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Américo Nunes Peres em Entrevista a "a Página"

A CASA DO SABER
ESTÁ EM PERMANENTE CONSTRUÇÃO

É TERRÍVEL QUE A ESCOLA NÃO SEJA
UM LUGAR DE ENCONTRO
ONDE AS PESSOAS TENHAM PRAZER
EM ESTAR E SE SINTAM FELIZES

A ESCOLA NÃO PODE SER INDIFERENTE
ÀS DIFERENÇAS

..E DEVE SER UM ESPAÇO
DE LUTA CONTRA A DISCRIMINAÇÃO
ONDE A RACIONALIDADE E EMPATIA
CAMINHEM DE MÃOS DADAS

Américo Nunes Peres é licenciado em Filosofia (Faculdade de Letras da Universidade do Porto) e doutorado em Ciências da Educação (Universidade de Santiago de Compostela). O seu lema de vida é '"igualdade para viver, liberdade para conviver". Não surpreende, portanto, que a sua tese de doutoramento reflicta este modo de estar e de viver.
«Educação Intercultural: Utopia ou Realidade», que a Profedições acaba de editar, resulta da sua história pessoal e profissional e "é fruto de muitos contactos imaginários e reais com pessoas, acontecimentos e culturas de vários países", "de encontros e desencontros, construções e desconstruções, sonhos e realidades, configurados por uma cultura popular, académica e pedagógica" - para tentar saber como pensam e actuam os professores face à educação intercultural, o trabalho de campo foi levado a cabo em duas cidades (Chaves e Genebra) marcadas por processos migratórios e onde decorrem experiências interculturais.
Natural de Sarzedas, Castelo Branco, apaixonou-se por uma flaviense, com quem casou e tem uma filha - a Mariana (17 anos), que, nestas páginas, tão originalmente comenta o livro do pai, em "Abre os olhos e caminha". E porque a paixão pode mais do que tudo, o beirão de nascimento fez-se povo transmontano e adoptou Chaves como a 'sua' pátria.
É lá, onde "a vida corre calma e tranquila", que exerce funções docentes e de representação do reitor no pólo local da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD); anteriormente, desempenhado funções em todos os níveis de ensino, sobretudo nas áreas da Pedagogia e da Formação Inicial e Contínua de Professores, nomeadamente na ex-Escola do Magistério Primário de Chaves, da qual foi director.
É também em Chaves que, no dia 14 de Setembro, a Profedições vai lançar «Educação Intercultural: Utopia ou Realidade» - um olhar para as evidências empíricas de que a humanidade é o conjunto de todas as mulheres e de todos os homens e de que a bandeira de Langaney (tous parents, tous différents) "é uma saga escorregadia, embora deva ser segura e radical a favor dos injustiçados, oprimidos e excluídos".
Américo Nunes Peres é o nosso entrevistado desta rentrée.
Conforme sejam utilizados na Europa ou na América, respectivamente, interculturalidade e multiculturalidade são conceitos que, acima de tudo, reportam ao respeito e à valorização da identidade de cada pessoa, preconizando uma cultura da diversidade.
Fiel a um conceito dinâmico de interculturalidade - "não basta que as culturas estejam juntas" -, o autor de «Educação Intercultural: Utopia ou Realidade» acredita que as culturas interagem e, no plano educacional, defende a necessidade de entrosamento entre as pessoas; que elas convivam e, em última análise, aprendam umas com as outras, de uma forma crítica, livre e democrática. Só assim a Escola contribuirá para a formação de cidadãos conscientes e habilitados a transformar os contextos em que se integram.
Naturalmente, a conversa com América Nunes Peres começa por aqui.


P - Sendo certo que a problemática da identidade/diversidade não é recente, porque é que, entre nós, o discurso assumido da educação intercultural, ou multicultural, não terá muito mais do que uma dezena de anos? Porque é que, por exemplo, se voltou a falar de Paulo Freire, após tantos anos de esquecimento numa qualquer gaveta?

