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Imigrantes em Portugal

As cores da exclusão

Continuando na senda de anteriores entrevistas, nas quais as diferentes formas de exclusão, presentes na sociedade portuguesa, constituiram o tema central, neste número de 'A Página' far-se-á uma abordagem ao universo da imigração. Para nos guiar nesta viagem falada, convidamos Manuel Solla, sócio fundador de uma associação de defesa dos direitos humanos e de combate ao racismo e à xenofobia - a Associação Juvenil 'Olho Vivo' -, e coordenador do núcleo do Porto ao longo dos últimos quatro anos (abandonou temporariamente a direcção, em Fevereiro, para se dedicar ao seu mestrado em História das Populações, que prepara na Universidade do Minho).

P - Como caracterizaria, de forma geral, a situação das populações imigradas em Portugal?

R - Como primeira forma de caracterizar a imigração no nosso país, poderá dizer-se que dos cerca de 140 mil imigrantes, à volta de 130 mil são provenientes de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Embora existam cidadãos de outras origens, eles constituem uma parcela pouco significativa.
Em segundo lugar, a situação de qualquer imigrante depende da sua capacidade de integração e de um conjunto de outros factores, nomeadamente do ponto de vista legal, como autorizações de residência ou o facto de terem, ou não, laços familiares mais ou menos fixos.
Considerando a situação dos cidadãos dos PALOP, a esmagadora maioria trabalha em sectores onde se manifesta uma grande precaridade no emprego - nomeadamente na construção civil, onde trabalham em regimes de sub-empreitada -, e situações constantes de falta de pagamento de salários ou de acidentes de trabalho não compensados por falta de um vínculo contratual com a entidade patronal. Muitas vezes, não chegam sequer a saber quem é essa entidade. Podem, quanto muito, identificar a pessoa quem lhes paga, mas não sabem estabelecer uma relação entre esta e o dono da obra.
Esta precaridade significa, do ponto de vista geral, salários abusivos e nenhumas regalias sociais, onde se verificam, claramente, violações do direito do trabalho.

P - Mas a legislação portuguesa prevê sanções para esse tipo de situações...

R - A legislação contempla este tipo de atitudes, violadoras dos princípios de igualdade de oportunidade no trabalho, do direito à saúde, à segurança social e à protecção contra o desemprego, mas a precaridade é de tal ordem, atingindo principalmente os imigrantes, mas também outros sectores da sociedade portuguesa, que raramente se podem provar.
Uma conhecida companhia de construção civil, com sede no Porto, por exemplo, tem actualmente um grande número de trabalhadores em situação irregular e faltou, inclusivamente, ao pagamento de salários. Os trabalhadores organizaram uma greve e a solução encontrada para resolver o problema foi a chamada da polícia de choque. Situações deste tipo passam despercebidas à maior parte da população portuguesa porque, infelizmente, não são noticiadas na comunicação social.
Há uma tentativa clara por parte das grandes empresas em desvincularem-se dos trabalhadores, tentando incutir-lhes a ideia de que podem tornar-se patrões deles próprios. Mas isso é um falso argumento, porque transformam esses trabalhadores em empresários que, por sua vez, irão explorar outros operários. As maiores empresas de construção civil francesas, por exemplo, funcionam com quadros reduzidos, compostos na sua maioria por funcionários técnicos e administrativos. A mão de obra especializada, essa, é contratada em regime de sub-empreitada.
Em Portugal isso também começa a acontecer. As grandes empresas estão a cortar os laços de responsabilidade com os trabalhadores, baseadas num sistema em que se verifica uma grande dependência e um esforço desenfreado sem quaisquer contrapartidas de regalias sociais. E tanto os governos como os sindicatos do sector reconhecem que esta precaridade atinge particularmente os imigrantes.
A grande questão que se coloca aos imigrantes quando se acabam as grandes obras, públicas ou privadas, é o que fazer a seguir. Habitualmente, passam por um período em que sentem uma grande pressão no sentido de retornarem aos países de origem, 'inventando-se', para o efeito, programas de retorno, numa tentativa clara de coacção e de medo sobre as pessoas que não tenham a sua situação regularizada.

