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Em tempo de vindimas e da abertura de um ano lectivo

Muita parra? Certamente.
E quanta uva?

Em Setembro volta-se ao aconchego do lar. O trabalho começa a preocupar-nos, arquivam-se as fotografias da praia e o futebol invade o televisor. Os discursos optimistas do Ministro da Educação e as constatações veiculadas pelos media acerca do caos educativo em que as nossas escolas mergulharam são tão previsíveis como as próprias vindimas. Este ano, nem mesmo as desventuras do Sr. Clinton, que pelos vistos só tiveram efeito no Afeganistão, conseguiram arrefecer o espírito de cruzada daqueles que, face a um mundo onde se fomentam e enfrentam desafios problemáticos de grandeza e profundidade diversas, pretendem ser possível construir uma Escola sem problemas, sem incertezas, sem equívocos, sem insucessos e sem conflitos.

Em 1998, Setembro continuou a ser, por estas e outras razões, um mês de muita parra e, por isso, foi possível saber que para o ministro Marçal Grilo o ëprograma do governo para a educação está basicamente cumpridoí (Público, 14. 09. 98), já que, entre outras razões, para o actual responsável do Ministério da Educação ëmais de 85 por cento das escolas [do ensino não superior] adoptaram o regime [de autonomia e gestão]í (Jornal de Notícias, 13.09.98); ëOs professores portugueses estarão talvez entre os dos cinco primeiros países europeus em termos da sua remuneraçãoí (Jornal de Notícias, 13.09.98); ëAdoptamos medidas ao nível da formação dos professores, sobretudo do primeiro ciclo, quer no domínio da língua materna, quer no da matemáticaí (Jornal de Notícias, 13.09.98); ë(...) vamos conseguir dispor [em 2006] de um parque escolar ao nível das boas escolas que temos hoje e, seguramente, todas as escolas ligadas entre si à Internet. Vamos conhecer um salto qualitativo na qualidade dos nossos professores, visto que nessa altura já saíram os primeiros professores abrangidos pelo novo sistema de formação inicialí (Jornal de Notícias, 13.09.98); ë(...) o tema central será o pré-escolarí (Público, 14.09.98).

As entrevistas com o ministro da Educação que tanto o ëJornal de Notíciasí como o ëPúblicoí deram à estampa, e das quais se seleccionaram os excertos acima transcritos, permitirão certamente múltiplas e diversas leituras, desde as que valorizarão e justificarão a acção do actual governo até às leituras mais cépticas de outros que entendem, e em nossa opinião injustamente, que tal acção pouco diferiu das iniciativas empreendidas no tempo das maiorias absolutas dos governos PSD.

Independentemente de quaisquer outro tipo de considerações acerca dos méritos ou deméritos do governo do Partido Socialista, no domínio da Educação, parece-nos importante afirmar que, apesar das reservas que possamos colocar à política educativa do actual governo, há que reconhecer, pelo menos, que esta teve o mérito de demonstrar como os governos de Cavaco Silva, numa conjuntura política altamente favorável, foram sempre incapazes de assumir um projecto coerente neste âmbito. Um projecto cuja credibilidade, inicialmente sustentada pelo voluntarismo de alguns políticos e técnicos competentes, se foi perdendo à medida que a negligência, a incompetência e a prepotência iam assentando arraiais no Ministério da Educação. A recusa em assumir a expansão e a consolidação do ensino pré-escolar como uma prioridade estratégica do nosso sistema educativo, a ausência de iniciativas tendentes a concretizar medidas já previstas no Estatuto da Carreira Docente, a incapacidade de intervir no domínio do desenvolvimento do subsistema relacionado quer com a formação inicial, quer com a formação contínua de professores, a indefinição em que se caiu ao nível da construção de um projecto que permitisse reconfigurar o Ensino Secundário e o impasse que bloqueou a adopção de quaisquer medidas no domínio da autonomia e da gestão das escolas do ensino não superior são alguns dos exemplos mais flagrantes do fracasso político dos governos PSD, no âmbito da Educação.

Com a entrada em funções da equipa liderada por Marçal Grilo, o Ministério da Educação passou a ter uma nova agenda política que de acordo com o actual ministro foi cabalmente cumprida. Terá sido ? Mais de oitenta e cinco por cento das escolas aderiram ao novo regime de autonomia ? Os professores portugueses estarão tão bem colocados no ërankingí salarial dos países europeus ? Que medidas foram essas que o Ministério adoptou relativamente aos professores do 1º Ciclo do Ensino Básico nos domínios da Matemática e da Língua Materna ? E porque é que tais medidas não foram adoptadas igualmente para os professores dos restantes níveis do ensino não superior ? Como é que o novo sistema de formação inicial dos professores irá permitir um salto qualitativo ao nível da qualidade dos docentes que leccionam nas nossas escolas ? E, já agora, a talhe de foice, porque é que o ministro nunca se referiu às virtudes e aos resultados do actual subsistema de formação contínua ? Talvez pelo mesmo conjunto de razões que até hoje têm inibido a discussão pública e a divulgação de dados acerca das intervenções que têm ocorrido sob a égide dos Territórios Educativos de Intervenção Prioritária e dos projectos relacionados com os denominados Currículos Alternativos. O que significa afirmar que a educação pré-escolar é um tema fundamental da agenda do Ministério da Educação ?

