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(...) hipotecas da cultura ocidental

(continua e conclui texto iniciado em anterior edição)

20. - Na nossa Contemporaneidade, apesar de todas as negatividades e à rebelia da soft fasciszação crescente das sociedades actuais, por via, até, do modo como são utilizadas e mobilizadas as 'novas tecnologias', têm vindo a surgir, no entanto, alguns dados positivos e fecundos que têm aflorado em termos culturais e linguísticos, com naturais repercussões psico-antropológicas. Estamos a referir-nos, por exemplo, a uma certa mudança (reivindicada surdamente num mundo caotizado...), de marca positiva e humanística, dos registos de funcionamento epistemológico-axiológicos. Para configurar, ainda que esboçadamente, tal mudança, pode atentar-se no badalado filme mais recente de Spielberg, 'O Resgate do Soldado Ryan'.
Do patriotismo e do nacionalismo oficiais, decantados e glorificados pela cartilha tradicionalmente predominante dos 'substantivos abstractos' a soldo da Ordem/desordem estabelecida e do Poder constituído, e ancorados numa estereotipada Memória oficial bem padronizada e própria de sociedades inexoravelmente hierárquicas (sejam elas monárquicas ou republicanas, sagradas ou laicas), a qual legitimava, sem pestanejar, a guerra em nome da vitória e do triunfo (necessários) do Poder soberano dos Estados (recorde-se a máxima tradicional: 'Vae victis!...')-dogmática essa, tem de reconhecer-se, que fez um caminho especialmente medonho e tenebroso a partir da 2a metade do séc . XIX e ao longo de quase todo o séc. XX-, tem-se vindo a fazer a transição, ainda que muito lentamente, para a Memória individual e individualizada, a recuperar cada vez mais e melhor. Este é um sinal simbólico-cultural-tem de confessar-se-eminentemente positivo e fecundo. Assim, a recuperação da Memória individualizada (como faz Spielberg, no referido filme) torna a Cultura capaz de, precisamente em nome de um realismo crítico de dimensão humana, pôr em causa, manifestamente e sem equívocos, a própria guerra bem como toda a sua tradicional doutrina apologética (que, na Tradição cristã ocidental, através de figuras de primeira grandeza como S. Tomás e S. Agostinho, chegou a invocar o patrocínio dos próprios textos sagrados do Novo Testamento, sobremaneira, nas suas modalidades defensivas).-Abaixo, pois, toda essa mitologia da 'morte patriótica' e bem assim a consequente glorificação da guerra, que dest'arte vê perdido (para sempre?...) o seu sentido.
Nessa mesma linha da exigência radical da Democracia e da Paz (tão celebrada já- recorde-se-por I. Kant, no seu famoso opúsculo 'A Paz Perpétua/Um Projecto Filosófico', de 1795/96), procedeu, em tradução recente, Norman Mailer, no seu romance 'Os Nus e os Mortos'. Procura o escritor, aí, operar, de vez, a transferência do conflito canonicamente configurado no exterior, i.e., nas clássicas relações com o inimigo, para as zonas do espaço interior, a saber, para o cerne das relações hierárquicas dentro do próprio exército em causa, as quais, essas sim, devem ser, na sua origem, bem atadas ao pelourinho e definitivamente denunciadas. Afinal, tout se tient: tudo se encontra ligado a tudo !. . .

21. - Que nos resta a esperar da condição humana, se acabarem por vingar apenas as chamadas revoluções tecnológicas, como tem acontecido até hoje, enquanto as revoluções sociais, essas-como nos ensina a História... dos vencedores!...-têm resultado sempre castradas e abalroadas?! Em tal contexto, os Humanos continuarão, inexoravelmente, a perder quase todos os seus combates com a própria Natureza circundante; -e esses funestos resultados do que eles designam por 'má sorte' continuarão a ter lugar tanto mais quanto eles não forem capazes de socializar, devida e adequadamente, as sucessivas inovações tecnológicas, que são postas ao seu alcance, cada vez mais em catadupa. Há, pois, que escolher e mudar de rumo e de eixo.

