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Escolas Inclusivas

Quando os vencedores falam no fim da História

A complexidade do campo educativo não autoriza um discurso linear que o não referencie enquanto confluência das suas dimensões ética, teleológica, axiológica, política. O carácter singular, irrepetível, impredizivel e simultâneo dos seus fenómenos melhor atestam a inconveniência de tentações 'simplificadoras'.
Quando há tempos, amavelmente, me convidaram para falar de Escolas Inclusivas eu não tive como convencer de que não sabia falar disso. Foi então ocasião de abrir caminho, (mais uma vez) a um discurso insensato. Mas conhece-se bem como, de um modo eufemístico, o que se veste de 'sensato' às vezes não é mais do que o caminho de confundir os outros, conduzindo-os pelos caminhos da 'paz' - de uma paz que morre por não ter sido senão germe de violência material e simbólica que é a dominação dos que nunca tiveram direito a usar dos bens que produzem e lhes pertencem. Essa paz morre porque não foi paz mas instituição de roubo, de roubo institucionalizado e naturalizado da propriedade, da cultura, da segurança, do direito a decidir sobre as próprias vidas.
Em 'Para uma Pedagogia do Conflito', Boaventura de S. Santos, referindo-se ao tempo presente mostra que nunca foi tão grande a discrepância entre a possibilidade técnica de uma sociedade melhor, mais justa e mais solidária e a sua impossibilidade política.
Referindo-se à teoria do fim da História como ideologia espontânea dos vencedores, esclarece que a burguesia sente, como nunca, que a sua vitória está consumada e, por isso, não lhe interessa senão a repetição do presente que é a repetição da fome e da miséria para uma parte cada vez maior da população mundial; é a repetição de novos fascismos transnacionais públicos e privados que, sob a capa de uma democracia sem condições democráticas, estão a criar um apartheid global.
Assim, o sofrimento humano, mediatizado pela sociedade da informação, é trivializado, banalizado, o que se traduz na morte do espanto, da indignação e, consequentemente, do inconformismo e da rebeldia.
Remetendo-nos para uma teoria da História que convoque e reanime o passado na sua capacidade de revelação, esclarece que 'só o passado como opção e como conflito é capaz de desestabilizar a repetição do presente'.

Maximizar essa desestabilização é a razão de ser de um projecto educativo emancipatório. Para isso ele tem de ser, por um lado, um projecto de memória e de denúncia e, por outro, um projecto de comunicação e cumplicidade, que recuse a trivialização do sofrimento e da opressão e veja neles o resultado de indesculpáveis opções. Isto é convocar o passado, mas também o presente e o futuro, não como fatalidade mas como produto da iniciativa humana.
Falar de Escola Inclusiva fora do quadro deste inconformismo, eu não sei... se calhar nem quero.
Tal como a partir de certa altura, não falar de mudança (não importa de quê, de quem, em que sentido) se tornou reaccionário, de há um tempo a esta parte não há discurso político de bom tom que não fale de exclusão. À medida que a desigualdade se vem transformando em exclusão, emerge o discurso da sociedade inclusiva, dando-se, a partir do mesmo radical, expressão antinómica a um fenómeno que, sendo velho, se apresenta novo nas procedências, nos contornos e no ameaçador crescendo, a impor o recurso à imaginação do poder para a concepção de instrumentos da sua regulação controlada, também ao nível da peça central da política cultural que a viabiliza: a escola.
Por isso há adjectivações (integrada, inclusiva) que, em si, parecem tributárias da procura de redenção para um certo mau estar, mais intuído do que consciencializado, a augurar um pressentido comprometimento com o artificialismo de separações, funcionais a uma política global de crescente mercadorização da educação, servida por uma racionalidade instrumental que, naturalizada, tudo tende a legitimar. É que não é fácil estar-se aberto a captar estilos de vida que têm como prioridade, estratégias de sobrevivência descoincidentes com o que temos por bem e por normal. Já não parece tão difícil assim, separar, categorizando.
Como atesta Wiviorka, uma das consequências da modernidade, é que esta não aceita facilmente a diferença, transforma-se em desigualdade, mas não inteiramente. Uma parte é transformada em exclusão, em nome do carácter inassimilável de certos comportamentos culturais.
Não é, portanto, por acaso que, num quadro legal avançado como é o nosso (a Constituição da República), que não põe dúvidas interpretativas sobre se alguém fica de fora da escola em termos físicos, funcionais e sociais, a escola precise de se socorrer da explicitação de acrescentes significantes substituindo-se ao que devia constituir-se em núcleo do seu mais profundo significado.
É que não chega sermos tolerados. O problema de viver e conviver com o outro, desmarcado de uma matriz racional, tem o registo profundo dos afectos. A capacidade de ver no outro, diferente de mim, a continuação de mim, mobiliza interacções de sua natureza transformativas: sentirmo-nos desejados é condição interior para, na minha singularidade, fazer parte de 'em pensamentos, palavras e obras'. É este o ponto crítico (o núcleo profundo) da exclusão/inclusão, com efeitos ao nível da razoabilidade e até da racionalidade das políticas que promovem ou despromovem uma e outra.
Tentando então reanimar algo desse passado revelador, convoco Plutarco para quem o melhor mestre é a cidade.

