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Ilusões da globalidade
(Continuação do artigo "algumas hipotecas graves da cultura ocidental" cuja publicação se iniciou na edição de Novembro)

6. - Ora, hoje em dia, já sabemos suficientemente-antes, todavia, já havia gente sensata e crítica que o sabia!-que o projecto do capitalismo global, à escala planetária como hoje se pretende, não passou e não passa de uma gigantesca montanha de ilusões, a qual, de resto, já se encontra a sofrer os abalos sísmicos que merece !... (Vide, em especial, o livro adulto e crítico do universitário de Oxford, John Gray: 'False Dawn: The Delusions of Global Capitalism', Granta Books, London, 1998).
Para quem ainda não sabia e facilmente se deixou enredar na floresta de enganos, que já nem ao vulgo se desculpa (!...), sabemos bem e comprovamos, hoje, à luz meridiana, a tese de que liberalismo político e liberalismo económico são estruturalmente contraditórios (cf. idems ibi, pp. 136 e ss.). Aliás, isto mesmo já o sabia e afirmava claramente o nosso mestre lusíada Agostinho da Silva, na sua 'Reflexão', assinada em Belo Horizonte, Janeiro de 1956 (cf. a 3a ed. desta obra, da Guimarães Editores, Lisboa, 1996, p.136).
Definir, de facto, os tempos hodiernos pela suposta lógica do mercado global, articulada sob as bênçãos da gramática da democracia, mais exacto, de uma suposta ciber-democracia, não passa, assim, de uma impostura grosseira e monumental. Eis por que, analogamente, vemos que continua a ser sofístico e enganador o tipo de discurso expendido, por ex., por Mário Soares, nos seguintes termos (in 'Dois anos depois', Notícias Editorial, Lisboa, 1998, p. 105): "Acrescente-se que não é legítimo estabelecer uma conexão necessária entre economia de mercado e democracia. Se é certo que não há exemplo de democracias plenas sem economia de mercado-foi a lição que o Mundo tirou do colapso generalizado dos países comunistas-a inversa não é verdadeira, visto que há casos de ditaduras que conseguem obter apreciáveis índices de crescimento económico, pelo menos a curto prazo". Raciocinar assim, é permanecer eternamente acocorado à superfície das coisas!... Foi este tipo de pensamento e discurso meio crítico e meio ingénuo que se tornou responsável pelo não-aprofundamento crítico do malogrado projecto socialista do século e pela submissão (negativa ou positiva...) uniformista e acéfala ao 'socialismo de Estado', antecipadamente condenado ao fracasso. Por que razões (inconfessadas?!...) não se deu vento à vela, por exemplo, da democracia económica e social, da democracia participativa e directa, do próprio 'comunismo dos conselhos', que os teóricos holandeses deste século souberam perfilar?!...
Efectivamente, só os partidários da distinção e separação estruturais, na realidade humana, entre o material e o espiritual, só os que, por conseguinte, se afirmam contra o holismo antropológico e a necessária e vital união de corpo e espírito, só esses é que poderão subscrever aquela cartilha mecanicista e louca: o 'santo graal' do 'mercado livre', qual varinha de condão que vai trazer consigo todas as positividades da vida!...

