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Recordações à Laia de Comparação - Os Açores e Uma Ilha do Outro Lado do Mundo

 Não menos nem mais intensamente, creio, mas de modo bem diverso, se vive a insularidade no extremo oriente. Não deixa, no entanto, de provocar sensações ímpares e construir percepções singulares, como as partes constituintes do arquipélago dos Açores.
Para nós, portugueses, Atlântico soa a mais velho, assim de 'mais respeito' ou coisa que o valha; para além do Índico, faz eco de mais antigo, de encanto mágico.
Das ilhas que têm uma janela a dar para o velho continente e outra de onde se avista o novo (continente, naturalmente), sabem e dizem os açorianos. De Timor, fala-se muito, agora. Por Timor, fez-se pouco, porventura, sempre.
Estávamos no ano internacional contra racismos, racialismos, xenofobias, enfim ... exclusão. Atropelos graves aos Direitos Humanos que ameaçam, pelo seu tratamento, reduzir o cardinal do conjunto de humanos sensíveis no sentido nobre da palavra. O povo maubere ganhou duas metades de um prémio Nobel. O resto da gente aplaude e, uma gorda fatia alimenta o que 'condena'. Valores - onde estão? Interesses - onde nao estão? Aqui fica, em jeito de reflexão.
Deixemos rodar o filme de episódios curiosos, relatados por aparelho Super 8 mm (estava-se em finais de gestação alargada das câmaras de vídeo), da parte leste da ilha verde, entre Setembro de 1973 e mês homónimo de 1975.
Quem chega, depois de cruzar os ares de muitos países e de endoidar o relógio por a tamanha aceleração submeter os ponteiros, poisa em tapete negro 'civilizado', sem ainda saber que só há réplicas desse chão na pista do aeroporto de Dili e em alguns arruamentos, também na capital. É que o pássaro grande (tradução do tetum, para avião de certa envergadura) só cabia na pista de Baucau e, assim sendo, a viagem até Dili era feita por terra, literalmente considerada, aos saltos dentro de um todo-o-terreno, ou, para os mais (?) afortunados, voando em asas de ave de menores dimensões. A estes aviões, retirando o 'grande', chamavam apenas catatua (o tal pássaro).
Segunda etapa - alojamento. Hotel, havia o Turismo, asseado e com algum conforto europeu (o paradigma presente mais do que a devida conta) e mais outro, que usava o apelido do seu proprietário (está bom de ver!). O primeiro era habitado por passantes importantes, que não pagam do bolso deles, e por australianos endinheirados. Para os residentes, era sítio aonde levar convidados 'de cerimónia'. Do segundo, pelo que as aparências deixavam adivinhar, o que mais movimento tinha eram as bandejas povoadas de copos de cerveja sempre com muitas bolhinhas por fora.
Um parênteses sugerido pela imagem acabada de descrever: as más línguas diziam que uma professora contava que à solicitação de um aluno no sentido de que ele explicasse a razão de os copos de cerveja gelada estarem sempre 'molhados por fora', havia aprendido que era cerveja também. E a senhora licenciada, caída da condensação abaixo, avaliou-se com nota negativa. Claro que a senhora era europeia. Terá reformulado os processos de ensino/aprendizagem que levara na sua mala de cartão ...
Fechado o parênteses, ou se tinha casa do estado, tropa incluída, ou se arrendava em mercado de oferta pouca coisa.
Quanto a alimentação do dia a dia, o europeu, das três uma, ou duas em alternância: ia às messes (ainda os militares), mandava a marmita vir a casa, amanhava-se na cozinha. Mesmo que a opção não fosse a última, era imperativo ir ao bazar (mercado). As sonoridades, as cores, as posturas, os enfeites dos produtos à venda, o tetum omnipresente cedendo parco espaço ao português, tudo compunha espectáculo que nenhum aparelho electrónico seria capaz de simular, quanto mais criar!
