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Memórias Entre o Passado e o Futuro

Vi-o, anteontem, na Praça da Batalha. Do miúdo buliçoso de dez anos restava ainda o olhar claro e o sorriso reguila do adolescente que me chamou pelo nome. Tinha desistido de estudar. Trabalhava numa tipografia e jogava futebol no clube do bairro. Mais alto do que eu, lembro-me dele pequenito, aluno de uma das turmas do 4º ano, na Escola Primária da Sé com a qual trabalhei no decurso de um projecto de intercâmbio escolar realizado entre essa turma e a turma de uma escola francesa dos arredores de Paris. Falamos disso e partilhamos memórias que afinal não tínhamos perdido. Tinha sido ele que em Chatenay-Malabry depois de comer um iogurte, uma salada e um apetitoso pastelão de fiambre e queijo, o almoço daquele dia, me perguntara lá do outro lado da mesa:
- Então Rui quando é começamos a comer ?
Foi ao vê-lo partir naquele dia, expedito e alegre, que revi os seus passos numa manhã ensolarada de Fevereiro, seis anos atrás. Íamos realizar a segunda actividade do projecto intitulado "À descoberta do Porto", através do qual pretendíamos que a miudagem explorasse e investigasse alguns dos locais mais significativos da cidade, cujo objectivo consistia em produzir informação para enviar aos tais correspondentes franceses, de forma a que este dar a conhecer-se acabasse por ser um pretexto também para se conhecerem melhor, a si e ao espaço histórico, cultural e social que lhes moldava o olhar, os gestos e os sonhos.
Tínhamos planeado, cuidadosa e pormenorizadamente, a visita de estudo. O percurso fora pensado e repensado, as fichas de observação tinham sido construídas tendo em conta os mais pequenos detalhes dos locais a explorar. Nada fora deixado ao acaso, por isso, quando saímos da sala com aquelas vinte e tal crianças, acreditávamos piamente que o passeio dificilmente deixaria de ser um êxito.
Saímos da escola, passámos pelo Cinema S. João (hoje já transformado em Teatro Nacional) e descemos 31 de Janeiro, ouvindo-os cantar que não havia estrelas no céu. Enfim, perante os sorrisos, a indiferença e os olhares de soslaio dos transeuntes, chegámos à Estação de S.Bento, o primeiro espaço a pesquisar. A ficha de observação que tínhamos distribuído solicitava que os miúdos observassem um dos painéis de azulejos onde está representada a cena do honradíssimo Egas Moniz que, de baraço ao pescoço, entregava a sua vida e a dos seus ao Rei de Leão por, involuntariamente, o ter enganado durante o cerco do castelo de Guimarães. Já todos sabiam de cor e salteado o que se tinha passado. Agora deveriam descobrir pequenos pormenores no painel, desenhar alguns dos personagens, inventariar o número de armas, escudos e capacetes presentes ou descobrir quantas mulheres e homens podiam ser vistos naquela magnífica obra da azulejaria portuguesa. E tudo correria como o previsto, não fosse um desconhecido que, vá lá saber--se porquê, pôs um miúdo a pesar-se numa velha balança que nessa data ainda sobrevivia num canto da estação. A situação seria facilmente resolvida se a pesagem fosse, como qualquer outra pesagem, um exercício anónimo e anódino. Mas não, o peso naquela balança vinha inscrito num cartão que, para além dos quilos de cada um, oferecia igualmente a leitura de uma sina individual. Adeus Egas Moniz que eu volto já. Num ápice, a troco de não sei quantos escudos, vinte e tal profecias começaram a cair nas mãos sedentas daqueles putos que, depressa, trocaram o estudo do nosso respeitável passado pela descoberta ávida do seu próprio futuro.
Os vou ser rico contrastavam com os vou ser feliz. Entre ter muitos filhos e morrer idoso havia confusão que chegasse e bastasse para que um de nós não se contivesse e perguntasse em voz alta, sei lá se só para si, se também para obter o assentimento dos outros:
- Vale a pena perder tempo com esta canalha ?
Vale, vale a pena, reafirmo-o agora, vendo o Hugo a esfumar-se por entre a multidão. Com dez anos quem é que está interessado em compreender o passado, quando julga ter o futuro ali mesmo à mão ?

Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação / Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 77
Ano 8, Fevereiro 1999

Autoria:

Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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