7. - Parafraseando o célebre Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels, poder-se-ia dizer: um espectro tenebroso ameaça a Humanidade de hoje; e ele é precisamente essa desenfreada mobilidade planetária dos capitais. Na esfera do capitalismo neoliberalista global de hoje, que tanto se reclama dos 'free markets', (ilusoriamente...), não há e não pode mesmo haver, por definição, democracia possível. John Gray, no livro acima citado, explanou bem esta temática no cap. 4 subordinado ao título: 'How global free markets favour the worst kinds of capitalism: a new Gresham's Law?' (pp. 78 e ss.). Que nos revelava o Teorema ou Lei de Gresham de há mais de três séculos? Muito simplesmente, e em resumo, que o mau dinheiro afasta o dinheiro bom, mas o bom dinheiro não pode afastar o mau dinheiro!... Na sua teoria económica, Keynes já reconhecia e salientava que a mobilidade internacional do capital financeiro acabava por curto-circuitar as políticas de pleno emprego dos governos nacionais. Hoje em dia, é a mobilidade global planetária do capital que atira para as margens dos mega-aparelhos da Economia global a simples gestão económica nacional e torna, assim, 'impossível', por definição, a acção própria interventiva dos Governos nacionais, colocando os próprios Estados soberanos a braços com uma desregulação competitiva que lhes reduz e anula (de morte...) a sua própria condição específica de exercício do Poder. É óbvio que, neste horizonte pós-Guerra Fria, as economias nacionais que mais sofrem e resultam prejudicadas são precisamente as chamadas Economias sociais de mercado. O que, portanto, nos ensina a Lei de Gresham e que o 'mau capitalismo' afasta sempre e inevitavelmente o 'bom capitalismo' (cf. idems ibi, pp.79.- )
De facto, "as condições que conferem uma vantagem estratégica ao mercado livre sobre as economias sociais de mercado do período pós-guerra são um comércio livre global desregulado em conjunção com uma mobilidade global do capital irrestrita. Num mercado global de comércio livre, a vantagem está (mantendo-se iguais outras coisas) do lado das firmas cujos custos são baixos. O que é verdade, quer se trate dos custos do trabalho, dos custos da regulação ou dos custos dos impostos" (idem, ibi, p.80). A mobilidade global do capital condu-lo precisamente para os países e/ou empresas onde os custos sociais são mais baixos e os lucros mais altos... Assim, por conseguinte, não é dentro dos mecanismos correntes da eficiência económica que se deve procurar o argumento central/nuclear contra a liberdade global irrestrita no comércio e nos movimentos de capitais. Esse argumento tem de indagar-se na base mais sólida e profunda do Anthropos, ou seja: nesse elementar e simples postulado de que a economia tem de estar ao serviço das necessidades da sociedade, e não ao serviço dos imperativos do mercado (cf. idem ibi, p.82).
Assim, por conseguinte, é no cincho da moral e da ética que se têm de procurar as críticas e os argumentos decisivos para reestruturar e refundar a Economia política. Como faz Henri Bourguinat, no seu livro recente 'L'économie morale' (Arléa, 1998); como fizémos nós na nossa Lectio Sapientiae de 4 horas, na Abertura solene das aulas no Seminário Maior de Coimbra, em Novembro de 1962, num trabalho de 120pp. subordinado ao título: 'A Economia do Dom'. Quem não vê, hoje, que chegou mesmo a hora de moralizar a Economia?! É que o actual processus de globalização da economia financeira (que pouco ou nada tem a ver com a 'economia real') está a cavar uma verdadeira ruptura na natureza tradicional dos fenómenos económicos: já não se trata de evolução progressiva, mas de mutação!... A finança desregulamentada e ubiquista trouxe consigo a incontrolada 'tirania dos mercados'. Subordinada à vigilância e à sanção dos mercados, a acção pública das políticas económicas dos Estados-nações viu-se diluída e anulada. Ora, entre a suposta aceitação do mercado como solução óbvia a pretexto da eficácia, por um lado, e por outro, a recusa do mercado sob o pretexto da iniquidade, impõe-se absolutamente a descoberta de uma terceira via. Esta não poderá estruturar-se sem ter em conta a dimensão moral de toda a Economia política. Designadamente: critérios morais polarizados nas preocupações do igualitarismo social; uma preferência dada aos espaços locais e familiares; salvaguarda de ritmos de vida diferenciados; protecção do meio ambiente; e, contra o produtivismo míope e estúpido , uma forte componente de articulação entre as gerações . É preciso tornar a questionar aquela distinção essencial de Hume entre o que é ('what is') e o que deveria ser ('what ought to be'). O conhecimento científico não pode esquecer as regras morais. Os cientistas das ciências sociais e/ou humanas trabalham necessariamente com matéria prima de carácter moral. Eles não podem ignorar esta norma.
Na verdade, e com todas as suas consequências, os mercados do capital global "tornam a democracia social inviável. Por democracia social, eu entendo-escreve John Gray (op. cit., p.88)-a combinação do déficit financiado do pleno emprego, um alargado Estado de bem-estar e políticas de impostos igualitárias, o que existiu na Grã-Bretanha até aos últimos anos de 1970 e que sobreviveu na Suécia até aos primeiros anos de 1990".