Embora seja necessário discutir até que ponto os números apresentados pelo Ministério correspondem à realidade, cremos que não vale a pena equacionar, neste momento, outros significados para esses números ou interrogar a legitimidade e adequabilidade dos indicadores que permitiram configurá-los. A questão é outra e prende-se com a necessidade de se discutir, antes de tudo o mais, o que é que o ministro quis de facto afirmar quando considerou que o programa do seu governo para a educação foi cumprido. Será que, subentendida a um discurso aparentemente tão explícito, se encontra apenas a mensagem crua e fria de uma atitude claramente neo-liberal ? Se assim for, o que Marçal Grilo nos disse deverá ser objecto de uma outra leitura e a mensagem que ele quis efectivamente divulgar poderá ser traduzida do seguinte modo: Nós, o Ministério da Educação, criámos as condições necessárias para que as escolas assumam por inteiro as suas responsabilidades educativas. A autonomia que lhes outorgamos, a valorização salarial dos professores portugueses, as transformações do novo sistema de formação inicial, enfim, o esforço deste Ministério para conferir uma outra dignidade à função docente possibilitarão, no seu conjunto, libertar o Ministério das suas responsabilidades quer enquanto entidade com responsabilidades pela tutela do sistema educativo português, quer como parceiro activo e comprometido no processo de desenvolvimento e democratização deste mesmo sistema educativo. Isto é, este Ministério assume-se, exclusivamente, como instância reguladora e quem tiver unhas que toque guitarra. Salve-se pois quem puder ou souber.

O Outono vem aí, seguem-se-lhe o Inverno, a Primavera e novamente o Verão. Fausto di-lo, cantando, que atrás dos tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir. Tempos esses em que, provavelmente, estaremos aqui, nós e o Doutor Marçal Grilo, a avaliar como os seus números omitem tantos equívocos e ambiguidades. Estaremos aqui observando até que ponto a expansão do ensino pré-escolar soube responder às expectativas educativas que justificam essa mesma expansão ou cedeu às pressões daqueles que, objectivamente, desvalorizam a dimensão pedagógica do trabalho a realizar nos jardins-de-infância; pressões estas que, a coberto da função social de apoio às famílias que o pré-escolar pode e deve assumir, contribuem para a implementação de um modelo de educação pré-escolar que sacrifica a qualidade educativa à velocidade da sua expansão e, por arrastamento, aos interesses corporativos das instituições privadas que beneficiam da aliança tácita estabelecida entre si e o Ministério da Educação. Estaremos aqui a aprender como os projectos de formação inicial de professores necessitavam de um discurso que não se contentasse com a afirmação da autonomia das escolas do ensino superior como uma justificação para conter a intervenção legítima do Ministério neste âmbito. Estaremos aqui e poderemos avaliar se a questão da Matemática e da Língua Materna é uma problemática que deriva de uma intervenção docente incapaz no 1º Ciclo do Ensino Básico ou, se é antes, uma questão bem mais complexa e abrangente. Estaremos aqui a fazer a história do actual modelo de formação contínua e dos efeitos e resultados que efectivamente este modelo produziu. Estaremos aqui, finalmente, para constatar que, se os programas governamentais para a educação se podem e devem ser cumpridos, são, apesar disso, programas sempre inacabados.

Ariana Cosme
Rui Trindade

NOTA

A oposição, pela voz de Marcelo Rebelo de Sousa, também teve oportunidade de contribuir para a proliferação da parra neste tempo de vindimas. O referido personagem, no decurso de uma visita a uma escola privada na área de Lisboa, concluiu perante as câmaras da televisão que, de acordo com a sua experiência docente, o principal handicap dos alunos universitários portugueses, em comparação com os alunos alemães, italianos e espanhóis do mesmo grau de ensino, estaria nas superiores competências dos segundos na utilização da sua língua materna. Quem o pode desmentir ? Provavelmente alguém que esteja tão familiarizado e domine, com a mesma mestria do Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, as línguas alemã, italiana e castelhana.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 73
Ano 7, Outubro 1998

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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