Quando importa convocar a desestabilização

Nos primórdios da humanidade a cidade era o melhor mestre das coisas necessárias.
A educação era exclusivamente oral visto que não se inventara ainda a escrita, e processava-se no contacto directo com a natureza e os homens. Era, por isso, circunstancial e permanente.
Com o aparecimento da escrita e do livro a cidade emerge do tempo com uma dimensão cultural ou civilizacional, sem precedentes. A cidade deveria tornar-se, mais significativamente do que antes, no melhor mestre das melhores coisas. Mas o primado da economia alicerçando a política e uma Educação ao seu serviço bloquearão as transformações nesse sentido. O facto é que, com a escolarização da sociedade, a unidade educativa da cidade foi quebrada, quer dizer, a função educativa cindiu-se, sacralizando-se no modo de educação formalizada, fechada nos estabelecimentos de ensino, enfeudada aos poderes constituídos, fechando-se à educação informal, vivencial ou de circunstância, que se confundia cá fora com a vida quotidiana.
O aprendizado da escrita e da leitura passou a constituir, naturalmente, a porta áurea que abria para o mundo maravilhoso do conhecimento. Só que a instrução do ler e do escrever era a função de base da escola institucionalizada que, não sendo extensiva a todos, teve como primeira consequência a divisão da cidade em letrados e iletrados. O que acentuou a sua estrutura classista. À discriminação social de raiz económica juntava-se a de origem cultural: uma cultura iletrada subalterna confrontava-se com o fundo intelectual de uma educação elitista. Como refere Gramsci (cito de cor), à diversidade da condição social corresponde uma diversidade cultural que se manifesta na desigual participação dos diversos sectores sociais, tanto na produção como no gozo e disponibilidade dos bens culturais. Esta desigualdade configura uma situação de oposição entre cultura hegemónica e culturas subalternas.
À maneira de um jogo dialéctico, a cidade dos tempos primordiais, caracterizada economicamente pelo modo comunitário da propriedade e, culturalmente, pela forma incidente, global e contínua de educação, será a tese.
A forma privada da propriedade produtiva e a organização escolar da educação, a antítese.
O futuro, emergindo de um tempo expurgado da violenta assimetria da distribuição de recursos e de poder e de todos os modos de discriminação que enxovalham a condição humana, será a síntese, a utopia: realizável na gradualização estratégica em que, dobrado o cabo das grandes narrativas, militantemente se reenquadre a 'revolução' no esforço do máximo aprofundamento de cada pequena reforma. É para isso que serve uma democracia aprofundada, participativa: como meio para que alguma vez todos tenhamos voz.
O projecto da modernidade, no seu comprometimento inicial com a comunhão e a liberdade, 'ilumina' a ideia de que o homem nasce para se libertar de tudo aquilo que o impede de caminhar para a liberdade, posta por meta ou por limite dos seus passos.
É a modernização, no sentido da hegemonia de uma racionalidade instrumental, que é fonte de alienação mais no sentido Marxista do que Hegeliano do conceito. Donde nascem insuspeitados mecanismos de dominação dos quais a classificação/categorização das pessoas é certamente o mais funcional à recriada perpetuação do sistema.
Parafraseando um meu professor numa aula, 'do ponto de vista humano não há critérios de sucesso/insucesso. Mas eles são instrumentais ao sistema'.
A. Touraine diz que 'a grande palavra de ordem dos tecnocratas que dirigem a sociedade é: adaptai-vos'. O sistema educativo está, obviamente, sintonizado com aquela palavra de ordem.
Com a crise do modelo de desenvolvimento do pós-guerra, a regulação pós-fordista que estamos a viver induz a correspondência entre processos de ensino/aprendizagem e o processo de trabalho na indústria, e a correspondente reestruturação do currículo, da pedagogia, da avaliação e da gestão, no estabelecimento do 'mercado educativo', na forja de uma cultura global do consumo com cliente certo no aluno/cidadão consumidor local.