R - A recente reflexão sobre a educação intercultural resulta da tomada de consciência sobre identidade e diversidade.
Em 1994, participei, em Barcelona, no congresso "Perspectivas Críticas para a Educação". O último conferencista foi exactamente o Paulo Freire, e devo dizer que ele conseguiu pôr os 800 participantes a aplaudi-lo durante cinco minutos, e de pé - não só pela conferência, mas, sobretudo, por ter dito algumas coisas que, para nós, tinham mais actualidade do que aquilo que ele dizia no início dos anos 70. Aliás, ele próprio afirmou que, com o passar dos anos, cada vez acreditava mais na pedagogia que começou a defender no início dos anos 70.
E isto porquê? Porque, as políticas neoliberais têm pretendido convencer-nos de que agora somos todos iguais. Mas nós não somos todos iguais, apesar de a civilização dita desenvolvida pretender convencer-nos, através de discursos neoconservadores e neoliberais, que estamos todos na mesma posição. Não, não! Os empregados continuam a ser empregados, os patrões continuam a ser patrões e os estudantes continuam a ser estudantes...
Ora, o que Paulo Freire defendia era uma perspectiva dialógica, em que o diálogo passa por uma tomada de consciência do lugar que cada um ocupa no mundo. E essa consciência passa, fundamentalmente, por eu ser um sujeito que pensa e que faz uma leitura do mundo e das pessoas. Mas uma leitura própria, e não a que outros querem que se faça. Até porque, como ele dizia, se olharmos para o mundo de hoje, o desequilíbrio entre ricos e pobres é cada vez maior.
Como exemplo, ele dizia: será que há milhões de brasileiros que morrem de fome porque são estúpidos? Não, eles morrem de fome porque não lhes foram dadas condições para terem uma vida digna e porque, na verdade, há exploração por parte dos que detêm o poder económico e que escravizam e oprimem os mais desfavorecidos.
A mim parece-me que, de facto, a leitura do mundo tem de ser feita numa perspectiva crítica. Obviamente, não podemos ignorar que as condições sociais, económicas, culturais e políticas são melhores do que há uns anos atrás, mas também não devemos abster-nos de uma consciência crítica sobre aquilo que me pretendem convencer que é o mundo de hoje. E, na minha opinião, o mundo é de meia-dúzia de pessoas, o que não dá possibilidades de diálogo e de condições de vida digna para todos.
Penso, por isso, que o pensamento freireano é perfeitamente actual. Precisamos de ser críticos para podermos transformar o mundo. Se assim não for, continuaremos a fazer a teoria da reprodução: quem já está bem continua a estar, e àqueles que não têm voz - e são muitos, infelizmente - nunca lhes é dada a possibilidade de pensarem e transformarem a própria realidade.
Nesta perspectiva, uma pedagogia intercultural - ou multicultural, como lhe chamam nos EUA - não é mais do que o respeito por todos os indivíduos, criando-lhe condições efectivas para que tenham uma vida digna. E aqui, mais uma vez, o Paulo Freire tem razão: a educação deve ser, primeiro, a leitura do mundo; depois, pode ser a leitura dos textos. Ou seja, para transformarmos o contexto em que vivemos, temos de o saber interpretar.

P - No seu livro preconiza a educação intercultural como o desenvolvimento de projectos locais em relação com projectos globais. Sendo assim, uns não poderão anular os outros? Não haverá o perigo de reproduzir localmente os vícios da globalização? Não se estará a propor uma forma de neocolonialismo? Ou a fazer o marqueting da integração sem pensar que os sujeitos que se pretendem integrar podem não querer ser integrados?

R - Entendo perfeitamente. Há uns anos existia uma perspectiva unidimensional do mundo; tínhamos de pensar todos da mesma forma e, talvez, de agir de forma única. E esta perspectiva etnocêntrica também se verificou em termos do conhecimento e dos saberes, tentando impor aos outros os nossos modelos culturais.
Mas eu parto do pressuposto que todas as realidades são plurais, tal como não há duas pessoas iguais; cada uma cresce de acordo com as características do meio onde nasce. Todos carregamos um pouco da nossa terra e da nossa cultura, mas o que aconteceu durante muitos anos foi que a nossa terra e a nossa cultura eram tidas como algo que devia sujeitar-se a um determinado modelo - por exemplo, eu, que nasci na aldeia, senti que a escola nunca privilegiou muito a cultura rural e que tentava impor-me determinados modelos de natureza urbana; no entanto, há determinadas raízes que mantenho hoje, das quais me orgulho, e que a escola nunca valorizou.
Hoje, no entanto, já se começa a dizer que não há culturas superiores ou inferiores. O que quer dizer que não podemos olhar para o mundo como um universo fechado, porque o mundo em que vivemos localmente não tem horizontes muito largos e a gente não abarca muita coisa. Pelo contrário, uma visão global do mundo só nos enriquece, uma vez que há referências culturais completamente distintas das nossas - o mundo é um pluriuniverso muito complexo, mas, se tivermos esta atitude de abertura, penso que mais facilmente o poderemos entender.