8. - Como é sabido, os U.S.A. são, hoje, o bastião sem rival do Neoliberalismo e do famigerado e ilusório 'free market' globalista. Ora, o próprio 'laissez-faire' norte-americano (cf. idem. ibi, pp. 100 e ss.) do chamado 'free market' global, ou seja, esse pretenso iluminismo americano do mercado mundial, não passa, realmente, de um iluminismo serôdio e falso, o qual não só abastarda como contraria frontalmente o conhecido e tão mal-tratado Projecto Iluminista ocidental do oitocentos. Haverá sociedade nacional mais marcada e corroída por contradições estruturais do que a norte-americana?!...
Ao lado do peso crescente dos neo-conservadores e da sua predisposição para a dominação d'abord e a guerra imperialista, a Sociedade norte-americana experimenta hoje uma nova insegurança na Economia, que tem a ver com o desemprego e o emprego precário em escalas nunca vistas, o aumento apavorante das desigualdades para a grande maioria dos americanos, e as próprias prisões e penitenciárias que funcionam já como a solução-mestra normal para toda a série de processos de marginalização e de exclusão social. A tal ponto que a América está emergindo para a condição de país-nação pós-ocidental, onde o 'free market' se tornou irreformável (vd. idem* ibi, pp. 121...; pp. 124...; pp. 128...; pp. l 30...).
Nos EUA, actualmente, as chamadas 'classes perigosas' são engavetadas na prisão. O Estado abandonou as últimas preocupações sociais para se volver num 'Estado carcereiro' (cf. 'Le Monde Diplomatique', Julho de 1998, pp. 20-21). Com a norte-americana cultura McWorld, destinada apenas a uma suposta sociedade universal de consumidores, os EUA estão a apostar satanicamente num projecto contra a democracia e a eliminar de cena, definitivamente, os cidadãos e o sufrágio universal ('Le Monde Diplomatique', Agosto de 1998, pp. 14-15; pp. 16-17; pp. 18-19).
Comprovadamente, pois, o 'laissez-faire' do séc. XVII, vasado na sua edição do último quartel do séc. XX, está de facto a corromper-se e a ruir às mãos das grandes corporações económico-financeiras e das multi-transnacionais. Aliás, nem são, efectivamente, os mercados que estão a globalizar a Economia, mas, outrossim, as novas tecnologias draconeanamente impostas e os interesses financeiros das firmas multinacionais, as quais se fundem cada vez mais, resultando, assim, em número cada vez menor.
Os mercados livres, na verdade, não se auto-regulam!... Eles nunca, afinal, se auto-regularam, historicamente falando. Essa é, pois, uma ideia arcaica e falsa!... Nem, por outro lado, é reformável o 'free market' americano nas condições actuais (cf. John Gray, op. cit., pp. 130-132), a menos que ele próprio faça o seu haraquiri estrutural. Há, por consequência, que mudar de rumo, se não é o colapso de toda uma Civilização aquilo a que iremos assistir!...