P - Que medidas concretas toma o governo português para resolver essas situações irregulares?

R - O actual governo criou um cargo político - o Alto Comissário para os Emigrantes e Minorias Étnicas -, directamente dependente do primeiro-ministro, que não tem exercido qualquer intervenção no combate à exclusão social. Perante uma situação de exclusão total - e não me refiro apenas às leis laborais e à sua aplicação -, não existe uma política concertada. A pouca política existente é desarticulada.
O único aspecto positivo da política do governo, além da intervenção pontual em alguns bairros da Área Metropolitana de Lisboa, ao nível dos cuidados básicos de saúde e de apoio a projectos de comunidade como a formação profissional de jovens e a ocupação de tempos livres, foi a decisão em possibilitar aos imigrantes o acesso ao rendimento mínimo garantido.

Espaço Schengen espaço de exclusão?

Mesmo com a possibilidade dos imigrantes acederem ao rendimento mínimo garantido é notória uma política de exclusão, atingindo uma parte significativa de imigrantes que não têm qualquer outro recurso senão aquele subsídio. Não sei se existirão dados globais nacionais sobre esta matéria, mas creio que, normalmente, ele é apenas atribuído a famílias numerosas e que residam em Portugal há vários anos.
Ou seja, do ponto de vista da integração não se vislumbra uma política clara e articulada. Bem pelo contrário. Há um conjunto de medidas, previstas na legislação que brevemente entrará em vigor, visando exactamente o contrário: criar um clima de medo e de repressão, que obrigue parte dessas pessoas a regressar ao seu país de origem. Não só dos PALOP, mas também de um conjunto de países cuja emigração é recente, como o Senegal e outros países africanos, e alguns países asiáticos como o Paquistão ou a Índia.

P - As organizações não governamentais, nomeadamente as associações de cidadãos estrangeiros imigrados em Portugal, tiveram oportunidade de serem ouvidas nesse processo legislativo?

R - Houve um pedido de autorização legislativa para a alteração da lei da imigração - entrada, permanência e expulsão de estrangeiros -, não no sentido de rever alguns dos conteúdos, mas sim para a constituição de uma nova legislação que tivesse em linha de conta os acordos feitos com Portugal no âmbito do espaço Schengen, como é o caso do controlo fronteiriço. Houve uma pressão bastante grande sobre Portugal e o sul da Europa, porque o nosso país foi considerado como uma das principais portas de entrada para esses imigrantes.
Esta nova legislação, por isso, aparece não como uma tentativa de arranjar respostas para os problemas dos imigrantes residentes, tal como seria desejável, mas sim para tentar encontrar, no plano europeu, uma medida que contenha novas entradas e tente resolver, de uma forma mais ou menos radical, mas 'inteligente', a situação das pessoas que se encontram em situação irregular ou sem trabalho.

P - Nessa medida, como decorreu o recenseamento do pedido de legalização extraordinária?

R - Foi bastante positivo porque existia uma situação de clara ilegalidade e porque era, desde há muito, uma exigência das associações de imigrantes, anti-racistas e de direitos humanos.
Pecou essencialmente por falta de apoios económicos e logísticos às organizações que se envolveram no processo, bem como pelo pouco empenhamento político na questão. Um exemplo disso é que só praticamente na recta final, a cerca de vinte dias do prazo limite, foram efectuadas campanhas de informação por parte do Ministério da Administração Interna. No mesmo sentido, verificámos igualmente que houve dificuldade no acesso aos documentos. Existiu, assim, e durante um largo período de tempo, um interesse deliberado em sonegar informação.
Como consequência, cerca de cinco mil processos, num total de trinta e cinco mil, não foram aceites por se terem registado claras violações da lei. A prova disso mesmo é o facto deles terem sido aceites após recurso judicial. Foi uma forma encapotada de coacção, porque para recorrer essas pessoas necessitavam de advogados e de dinheiro. Por essa razão, muitas delas ou se mantêm ilegais ou já abandonaram o país.
Outro aspecto negativo desse processo de legalização foi o facto de não abranger todos os candidatos de igual forma. Havia dois períodos distintos para a legalização, um para os cidadãos dos PALOP e outro para países terceiros, o que acabou por criar situações de litígio entre as comunidades de imigrantes. Um cidadão da Guiné-Bissau, por exemplo, podia candidatar-se tendo entrado em Portugal até 31 de dezembro de 1995, mas alguém de um país vizinho, como o Senegal, tinha de provar essa mesma entrada até 25 de Março.