P- Mas, especificando a relação dos projectos locais com os globais...

R - O problema que eu coloco tem a ver com a elaboração de projectos comuns, na perspectiva, como dizia atrás, de que há muitos aspectos deste pluriuniverso para os quais temos olhado como algo que nos é contrário e que só nos valorizam. Quando eu digo pensar globalmente e agir localmente é exactamente neste sentido.
Por outro lado, eu não posso perder de referência os conceitos, os textos e as pessoas de carne-e-osso que me influenciaram; não posso negar que Paulo Freire me influenciou, que Marx me influenciou, mas também não posso negar que a minha aldeia e a cidade onde vivi me tenham influenciado e que há pessoas concretas que continuam a ser referência para mim, apesar de viverem em contextos diferenciados dos meus.
Por exemplo, Ana Benavente continua ser referência em termos de formação de professores. Mas também é referência Ken Zaichner, que trabalha na Universidade de Visconsin-Madison, como o são António Caride (Santiago de Compostela) e Pierre Dasen (Universidade de Genebra) - são referências teóricas, mas também práticas, porque alguns conheci-os nas minhas vivências, e dei-me conta de que tinham uma visão não-mercantilista do mundo, uma visão de luta a favor da educação e da liberdade para todos e da criação de condições para todos terem um mínimo de qualidade de vida.
Ora, eu tenho para mim que isto se manifesta na minha rua, no meu bairro, na minha escola. Portanto, se eu não pensar globalmente, não conseguirei agir localmente, nem transformar gradualmente a escola, a rua e o bairro, através do meu exemplo, das minhas vivências e dos meus projectos concretos. São as minhas reflexões globais que me ajudam a agir localmente...

P - E a interagir, ou não? Se assim não for, quando optamos por um determinado modelo educacional - e porque pensamos num conjunto de valores que entendemos serem os melhores para uma determinada realidade -, não estaremos a pôr em causa a condição do 'outro como interlocutor comunicacional e parceiro negocial' que refere no seu livro? Ou seja, quando se está a ensinar, não se pode perder a noção de que, também, se deve aprender...

R - Concordo inteiramente, mas mal de nós, professores, se não temos nada para ensinar. E isto faz-me pensar num rifão muito utilizado e atribuído a Bernard Shaw: quem sabe, sabe; quem não sabe, ensina - depois acrescenta-se que quem não sabe ensainar, faz formação de professores; e alguns, mais maledicentes, ainda dizem que quem não sabe fazer formação de professores, investiga... Eu penso que apesar do sentido pejorativo do rifão, há nele algum fundo de verdade. Mas são muitas as referências que dizem que, para se ser um bom professor é necessário ter conhecimentos; eu não posso ensinar se não souber conteúdos.
O que pode é haver perspectivas de abordagem metodológica completamente diferentes, e aqui parece-me que a pedagogia intercultural me ensina a reposicionar o meu Eu, descobrindo-o nos outros; o Outro afirma-se se eu o respeitar efectivamente, e eu posso descobrir-me através dele.

P - É esse o leitmotiv da pedagogia da alteridade que defende?

R - Exactamente. Se eu não respeito os outros, também não me respeito a mim próprio. Porque o Outro faz parte mim, interage comigo; e essa interacção é, muitas vezes, de diálogo ou de confronto.
Há uns anos, pensava-se que todos devíamos dizer amém a quem sabia mais do que nós, mas hoje damo-nos conta de que aprendemos com os garotos do jardim de infância, com os do 1º ciclo, do 2º, do 3º... Eu não me envergonho de dizer que dei os primeiros passos na informática através da minha filha...
Ou seja, enquanto há uns anos a casa do saber estava feita, hoje ela está em permanente construção. E o mesmo acontece em termos de relações pessoais - eu descubro-me no Outro, e o Outro descobre-se em mim; se eu aprender a gostar de mim próprio, de certeza aprendo a descobrir o outro e a gostar dele próprio. Portanto, a profissão de professor é um pouco isto - no dia-a-dia eu sei, mas aprendo. E ai de quem não quer aprender todos os dias, de quem não se quer renovar todos os dias, de quem não quer construir o seu saber todos os dias...
Penso que esta é a grande riqueza da educação intercultural, porque permite que o Outro seja visto por mim não como objecto, mas como sujeito que aceita que eu comunique com ele e que comunica comigo; que permite que nos valorizemos conjuntamente. No fundo, é o que eu dizia há pouco - as realidades são plurais e diversas, mas eu posso desenvolver projectos em comum. E é isso que está implícito na concepção da educação intercultural - respeitar o outro, valoriza-lo e aprender com ele, sem me colocar numa posição de superioridade, porque, efectivamente, todos podemos aprender uns com os outros.
Nesta perspectiva, a função do professor é passar a mensagem de que a Escola é, talvez, o melhor local onde se pode praticar a interculturalidade. Nas escolas, apesar de haver sexos diferentes, e etnias, religiões e condições sociais diferentes, podem desenvolver-se projectos comuns, que respeitem e valorizem todos os implicados.
A educação intercultural é um projecto complexo. Mas é um projecto que está aí, não pela globalização numa perspectiva mercantilista, mas enquanto pensar global e agir local.

