de estudo", afirma por experiência própria. Os preços praticados, assegura, assim o permitem. Embora ofereçam diversas modalidades e diferentes tabelas, o preço médio de cada explicação ronda os 1500 escudos. Parece pouco, mas gradualmente a facturação anual da empresa já atingiu os dez mil contos. "É preciso ter em conta que tivemos de pagar a 44 explicadores ao longo do ano passado. Eu próprio não ultrapasso um rendimento mensal médio de 160 contos. Mas vai dando para viver."
Mas estas quantias são irrisórias se se tiver em conta que alguns profissionais chegam a auferir valores na ordem das centenas ou do milhar de contos mensais. Tanto Ana Almeida como Carlos Pacheco disseram ter conhecimento de situações análogas. Pela nossa parte, não encontramos ninguém que pudesse corresponder a esta informação. No entanto, é de admitir que duas opiniões no mesmo sentido já é mais do que uma mera coincidência.
Para inverter esta tendência, Ana Almeida é da opinião que as escolas deviam ser dotadas de espaços para estudo acompanhado mais capazes de responder às solicitações dos alunos. Mas quando isso acontece, refere, não passam, muitas vezes, de uma mera continuação da sala de aula, onde os métodos e os vícios de aprendizagem continuam a ser os mesmos. "A muitos alunos, antes de se lhes explicar o canto nono dos Lusíadas, é preciso recordar os tempos verbais ou as construções frásicas que se aprendem no 2º ciclo. É um fenómeno em catadupa: se aprendem mal no 1º ciclo, passam para o 2º e 3º ciclos sem saber e aí os professores já não têm tempo para lhes explicar o que vem de trás."
Carlos Pacheco partilha de certo modo desta opinião. Falando exclusivamente pela sua área de ensino, diz que grande parte dos professores de matemática não têm formação específica e que, desta forma, será provavelmente mais difícil motivar os alunos.
"E esta situação cria um círculo vicioso: os alunos não se interessam por matemática, não sabem o que aquilo é ou para que serve, e, por sua vez, a quantidade de pessoas que chegam ao ensino superior verdadeiramente interessadas em ensinar é cada vez menor. Mesmo as que se mostram interessadas chegam com fundamentação insuficiente e têm dificuldades em concluir o curso. É uma situação muito complicada e não vejo de que forma possa ser resolvida.".

Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 84
Ano 8, Outubro 1999

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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