É profunda a reorganização a que o Estado se tem de submeter por via da sujeição à regulação transnacional decorrente do complexo processo da globalização.
Passando por desregulação aquilo que são novas e mais subtis formas de regulação e controlo como muito bem esclarece R. Dale, o Estado expande-se sob a forma de sociedade civil, parecendo que se retrai. Com efeitos perversos dos quais B. S. Santos destaca a possibilidade de 'o controlo poder ser exercido sob a forma de participação social, a violência sob a forma de consenso, e a dominação de classe sob a forma de acção comunitária'.
A ideia-chave da economia capitalista é, no dizer de Wallerstein, a cultura 'enquanto resultado das nossas tentativas histórico-colectivas de lidar com as contradições, as ambiguidades e as complexidades das realidades sócio-políticas deste sistema'.
É manifesto o confronto por que está a passar a instituição escolar com algumas das consequências dessas contradições e ambiguidades.
O desafio que diariamente lhe é posto por 'gente desprovida de disposições socialmente construídas que a escola tacitamente exige' não é de pouca monta na manutenção da crise em que permanentemente vivem os sistemas educativos.
E recoloca-se a questão da diferença num registo que ultrapasse o da constatação de que somos todos diferentes, tal como temos todos muito importantes coisas em comum.

Quando a diferença é, muitas vezes, desilgualdade

A questão é, que critérios de diferença elegemos como relevantes, e porquê? Que diferença é que nos 'incomoda' e porquê?
Num sistema, cujos mecanismos de manutenção e amplificação transformam a diferença em desigualdade e parte desta em exclusão, como atrás se disse, não é a diferença condizente com os padrões socioculturais hegemónicos que incomoda, mas sim as diferenças sociais, culturais e outras que se inscrevem em padrões subalternos porque subalternizados, num paradoxo de funcionalidade e de incomodidade, criando-se duas qualidades de diversidade: uma diversidade de segunda, 'a diversidade dos casos que não se enquadram, quer no ensino regular, quer no ensino recorrente', para utilizar um extracto de um recente normativo (Despacho 22/ME de 1996); em contraponto a uma diversidade de primeira: a que não incomoda a instituição escolar nas suas estratégias que, como afirma C. Offe 'não se podem excluir do conceito da política social, ou seja, da terapia em larga escala para o problema estrutural da constituição e reprodução permanente da relação de trabalho assalariado'.
Só a superação desta bipolaridade abrirá caminho à escola para se confrontar com a sua real diversidade e de, na riqueza de interacções positivas dela decorrente, se reedificar, numa reciprocidade em si mesma inclusiva e, à míngua da qual, se engendram os discursos necessários da solidariedade quanto baste.
Ao professor, enquanto intelectual transformador, convirá não esquecer:
1 - Que as desigualdades sociais não são de raiz natural, mas social, portanto elimináveis. E não é fatal que a escola continue a ser um espaço privilegiado de produção e reprodução dessas desigualdades, se a reflexão sobre o papel que o Estado reserva aos professores no processo de definição das posições e distribuição dos indivíduos nos sistemas sociais, fazendo parte do seu quotidiano, os vier incomodar. E a esclarecer para o reconhecimento da igualdade como valor nuclear e cimeiro.
2 - Que a consideração analítica de determinantes macro-estruturais e a correlata consciência da variedade de mecanismos de reflexividade com que cada local acolhe a sua incidência, não é impeditiva de aperceber que a contingência sela sempre as nossas crenças, os nossos desejos, as nossas vidas. Ironicamente, tudo o que aconteceu, podia ter acontecido de outro modo.
3 - Que a 'máxima racionalização e especialização, no interesse da máxima eficácia, não são dimensões neutras da racionalidade técnica' (Dale, 1998). A burocracia e a tecnologia gerencial (esta suplantando crescentemente aquela), reduzindo problemas políticos complexos à sua mera condição técnica, apelam a uma racionalidade que implica controlo social levado à prática com o suporte dos meios de violência legítima que a modernidade colocou ao dispor do sistema, entre os quais se encontra a Escola.
4 - Que a política educativa não se realiza só ao nível do centro do sistema, mas que também recebe inputs da periferia, o que não é negligenciável na acção e reflexão de um quotidiano profissional, comprometido com a educação como projecto de liberdade, em que cultura e individualidade se possam definir com expressões recíprocas.
5 - Por último, que este sistema global e local, de muito desigual repartição de riqueza e de bens culturais, sendo histórico, tem um ciclo de vida. E tudo o que é humano contém, no seu nascimento, o germe do seu fim.
A ideia de Educação Inclusiva remete para o sentido de comunidade. E não há comunidade sem comunicação. É esse sentido que favorece o desenvolvimento de dispositivos que gerem condições de aglutinação das pessoas em torno de alguma coisa que sintam lhes diz respeito, no pressuposto de que não há identidades absolutas, simples, substanciais, tanto no plano colectivo como individual; no pressuposto de que as culturas não constituem nunca totalidades acabadas.
Como refere Marc Augé, nem a cultura localizada no espaço nem os indivíduos em que ela encarna, definem um nível de identidade básica aquém da qual nenhuma alteridade seria pensável.
É esta incompletude e a recusa da incomensurabilidade, por destino, entre diferentes modos de ler o mundo e sentir a vida, que é fonte de complementaridade e de novidade na recriação de insuspeitadas cumplicidades. Isto sob os auspícios de uma vigilância autocrítica que não autorize o exercício de subtis formas de violência impositiva, em nome do princípio de legitimidade.
Esta condição autocrítica só ganha consistência no quadro de um desenvolvimento descentrado que remete para transformações que não se compadecem com os limites temporais de um qualquer projecto de formação de professores com um tempo marcado a um ritmo funcionalista que não é o de um tempo transformativo.
Vivemos num mundo que ainda não aprendemos a olhar, também porque não temos tempo de o olhar.
Os princípios em que assenta a ideia de Escola Inclusiva fazem apelo a uma razoabilidade sem correspondência com a realidade social em que se inscreve: um repto à procura de sentido, 'no que não tem sentido'.