P - Referiu que a Escola é, talvez, o campo por excelência para a educação intercultural - que, em todo o caso, também se realiza a muitos outros níveis. A minha dúvida é sobre o relacionamento e a interacção da Escola com outros agentes/parceiros educativos, sem correr o risco de se anular perante as suas exigências e de estar a reproduzir a cultura dominante.

R - Essa é, também, uma das minhas maiores dúvidas...
Eu sou dos que acreditam na Escola, mas, por outro lado, também sou dos que dizem que a Escola tem sido uma oportunidade perdida...

P - A questão é que referiu que a Escola é, talvez, o melhor palco para a educação intercultural. Mas se pode ser talvez, talvez também possa não ser...

R - Concordo: talvez sim, talvez não...

P - Então, se talvez não, a Escola não corre o risco de não ter futuro, de ser apenas uma espécie de escola paralela?

R - Sim, sim... Esta tem sido das questões que mais me tem preocupado, porque, como dizia, acredito na Escola, embora não como um lugar de certificação, selecção e reprodução, nomeadamente em termos sociais. Mas também acredito no que Fridman chama 'escola paralela' e que se aprende mais fora do que dentro da Escola. Até porque, às vezes, a escola é mesmo um lugar triste, onde não se sente prazer nenhum em estar...

P - E às tantas, o problema já não é aprender mais ou aprender melhor, mas aprender coisas mais interessantes...

R - Exacto. Eu, como tenho sido professor nos diversos níveis de ensino, vou sentindo isso, e acho terrível que a Escola não seja um lugar de encontro e de convivência, onde as pessoas tenham prazer em estar, onde se sintam felizes.
E isso acontece porquê? Porque, possivelmente, ainda não conseguimos ir além do ler-escrever-contar e do certificar. E quando enchemos a boca a dizer que a Escola deve afirmar valores, referências, atitudes e comportamentos - em última análise, dizemos que a Escola deve ser a vivência da cidadania -, eu dou-me conta de que a Escola não é isto, porque os currículos não estão minimamente adaptados às grandes mudanças que se verificaram em termos sociais e culturais, de estradas da informação, etc.
Provavelmente, os alunos têm muito mais prazer vendo coisas diferentes das que estão nos manuais porque, se calhar, olham para o saber ensinado na Escola não como uma memória viva, mas como algo que sabe a mofo, a passado. Então, eu acho que, embora se apregoem pedagogias activas e a utilização de toda a tecnologia educativa, a Escola não consegue passar a mensagem do prazer em aprender.
Obviamente, também considero que a aprendizagem é um acto de vontade pessoal que exige esforço e que a Escola não pode ser apenas brincadeira, que não pode ser infantilizada. Mas pode sentir-se prazer no esforço que se desenvolve, desde que as coisas tenham interesse e nos motivem, e parece-me que é isso que a Escola ainda não conseguiu dar - porque os currículos estão desajustados em termos de informação e, por outro lado, porque a informação é tão ampla e múltipla que se torna complicado aceder a todas as fontes.
Por tudo isto, a Escola tem por obrigação reconceptualizar os conceitos e adaptar os currículos a uma nova perspectiva e a uma nova forma de viver e de estar no mundo. E também aqui me parece que a educação intercultural pode ter um papel muito importante. A nossa visão da história, por exemplo, não pode ser culturalmente etnocêntrica, como era há anos. E o mesmo se passa ao nível do estatuto do homem e da mulher - nos manuais do 1º Ciclo, que não são muito diferentes dos do nosso tempo, há determinados estereótipos perfeitamente vincados, que vêm de muito antes do 25 de Abril e já estão nas cabecinhas de garotos de 7 anos, como tenho verificado nas práticas pedagógicas da formação inicial a que assisto.
Fundamentalmente, a Escola deve ser - para além de uma fonte de instrução, o que não nego -, um local que prepare cidadãos de pleno direito e um meio de promoção daqueles que têm mais dificuldades, dos que não têm voz.