Mas, actualmente, o que se afigura preocupante é a nova legislação que irá ser publicada em Diário da República, onde, entre outras cláusulas, está prevista a obrigatoriedade de os imigrantes provarem, semestralmente, que possuem condições económicas para permanecerem em Portugal.

P - E essa medida aplica-se também aos cidadãos legalizados?

R - Sim. Mas o problema fulcral da legalização é mais vasto, porque ela serve para mostrar os imigrantes como uma ameaça. A questão é simples: ou aceitamos esses imigrantes, e integramo-los, ou não os aceitamos. Ao aceitar, autorizamos a sua residência em Portugal. O estado, no entanto, tem toda a capacidade para autorizar a sua permanência num ano e no seguinte não o permitir. O que tem acontecido, de uma forma sistemática, é que, ao invés de se reconhecer uma evidência, como é o facto de alguém residir efectivamente em território nacional, o estado levanta obstáculos de carácter burocrático que conduzem, quase inevitavelmente, a formas de clandestinidade e de exclusão.
Em termos europeus, foi aprovada uma directiva, em Fevereiro deste ano, que aponta para um controlo rigoroso da movimentação de estrangeiros no espaço europeu, com medidas claras e eficazes para expulsar as pessoas em situação irregular.

P - O espaço Schengen poderá, então, ser considerado um espaço de exclusão?

R - O espaço Schengen é algo muito complexo. Eu até entendo que Portugal e os países da União Europeia desenvolvam medidas no sentido de não permitirem a entrada de cidadãos extra comunitários. O que eu não posso aceitar, de forma alguma, porque contraria qualquer princípio e fomenta formas de racismo e xenofobia de parte a parte, é que as pessoa se sintam permanentemente pressionadas.
Tenho contactado com pessosas que residem em Portugal há dez, quinze e vinte anos, que nasceram aqui e se sentem perfeitamente integrados, mas que, aos olhos das autoridades, são sempre vistos como estrangeiros, numa tentativa de os identificar como intrusos e indesejáveis. Em relação a países culturalmente similares ao nosso não costuma haver grandes objecções, mas quando se trata de países com culturas distintas e de cidadãos com aspecto exterior diferente sente-se um evidente mal estar numa parte significativa da população portuguesa.

Sistema educativo excluiu os 'outros'

P - O sistema educativo português consegue integrar os alunos provenientes de minorias?

R - A nível curricular o sistema educativo está pensado para os alunos portugueses, excluindo claramente todos os outros. no que se refere à preparação dos professores, a situação é praticamente a mesma. Existem casos pontuais de educadores que recebem preparação, na maioria das vezes por sua iniciativa e no quadro de situações específicas na sala de aula - desconhecimento da língua por parte de alunos, por exemplo - e procuram respostas para os problemas. Embora exista um programa do Ministério da Educação concebido com esse objectivo, o Programa Entreculturas, que considero extremamente limitado, não há uma preocupação a nível global.
E isso, por exemplo, é visível no tratamento da comunidade cigana. Todos os professores se queixam que os ciganos abandonam a escola durante o ensino básico, faltam muito, não conseguem permanecer dentro da sala de aula, são agressivos, etc... Mas a escola tem de estar preparada para responder a esses problemas e interrogar-se porque tal acontece. Apesar de se constatar este tipo de situações, não se tem dado respostas concretas. Se eles faltam, paciência, chumbam. Ou seja, opta-se por uma via administrativa e não de integração.
No enatnto, existem experiências com minorias em escolas de outros países onde os resultados se têm revelado opostos.

P - Em que países, nomeadamente?