A lipa e a cabaia das mulheres, dessas que a televisão mostra frequentemente e das outras mulheres que se escondem com a timidez linda de criança, e as filhas de todas, e as netas, cobriam com leveza sensual os corpos esguios (por natureza e, em alguns casos, porque o betele só engana a fome) que, sobretudo nas mais jovens, estavam enriquecidos por molduras de cabelos de seda em rosto iluminado por olhos profundamente escuros, até verde esmeralda, profundos e transparentes ... sempre.
Os encantos muito se deviam a alimentação vinda, sem disfarces, da terra e do mar. Coisa pobre, para quem se presume civilizado!
No bazar, se para além de fruir a atmosfera, também se pretendia transaccionar, havia que possuir uns conhecimentos, ainda que rudimentares, de tetum, essencialmente no respeitante a números, que o indicador sempre serve para 'apontar' o produto.
E era assim: chegavm os vendedores mais a mercadoria, instalavam-se uns e outra, aqueles em posição de repouso que era assim como que sentado nos calcanhares e de mãos apoiadas nos joelhos; a mercadoria que era arrancada de seres radicados, sim, com raízes no chão, aparecia acondicionada em primorosas rendas de fio de palha de arroz, frequentemente, unidade por unidade. Dava gosto apreciar a arte e o engenho postos na confecção. A sensibilidade tem unidades de medida deste tipo!
Tudo a postos à espera do sinal de partida, isto é, da luz verde. Só que ali a luz era sonora e resultava de batida de baqueta de metal em jante despida de pneu, suspensa de um galho de árvore. E quem desferia o golpe no tantã? O 'cabo', em serviço do Administrador ou de autarca de outro escalão. O que é simples é que é bonito! Este sentimento está sintagmaticamente ligado a Timor. E, há tanto tempo que se fazem coisas feias! Não nos afastemos muito das bonitas.
Entre os timorenses de raíz ainda se negociava por troca. Lindo de ver! Para o quê o saquinho tecido a preceito que arrecadava as moedas? Ah, era para poder ir às lojas, ao comércio moderno, o dos 'chinas', onde havia os artigos que chegavam de barco, de outros lados do mar.
Saía-se satisfeito nem que a compra se ficasse por sabraca lima e respectiva renda envolvente e a companhia fosse um doce aroma de canela. Saiba-se que o designado é 'tangerina' (que, se fosse 'laranja', levaria mais o bot, isto é,'grande') e lima é o numeral para 'cinco'. Em parênteses sem sinal gráfico, é curioso o nome de um complexo existente na cidade do Porto: Lima Cinco. Redundância que não reconhece sê-lo!
Já relativamente integrado nos costumes da capital, o europeu cuidando que a exclusividade do comércio em loja com porta e tudo, que era de quem radicava em chinês, apenas oferecia produtos alimentares, de asseio, de adorno, de tecnologia com algum avanço e de outras utilidades, volta a surpreender-se verificando que no Jape-Kong-Su ou no Sang-Tai-Ho também há medicamentos e, num deles, bem ao fundo, um restaurante aprimorado, mais na confecção do que no conforto ocidental. De resto, toda a restauração que saísse dos atrás citados hotéís e da pousada de Baucau, estava entregue também a quem fazia as contas em ábaco chinês, mais rapidamente do que o o retirar do bolso uma calculadora.
O sol esconde-se de repente, para não dizer adeus, por detrás da montanha e deixa a ilha à espera da hora matutina em que volte a mostrar-se sobre o mar, deste fazendo espelho que lhe reflecte o esplendor beijando terra e nuvens.
Para acabar, silêncio em vénia ao místico canto da flauta de bambu que cria reino de magia ... lembra a dolência de algumas toadas açorianas e até dos seus falares!

Como e quanto mudou Timor! Era a década de 70; é o final do milénio.

Iracema Santos Clara
(professora)


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 70
Ano 7, Julho 1998

Autoria:

Iracema Santos Clara
Escola E.B. 2/3 Dr. Pires de Lima, Porto
Iracema Santos Clara
Escola E.B. 2/3 Dr. Pires de Lima, Porto

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