P - A propósito: para um trabalho publicado neste jornal ["Ser polícia também cansa", Março/99], um pai dizia-me que a escola parou no tempo, quando devia assumir-se como uma vanguarda, e lamentava a pouca atenção com que, alegadamente, a Escola trata as crianças e as famílias.

R - E talvez tenha razão, porque a Escola é uma máquina pesada que resiste à inovação e à mudança, que fala uma linguagem de tal forma elitista que não serve aos pais. A Escola fala uma linguagem formal, intelectualizada e discursiva, ao passo que as famílias utilizam mais uma linguagem dos afectos - e como utilizam linguagens diferentes, reflectindo valores e atitudes específicos, a Escola e a Família não se entendem e não param de se culpabilizar.
Em concreto, nem a Família vai à Escola, nem a Escola vai à Família. E aqui parece-me que a Escola ainda não apreendeu a necessidade de encontrar um verdadeiro canal de comunicação com a Família. Se não, repare: como é que a Escola estabelece contacto com as famílias? Normalmente escreve um postal ou uma carta, mas nunca para informar sobre as conquistas dos alunos - é sempre para denunciar os comportamentos e as asneiras dos educandos. E este discurso tem um reverso, porque os pais respondem que, em casa, os filhos são bem comportados e aprendem tudo. Ou seja, pelo seu lado, os pais não conseguem ver para além da esfera familiar.
Tudo isto torna urgente a necessidade de encontrar um espaço de interconexão Escola-Família onde se estabeleça uma efectiva relação de parceria, e não de clientela, ou, por outras palavras, de desenvolver a comunidade educativa; e há muitos pais que podem desempenhar um papel importante. Simplesmente, uns e outros persistem em criar barreiras...

P - Como assim?

R - Professores e pais, todos defendemos a interacção Escola-Meio, mas não somos capazes de utilizar uma linguagem comum que permita entendermo-nos sobre os valores que, no fundo, são de todos. Porque todos nós queremos que os nossos filhos sejam bons filhos, tanto como queremos que os nossos alunos sejam bons alunos - o problema é que os professores vivem uma espécie de hibridismo paternal-docente, ao mesmo tempo que os pais não conseguem descentrar-se do seu estatuto e imaginar-se na pele dos professores.
Mas os projectos podem, efectivamente, ser comuns. E sobre este aspecto tive um professor da Universidade do Minho (Ribeiro Dias) que muito me ajudou a pensar, defendendo que a única educação que deveria existir era a educação comunitária, porque na comunidade as pessoas interagem e vivem as conquistas e os problemas umas das outras. No fundo, é um pouco o idílio de que a educação das crianças da aldeia era feita por todos os vizinhos - todos podemos tomar parte activa na educação, basta que o projecto educativo seja participado por toda a comunidade.

P - O que supõe que a própria Escola se reorganize, redimensionando-se e, eventualmente, ajustando a sua cultura...

R - Esse é o grande problema, porque a cultura escolar é ainda demasiadamente empresarial, baseada em concepções napoleónicas e da revolução industrial: uma aula, uma paragem, outra aula; um capítulo e, na semana seguinte, outro capítulo - é uma sequência de características nitidamente industriais que não permite à Escola parar para reflectir e para que, conjuntamente, alunos e professores reconstruam o próprio conhecimento.
Neste sentido, a Escola continua a basear-se numa concepção bancária; permanece um banco onde apenas se vão buscar conhecimentos que não servem para dialogarmos uns com os outros, nem para pensarmos criticamente. E, reconheçamos, o mesmo acontece com a formação contínua de professores - as pessoas frequentam cursos que apenas as bonificam em termos de progressão na carreira, quando poderiam dispor de modelos centrados nas escolas, que respondam aos problemas específicos de cada contexto.
Também por isso eu dizia que, às vezes, a Escola me parece uma oportunidade perdida - embora seja evidente que melhorou, as formas de organização continuam a ser burocráticas, sequenciadas e industriais, não correspondendo às necessidades e expectativas da sociedade e do mundo actuais.