Quando há diferenças que nos incomodam

Aqui comparece uma vez mais a estrutura mítica da Utopia, não como construção mental apriorística de Futuros, desejáveis e, de certo, merecidos, mas como Passados, possíveis mas jamais conseguidos, talvez nem sequer intuídos, paralelamente aos quais, ou seguindo uma linha divergente virada ao infinito, passaram encadeamentos pragmáticos que conduziram o ser humano ao que hoje configura: nunca certo, no lugar incerto, com pena do passado e medo do futuro.
A Escola - sobretudo a Escola - é bem o reflexo desta civilização: a permanente inquietação da procura e o rasgar de horizontes de imprevisíveis e insatisfatórios efeitos.
Curiosamente, dentro da Escola, produzem-se (e reproduzem-se) forças dinâmicas cuja energia pode e deve abrir o dossier do Futuro.


O Bairro onde se desenvolve, aqui no Norte, o projecto de Educação Inclusiva, é um lugar onde as iniquidades sociais parecem apresentar-se em estado puro.
Sem condições mínimas de controlo sobre as próprias vidas, os seus habitantes vivem na periferia de tudo.
A Maria tem 13 anos. À professora custava-lhe que tivesse deixado as aulas.
Uma conversa com ela seria esclarecedora: Sr.ª Professora, diga-me cá: acha que, para ser puta como a minha mãe, preciso de ir à escola?
Depois disto, qualquer discurso me soa a falso. E estendo esse sentimento à ressonância das minhas próprias palavras.


Uma Educação Inclusiva reconhece-se na procura de pontes, de pontes de sentido que nos devolva à condição de sentir que o que se passa com os outros nos diz respeito.
É esse o sentido da comunicação humana. Irremediavelmente originais e irrepetíveis, o direito a ser é, de si, o direito a ser diferente. Isto é um universal: o princípio igualitário do direito a ser, a ser reconhecido.
O reconhecimento do outro é, de si, desencadeador de complementaridade e, nutrida que esta seja na reciprocidade, se transfigura em crescimento emancipador... nem que seja 'no sonho, na poesia ou na loucura'.

Rosa Soares Nunes

1 SANTOS, B. S. (1996) 'Para uma Pedagogia do Conflito', in Novos Mapas Culturais/ Novas Perspectivas Educacionais, Portalegre: Ed. Sulina.
2 WIEVIORKA, M. (1995) Racismo e Modernidade, Bertrand Editora.
3 MADEIRA, J. S. (1985) A Caminho da Cidade Educativa, texto policopiado.
4 Dale, R. (1996) Comunicação no âmbito de um Seminário realizado na FPCE/UP.
5 WALLERSTEIN, I. (1990) Culture as the Ideological Batterground of the Modern World System, texto policopiado.
6 OFFE, C. (1984) Problemas Estruturais do Estado Capitalista, Rio: Tempo Brasileiro.
7 Augé, M. (1994) Não-Lugares, Bertrand Editora.


  
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Edição:

N.º 71
Ano 7, Setembro 1998

Autoria:

Rosa Soares Nunes
Professora
Rosa Soares Nunes
Professora

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