22. - 'Homo sum: humani nihil a me alienum puto',-apostrofava o velho Terêncio Varrão, e, agora, nós com ele. É óbvio que a Mítica e o universo do Imaginário sempre contaram decisivamente, ao longo da História, e hão-de contar, no futuro, em tudo quanto é humano. Isto, hoje, em termos de Pós-modernidade crítica, deve ser assumido como um axioma líquido e indiscutível. Imaginário e Mítica fazem parte, efectivamente, das chamadas 'funções vitais', em sentido cultural e civilizacional, que nenhum antropólogo hodierno, em qualquer quadrante ou sector científico, ousará recusar ou pôr de parte.
Na verdade, o que desnaturou e perverteu, originária e decisivamente, o Ocidente e a sua Cultura estrutural/estruturante, foi precisamente esse Dualismo metafísico, oriundo da Grécia e do Egipto Antigo, bem como dos impérios da Mesopotamia. Ora, ponderadas bem as coisas, se em lugar desse dualismo, houvéssemos tido a funcionar no Ocidente (ao longo da sua história bimilenar) a vera Dualidade metodológica-epistemológica, expressa nas correlativas autonomias recíprocas das ciências físico-naturais e das ciências sociais e/ou humanas, bem outra teria sido, sem dúvida, a história do Ocidente!... Como, igualmente, teria sido bem diferente a história da Modernidade ocidental, se a influência filosófico-cultural de Francis Bacon tivesse prevalecido sobre a de René Descartes. Em termos antropológicos-deixe-se aqui registado a este propósito-, é perfeitamente legítimo funcionar com os futuríveis no que chamamos de ciência histórica.
Irmão gémeo do dualismo metafísico é o dualismo político: reino de Deus, celeste, espiritual, dum lado; e do outro, reino humano, terrestre, material. É suposto um tal dualismo político basear-se precisamente naquele lóguion clássico dos Evangelhos: Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus!... Ora, deve observar-se que este axioma é já uma interpretação da Mensagem original do Jesus histórico, realizada pelas primitivas comunidades cristãs, onde e para quem os evangelhos respectivos foram escritos, e não propriamente um elemento primordial do Projecto sócio-antropológico global de Jesus. Deve, entretanto, reconhecer-se, positivamente, que esse axioma se encontra nas origens da secularização da vida e do laicismo político, que vieram a fazer o seu caminho na Cultura do Ocidente cristão (e não só...). Mais: tal axioma pode ainda considerar-se positivo e fecundo, na medida precisamente em que o Deus que aí é subentendido pode perfeitamente identificar-se, em última análise, com o Deus de cada Indivíduo (Mon Dieu,-referem-no assim, inalteravelmente, os franceses, como de resto as línguas vivas de outros povos...). O que desta forma se põe de manifesto, com tal conceito de Deus (que tem origens profundas no hebraísmo), é justamente o Indivíduo consciente e livre, em contraponto com o Leviathan do Poder soberano dos Estados, o qual só se pode assumir verdadeiramente como colectivo enquanto é e permanece impessoal.
Entretanto, convém não esquecer, por outro lado, que foi precisamente o Dualismo metafísico que acabou por desnaturar e perverter o 'dualismo político', o qual deixou assim de ser puramente funcional-como cumpria teoricamente-, para se converter em realidade substantiva e físico-metafísica: nesse processus, o 'dualismo político' veio assim a resultar configurado substantivamente em duas plataformas distintas e diferenciadas: a temporal/terrena e a eterna/celestial.
Aqui, é de toda a conveniência lembrar, a concluir, que a metafísica (essa mesma que nós, no Ocidente, herdámos dos Gregos, maxime, de Platão e Aristóteles) não passa, afinal, de uma eterna política-mal-resolvida. Esta banalidade de base, sabemo-la, muito claramente, pelo menos a partir de M. Foucault e G. Agamben.

23. - Que nos faz falta, hodiernamente, no centro mais nuclear do filão mais específico e autêntico da Cultura do Ocidente?! Desde logo, no universo do Imaginário, e já no universo dito cristão como também no genérico não-cristão, o que verdadeiramente nos faz falta é uma Fé/Relação individual-pessoal, que tenha a coragem de não se fazer prevalecer sobre as pessoas, à custa da imposição de feixes (o fascismo procede, etimologicamente, do fascium romano!...) de verdades dogmáticas, impessoais e supostamente objectivas, quaisquer que estas sejam. Infelizmente, que se passa ainda, hoje em dia? Tanto nos mundos religiosos e místico-espirituais, como nos mundos políticos e temporais, tudo se encontra ainda fortemente polarizado sobre a sempre postulada fé individual em dogmas, sejam eles quais forem, em lugar de se fazer germinar e brotar- como cumpriria-o imperativo categórico da Fé em Pessoas, singulares e concretas, quais centros de consciência de valor infinito que é preciso respeitar, antes e acima de tudo. Glosando a fórmula do poeta brasileiro, João Cabral de Melo Neto, onde está essa Fé-Confiança de Pessoas em Pessoas, semelhante à Confiança de um Menino em outro Menino?!
Ora, enquanto a Civilização/cultura se mantiver espartilhada e anquilosada, enquanto se mantiverem os estafados modelos político-societários, ancorados na Cultura do Poder-dominação d'abord, enquanto, em suma, o estado das coisas se mantiver assim, coisificando, básica e supremamente, as pessoas, não há mesmo voltas a dar-lhe: os fascismos, quais hidras de mil cabeças, encontrar-se-ão sempre a renascer das cinzas, como a Fénix!... Tudo está, afinal, ligado a tudo.

* O Indivíduo-pessoa verdadeiramente moderno, i.e., consciente de si, dos outros e da Sociedade/Comunidade envolvente, nunca se sacrificará senão à sua própria eternidade, ou seja, à Espécie a que pertence, considerada enquanto espiritual, não animal. É, pois, à imortalidade do sentido que ele se sacrifica, a qual se experimenta na recusa das contradições e na condenação do absurdo. "O desaparecimento, o vazio, em vez de constituírem o fim do fim, são perecíveis e desaparecem por sua vez". (Friedrich Hegel, in 'Science de la logique', Aubier, 1947, vol. I, p. 131).

* Como o Deus dos antigos, a Sociedade e a Linguagem não nascem; renascem, outrossim, por si mesmas, mediante uma 'criação continuada', cuja energia não é legítimo estancar.

* No horizonte de Leibniz e Kant, deverás tomar consciência do seguinte: "Se queres agir por dever, deves admitir a possibilidade, nem que seja no infinito, de que a virtude se inscreve na realidade" (André Glucksmann, in 'O Bem e o Mal/Cartas imorais de Alemanha e de França', Edit. Inquérito, Mem Martins, 1998, p.192).

* Se o passado foi mal pensado, quem tem a coragem e a força ciclópica de pensar bem o presente, que não pode ser pensado sem o futuro, e o futuro continua absolutamente por pensar?!... Para tanto, é preciso saber que, substancialmente e no limite, entender é entender-se e comunicar é comungar.

Manuel Reis.
Escola João Meira / Guimarães


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 78
Ano 8, Março 1999

Autoria:

Manuel Reis
Professor e Presidente do Centro de Estudos do Humanismo Crítico. Guimarães
Manuel Reis
Professor e Presidente do Centro de Estudos do Humanismo Crítico. Guimarães

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