P - Voltando aos professores, na introdução do seu livro cita Paulo Freire: "um professor crítico deve ser 'aventureiro', responsável, predisposto à mudança e à aceitação do diferente". Da sua experiência, concluiria que os professores portugueses correspondem a este perfil ou, pelo contrário, são conformados, mais funcionários do que pedagogos...

R - De facto, penso que ainda somos um bocado funcionários, e até costumo dizer - não sei de quem é a frase, mas talvez de Abel Salazar ou António Sérgio - que continuamos a carregar a albarda da resignação. No entanto, também tenho vontade de acreditar que as utopias são realizáveis, que todos os dias fazemos umas coisitas novas e que a gota de água que vamos colocando no dia-a-dia se há-de transformar num oceano.
Nesta perspectiva, considero que temos um estatuto um pouco híbrido: por um lado, gostamos de ser funcionários públicos; pelo outro, gostamos de inovar e transformar. Mas também é verdade que esta coisa da autonomia que nos têm dado é um pau de dois gumes, funcionando, por vezes, como expediente para controlar os professores. É que a Administração gosta muito que se diga amém a todas as formas de organização que a própria estrutura hierárquica impõe - por vezes, de forma sub-reptícia -, embora também não lhe interesse estar em curto-circuito sistemático com os professores.
Por isso, temos de ser mais críticos e perceber que, inclusivamente, a Administração se serve de alguns opinion makers que nos vão fazendo a cabeça. E eu penso que aqui tem residido o problema das escolas superiores de educação (ESE) e das universidades, porque, em vez de irem ao terreno ver como é que as coisas estão a acontecer, se limitam a reproduzir modelos teóricos e esquecem que qualquer projecto de formação de professores não pode ser, como diria Miguel Santos Guerra, o 'currículo do nadador' - em que se atiram os alunos do último ano para a prática pedagógica -, mas tem que ser uma coisa construída gradualmente, articulando teoria e prática.
O nosso modelo continua a fornecer muitas teorias e, depois, os alunos chegam à prática e questionam-se sobre o que aprenderam, porque efectivamente não tem aplicação nos contextos profissionais concretos. Um exemplo concreto: eu faço estágio na cidade, apanho uma turma de alunos com um nível mais ou menos homogéneo, mas a minha primeira escola vai ser numa aldeia, onde vou encontrar sete ou oito alunos de níveis de escolaridade completamente diferentes.
Por outro lado, os colegas que são nossos parceiros na formação em termos de professores cooperantes da prática pedagógica, sentem-se um pouco desmotivados, porque o seu feedback não é tido em conta - todos os anos, eles chamam-nos a atenção para que o estágio pedagógico deve começar aquando das aulas do 1º Ciclo, mas nas universidades e nas ESE as aulas só começam em Outubro; entretanto, já os colegas começaram a planificar e a fazer todo o trabalho de sapa para lançamento do ano, e todo esse partir de pedra, que é fundamental, não é partilhado pelos estagiários.
Para além de tudo isto, esquecemo-nos que as escolas do 1º Ciclo continuam a ser o parente pobre da educação. Salvo raras e honrosas excepções, não têm um mínimo de condições para se fazer um trabalho digno com as crianças. E, logicamente, isto reflecte-se no aproveitamento das crianças e na inserção dos próprios estagiários.

P - Para terminar, gostaria de lhe colocar mais duas ou três questões para respostas curtas. A determinada altura, no seu livro, refere-se a 'professores' e 'professoras'. Curiosamente, nunca se fala de alunos e alunas. Porquê?

R - Tem toda a razão. Eu penso que os estereótipos que vinculamos em termos de aprendizagem são rigorosamente os mesmos, tanto a nível de professores e professoras como de alunas e alunos. E digo isto com alguma culpabilização de mim próprio.
Como hei-de dizer isto? Para mim é claro que o respeito pela diferença se mantém tanto a nível de aluna-aluno como de professora-professor. E se digo que não há duas pessoas iguais e comungo do chavão 'todos diferentes, todos iguais', não posso esquecer que não são apenas os professores que são diferentes; os alunos também são. Ou seja, a riqueza da Escola está na grande diversidade de alunos e alunas, professores e professoras.
E porque é que utilizo este tipo de linguagem? Porque me lembro de que, quando entrei para a escola, me tratavam como um número - levante-se o nº 1 - e nunca me chamavam pelo nome; porque me parece que o respeito pela identidade de cada um, aluno ou professor, nos possibilita repensar a grande riqueza que é a diversidade; porque me parece que a linguagem estereotipada que utilizamos quando dizemos 'homem' para designar homens e mulheres não faz sentido - homem é homem, mulher é mulher.

