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Falconetti e Dryer

Durante dois meses Joseph Delteil trabalhou como um forçado num "script": 116 páginas dactilografadas na primeira página o título: "Jehanne: la passion et la mort d'une sainte". Na realidade, o duque de Ayen, vice-presidente da SGF (Société General de Films) contratou-o para escrevê-lo. O argumento era mais de um poeta do que um historiador. Dreyer transformou-o com a ajuda de um verdadeiro especialista de Joana D'Arc, Pierre Champion. De facto, ele tinha escrito o seu próprio "script". Com este texto na mão, ele podia, em Maio de 1927 pensar em começar a rodagem. Mas um problema continuava por resolver, e era preciso tomar uma decisão. Quem iria encarnar Joana D'Arc? O duque de Ayen propôs Lilian Gish: Dreyer não via inconveniente. Mas ao lançar a ideia não previram a reacção da extrema-direita. E ela não se fez esperar. Porque enfim... Onde é que os patrões da SGF tinham a cabeça? Rodar um filme sobre a Santa da Pátria, contratar uma estrela estrangeira e ainda por cima dirigida por um dinamarquês, logo protestante? Um tema que só um Francês, "un Français de père en fils, un Français de toujours" era capaz de compreender. Ainda por cima, pensavam dar o papel a uma americana. Era uma vergonha!!! Era necessário impedir a qualquer preço um tal sacrilégio: "uma Joana D'Arc americano-dinamarquesa!!!" Era necessário que o senhor Poincaré (o PR francês) " um grande Francês" interviesse com toda a sua autoridade! O duque Ayen teve que recuar. Decidiu que o papel de Joana seria confiado a uma Francesa. Madeleine Renaud foi sondada, mas tinha acabado de ter um filho e estava com problemas sentimentais. A candidata seguinte, Marie Bell, ao saber que tinha que sacrificar a sua cabeleira, recusou. É então que alguém indica a Dreyer, Renée Faconetti: Dreyer nem de nome a conhecia. Ignorava que há já oito anos que era uma das grandes vedetas do Boulevard, queridíssima do público. Tinha passado alguns meses pela Comédie Française, mas tinha-se mostrado incapaz de suportar a disciplina da casa e tinha abandonado. Mas sempre com o sonho de se tornar uma outra Sarah Bernhardt. Tinha conseguido um protector riquíssimo que lhe montou "Lorenzaccio" no Teatro de Monte Carlo. Quando Dreyer a conheceu tinha 35 anos, dizia que tinha 30 e parecia ter 25. Dreyer foi vê-la actuar, foi ao seu camarim e pediu-lhe uma entrevista. No dia seguinte, Dreyer apresentou-se em sua casa, Avenida des Champs-Elysées, 32, 5º andar. Ela contou-lhe que já tinha entrado em dois filmes mas que preferia o teatro. O realizador falou-lhe do seu projecto. Falconetti interessou-se. Dreyer contou este encontro em diversos lugares:
"Ela era muito bonita, encantadora, a sua maquilhagem perfeita. Mas fiquei com a impressão que por detrás daquela fachada sem mácula escondia-se uma mulher que tinha sofrido imenso. Conversámos e disse-lhe: "Não ouso tomar uma decisão sem fazer uma experiência consigo - consigo ao natural!" E pedi-lhe para aparecer de manhã cedo sem maquilhagem. Apareceu e fizemos um teste. Fiquei com muito boa impressão e confirmou-se o meu pressentimento: tinha sofrido muito e parecia-me que o seu rosto tinha... sim, tinha ainda marcas... rugas invisíveis... pusemo-nos de acordo e estou muito satisfeito por a ter descoberto..."
Se, mais de meio século depois, "A Paixão de Joana D'Arc" continua a ser um filme de uma beleza inultrapassável, foi porque este encontro se deu, o acordo perfeito que se instalou entre o realizador e a sua intérprete. Falconetti, curiosamente, nunca suspeitou, que Dreyer a ia salvar do esquecimento graças apenas a um grande filme que ela interpretou e ao qual o seu nome está ligado para sempre. Mulher de paixões e de contradições, incapaz de gerir o seu imenso talento, nunca se tornou numa outra Sarah Bernhardt. Mas graças a este filme único ficou na memória de todos. E inversamente sem Falconetti, "A Paixão de Joana D'Arc" nunca poderia ser o que é: uma peça única na história do Cinema, ainda mais fulgurante pois explora um rosto desconhecido que desapareceu logo a seguir.

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico Soares dos Reis


  
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Edição:

N.º 81
Ano 8, Junho 1999

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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