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A universidade: espécie rara, sempre em risco

introdução

Neste mesmo lugar ó ou noutro que o editor de 'A Página da Educação' julgar mais apropriado ó seguir-se-ão, nos próximos seis números deste jornal, seis curtos textos de índole ensaística, subordinados ao título 'A universidade: espécie rara, sempre em risco'. Se tudo correr bem (leia-se: se as musas anónimas e algo taciturnas do ensaio estiverem de feição), os seis artigos, em alinhamento serial, deverão bastar para desenvolver o essencial do que o título promete.

Passarei em revista nesta introdução os temas principais a desenvolver, para que os leitores deste jornal possam julgar antecipadamente se valerá a pena reservarem algum do seu tempo a ler-nos.

Começaremos pela questão prévia, pré-judicativa, que consiste em determinar, no plano que lhe é próprio, a ideia de Universidade. Esse plano é, em meu entender, o dos conceitos de segunda geração ou de segunda extracção, para falar como Dilthey, um filósofo da ciência raramente citado (e, porventura, pouco lido e meditado) por estas paragens ibéricas.

A maior parte dos conceitos das ciências antropológicas (se preferirem, as ciências ditas humanas e sociais) são conceitos de segunda ó ou terceira ou quarta ou quinta ó geração. O número de ordem não é o mais importante, desde que se admita o princípio dilthiano que tais conceitos se determinam num nível de
concreção hierárquicamente superior ao de conceitos mais básicos. Como no fabrico do vinho a partir das uvas e do mosto, o conceito de universidade pressupõe duas outras ideias: (A) a de ciência, ou, melhor ainda, a de colégio (internacional) dos cientistas e (B) a de escola. Sem estes dois conceitos antecedentes, hipobásicos, não se pode entender aquilo de que aqui falamos quando falamos de universidade. A universidade é o resultado do cruzamento laboratorial e altamente falível entre estes dois conceitos primordiais. Sendo a forma de actualização societária destes conceitos a de duas instituições sociais distintas, a ideia de universidade actualiza-se também como instituição social.

Chegados a este ponto, convém chamar a atenção para o seu carácter sui generis de híbrido ou mestiço institucional. De facto, o termo que lhe melhor lhe convém, em linguagem mais rudemente metafórica, é o de 'mula institucional'. Como todos os genuínos mulares, as universidades são criaturas com progenitores mas sem progenitura. Por aqui se vislumbra já uma razão de ser do subtítulo deste ensaio: a universidade não tem capacidade de reprodução social autónoma.

O ponto é de importância considerável, porque contraria várias crenças arreigadas. Uma delas é a crença de que as universidades são instituições nacionais ó o que elas são só em parte. Outra é de que as universidades se distinguem, entre outras coisas, pela capacidade de produzir e reproduzir os seus professores, o que só por si lhes asseguraria uma autonomia considerável relativamente a outras instituições escolares. Mas tal crença, sem ser totalmente desprovida de base factual, não revoga a asserção segundo a qual a universidade é uma espécie institucional estéril ó no sentido preciso de ser uma instituição sem capacidade de reproduzir as condições iniciais da sua própria existência, especialmente aquela que designámos por colégio internacional de cientistas.

Mas a crença mais arreigada é talvez a de que a universidade é o exemplo perfeito de uma instituição vetusta, capaz de sobreviver nos mais diversos ambientes sociais. É voz corrente que as universidades são instituições medievais, que sobreviveram, adaptando-se, a transformações sociais, revoluções (e contra-revoluções) políticas que arrasaram muitas outras instituições bem mais robustas e poderosas na aparência. Mas essa é também uma crença que não partilhamos e que tencionamos refutar. A ideia de universidade é recente, a sua ecologia institucional muito sensível às condições iniciais e a sua sobrevivência, nos tempos que correm, uma equação com várias incógnitas difícil de resolver.

A natureza da universidade só fica, porém, cabalmente esclarecida se formos capazes de responder a duas perguntas elementares: como explicar que uma ideia tão melindrosa se tenha conseguido implantar nalguns lugares ? O que nos leva de imediato a colocar esta outra: que tipo de problemas pode a universidade resolver que outras instituições não são capazes de resolver, ou, pelo menos, de resolver tão bem ?

Por estranho que pareça, as respostas a estas perguntas são habitualmente evasivas. As próprias perguntas raramente são formuladas. (O que tem este resultado insólito: discute-se muito a 'crise da universidade' e a 'avaliação das universidades', sem nunca caracterizar o objecto alegadamente em crise e a necessitar de avaliação). Para responder-lhes, proponho-me introduzir dois problemas a que, por conveniência de expressão, podemos chamar o problema de Humboldt e o problema de Peirce. Se o leitor quiser saber de que problemas se trata ao certo e que ensinamentos deles se podem colher, terá mesmo que aguardar pelos próximos artigos, porque, salvo erro, não creio que tenham já sido formulados e resolvidos do modo que aqui tenciono expôr.

José Manuel Catarino Soares


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 71
Ano 7, Setembro 1998

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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