P - Sejamos mais preciosos: quando distinguimos 'professores' e 'professoras', não estamos a escamotear as identidades dos diversos professores e das diversas professoras? Por exemplo, onde incluímos os eventuais professores e professoras homossexuais ou transexuais?

R - Provavelmente, estamos a cair na linguagem politicamente correcta, mas é para mostrar que, de facto, a diversidade é uma riqueza e não um obstáculo à interacção e às relações interpessoais. Se calhar, isto aparece como uma forma de dar voz a quem nunca a teve, porque há minorias sistematicamente injustiçadas em relação à cultura dominante.
Portanto, eu admito que, eventualmente, isto seja um eufemismo e que, por vezes, se descambe para o politicamente correcto, mas é para chamar a atenção para a importância do respeito pela diferença. O Outro é tão importante como eu próprio; e se é mulher ou homem, aluna ou aluno, deve ser respeitado como tal.

P - Também citada no seu livro, Christiane Ferretti adverte que "há crianças desintegradas na escola e no bairro onde habitam" e denuncia que, "muitas vezes, os responsáveis pela educação escondem estas situações". Perante isto, não poderemos pensar que a escolarização é um prolongamento da exclusão?

R - Eu penso que a Escola não pode, efectivamente, excluir-se do processo de reprodução que tem levado a cabo, nomeadamente em termos sociais e culturais. Mas acredito que essa mesma Escola também pode ser um espaço de luta contra a discriminação e de abertura a quem é mais injustiçado, mais oprimido, mais excluído...
E como é que isso se faz? No meu entender, através de uma rede de parcerias no interior da própria comunidade educativa, proporcionando condições em termos de assistência social, de psicólogos, de médicos; em última análise, em termos do que se podem considerar as condições básicas para uma vida digna - a Escola deve assumir-se como um bem cultural comum que permite a cada pessoa afirmar a sua individualidade e, simultaneamente, exercer a sua cidadania.
Pelo contrário, se fizer o discurso da elite, a Escola continuará a reproduzir o modelo dominante, das culturas cultas e dos saberes ditos eruditos. E quando eu digo que, nós professores, também somos culpados, é porque me parece que temos alguma dificuldade em pôr em causa o nosso praticismo do dia-a-dia. Por um lado, porque não temos meios adequados; por outro lado, porque nos estão cometidas tantas tarefas que nos entregamos a uma certa militância do desenrasca, género 'tenho é que cumprir o programa, se não chego ao fim do ano e os meus garotos não sabem ler'.
No fundo, é um pouco a ideia de que o bom professor é aquele que cumpre o programa e apresenta resultados sem atender ao processo, continuando a fazer da Escola uma instituição elitista, quando ela devia ser um pólo democratizador da cultura.

P - Mesmo para terminar - educação intercultural: utopia ou realidade?

R - Eu acredito que é possível ir transformando pequenas utopias em pequenas realidades. Mas também não podemos ser líricos ao ponto de admitir que as coisas mudam de um momento para o outro; gradualmente, o homem pode tornar realizáveis essas pequenas utopias, seja na Rua ou no Bairro, na Escola ou na Fábrica. No fundo, quando Luther King dizia que teve um sonho, ele estava a acreditar que os de outra condição passariam a ser respeitados.
Neste contexto, penso que a educação intercultural - e podia chamar-lhe educação para os valores, educação para a justiça, etc. - é uma realidade que já está a ser interiorizada pelas pessoas, que começa a agitar as mentalidades.
E se, como escreveu Saint-Exupéry, 'o essencial é invisível aos olhos', eu sou capaz de acreditar que o 'todos diferentes, todos iguais' tem pernas para andar. Para isso, devemos ser cada vez mais conscientemente críticos relativamente à forma como nos organizamos. O que não é tarefa fácil.

António Baldaia

Jornal a Página da Educação nº 83 - Setembro de 1999, pg. 10


  
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N.º 83
Ano 8, Setembro 1999

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