9. - Precisamos, pois, imperiosa e urgentemente, de rever, numa crítica sistemática porfiada, os próprios mitos fundadores da Modernidade. Nomeadamente: o conceito de natural em antítese com o conceito de cultural/civilizacional (aí incluído o próprio 'direito natural', o qual, largamente inflacionado em teoria, está ainda bem longe de ser respeitado e cumprido, no panorama dos países e nações da terra); as clássicas teorias do contrato social, que tanta confusão e mistagogia têm acarretado consigo; as conhecidas teorias rousseaunianas do 'bom selvagem'; a teoria moderna do Poder soberano (dos Estados) face à chamada vida nua, que ele engendra fatalmente; aquela doutrina da Democracia puramente representativa, que acabou por deixar tolhida e desarmada a Liberdade responsável do Indivíduo-Pessoa (a última fonte da sua dignidade) e converteu as sociedades modernas (apesar de todo o seu aparato de progresso material e de desenvolvimento tecnológico) em bandos ou rebanhos, mais ou menos domesticados.
Que é preciso rever criticamente todos esses mitos constitui um postulado axiomático que assenta, hoje, em três exigências ético-morais incontornáveis: A) A Modernidade ocidental não envolveu só dimensões e aspectos positivos; ela carreou consigo muitas negatividades e perversidades. B) Por outro lado, a famigerada Pós-modernidade, em que vivemos hoje, não pode ser por nós considerada ingenuamente, como se ela só encerrasse aspectos e dimensões negativos em confronto com as Luzes da Modernidade: Há, efectivamente, na Pós-modernidade muita coisa positiva, correctora dos erros e desvios da Modernidade, ao lado, também, obviamente, de muita coisa avulsa, errática e negativa. Como em tudo, há que proceder ao joeiramento, há que saber aplicar a 'discretio spirituum'. C) Do ponto de vista (mais radical) da Evolução biológica, num percurso espácio-temporal que prossegue até chegarmos aos estádios da Psicosfera e, depois, da Antroposfera, aquilo a que chamamos Natureza, natural, selecção natural (à Darwin, por exemplo), ostenta, iniludivelmente, aspectos e dimensões positivos e negativos.
Daí que, desde logo, não faça sentido, por exemplo, reivindicar e defender, em Psico-pedagogia, o chamado homem natural de Rousseau, o 'bom selvagem', enquanto modelo para edificar todo um processo de educação, de aculturação e de civilização. Deve saber-se, aliás, que uma tal orientação paga o seu tributo ao errado e perverso mecanicismo cartesiano em ciências sociais e/ou humanas, como são, evidentemente, as psico-pedagógicas. De resto, esse 'homem natural' verdadeiramente não existe, nem nunca existiu historicamente. É, na sua origem, uma ficção. E seria hoje uma perversão da linguagem tomá-la como 'realidade virtual'!... Daí, igualmente, que não passe de uma boa ou má ficção (depende dos fins e da sua utilização), a própria teoria (ou doutrina) do contrato social, em Rousseau como em Hobbes, e nos demais filósofos sociais e políticos, constituídos em pais fundadores da Modernidade.

10.- O próprio binómio antitético Natural//Sobrenatural (Natureza//Sobrenatureza) tem, ele mesmo, de ser considerado criticamente, de modo nenhum, por conseguinte, em esquemas dogmáticos, segundo a semântica que a Tradição cultural no Ocidente lhe conferiu, ao longo destes dois mil anos de Cristianismo abastardado pela Igreja institucionalizada. De igual modo, carece de uma revisão crítica profunda o binómio Selvagem (ou Primitivo)//Civilizado; bem como os binómios Ciência//Cultura e Ciência//Sociedade.
Deve advertir-se que a divinização acelerada e precoce do Homem Jesus, concebida e elaborada em termos metafísicos (segundo a gramática filosófica da Hélade), contribuiu poderosamente, nas mãos dos poderes estabelecidos que integraram em seu benefício a Igreja dita cristã, para o avolumar gigantesco de todas as confusões, no ocidental Império metafísico do Mesmo com a sua sempiterna integração hierárquica da pluralidade e da diversidade no mundo unificado e uniformizado do Mesmo, por obra e graça da sempre predominante Cultura do Poder-dominação d'abord.

(continua)

Manuel Reis
Escola João Meira / Guimarães


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 75
Ano 7, Dezembro 1998

Autoria:

Manuel Reis
Professor e Presidente do Centro de Estudos do Humanismo Crítico. Guimarães
Manuel Reis
Professor e Presidente do Centro de Estudos do Humanismo Crítico. Guimarães

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