R - Em certos países nórdicos e em alguns países de Leste, como a Bulgária. Este país, aliás, foi distinguido com um prémio e com uma ajuda financeira, pelo Conselho da Europa, por desenvolver um projecto para a criação de uma escola no seio de uma comunidade cigana. A Suécia e a Dinamarca são outros dos exemplos onde há minorias que criam os seus espaços educativos próprios - muitas vezes com apoios do estado, mas partindo sempre da iniciativa das associações locais - para responder a situações específicas, e com resultados muito positivos.
Ao contrário, na região de Lisboa, mais especificamente nos concelhos de Loures e da Amadora, algumas escolas são maioritariamente frequentadas por africanos mas não porque eles constituam uma maioria na localidade. A explicação é que muitas das famílias de alunos brancos preferem transferir os filhos para outros estabelecimentos de ensino. E as autarquias sabem disso. A presença da comunidade africana é considerada negativa, não tanto por motivos rácicos, mas pelo nível escolar dos alunos e o da própria escola ser fraco. E não tem existido qualquer preocupação, por parte do estado, em resolver problemas como este.

P - Que papel de contra-poder podem desempenhar as Organizações Não Governamentais na resolução destes e de outros problemas?

R - Há um aspecto que se torna importante clarificar, que é a existência, ou não, de uma política para a imigração. E o facto é que, neste momento, ela não existe. Algumas das medidas existentes são consequência de directivas comunitárias, e algumas preparam-se mesmo para criar novos esquemas de exclusão, mas do ponto de vista de uma verdadeira integração dos imigrantes com autorização de residência e com filhos nascidos em Portugal, não há, claramente, vontade política para o fazer.
Na sua esmagadora maioria, as associações de imigrantes, as organizações de carácter social, sejam elas de direitos humanos ou anti racistas, bem como outras entidades que trabalhem directamente com imigrantes, não têm uma consciência clara desta dimensão. Os problemas, a pressão e a miséria são tantos, que elas só podem dar resposta aos pequenos problemas quotidianos que vão surgindo. Não há a preocupação, nem provavelmente a clareza, para ver este problema no seu todo.
Depois, existe uma dependência económica muito grande face ao poder político. A maioria das ONG portuguesas vivem à sombra desse poder e a sua capacidade de reivindicação é reduzida. Se os dirigentes reclamam mais um bocadinho, têm medo que os seus projectos sejam chumbados. Há uma espécie de jogo, onde, apesar de se saber que as coisas não vão bem, se reclama pouco para que a situação não se agrave.
A nível das associações formadas por imigrantes a situação é pior, porque além dessa dependência económica há uma dependência política cada vez maior. Nomeadamente ao nível das comunidades caboverdiana e sãotomense. Se olharmos atentamente para os subsídios atribuídos pelo Alto Comissariado para os Emigrantes e Minorias Étnicas (ACEME), verifica-se que a maior fatia foi destinada a organizações praticamente desconhecidas e que não trabalharam, desde o início, no processo de legalização. Para associações que já se encontravam no terreno mesmo antes do início do processo e que realizaram um trabalho extraordinário, como é o caso da 'Olho Vivo', os montantes foram diminutos.
Além disso, uma parte significativa desses dirigentes associativos trabalha ou tem ligações ao ACEME. A capacidade de reinvindicação é, assim, quase nula, porque na prática estão ao serviço do poder instituído.

P - Mas o facto de estarem integrados em lugares chave da administração central não lhes possibilita, pelo contrário, servir melhor os interesses dos seus conterrâneos?

R - Pode levantar-se essa interrogação. E isso seria verdade se o resultado fosse esse. O problema é que não é. A questão dos subsídios é disso apenas um exemplo. Nós manifestamo-nos e reclamamos contra esse tipo de discrecionaridade, mas muitas associações formadas por imigrantes não tiveram oportunidade para isso.
Durante o processo de legalização, por exemplo, tive oportunidade de estar presente no centro de recepção de documentos, em Lisboa, e fiquei revoltado por ver funcionários, muitas vezes compatriotas, sonegarem informações e não prestarem um atendimento capaz, sabendo que muitas das pessoas que ali se dirigiam eram anafabetas. Houve casos em que faltavam documentos para os processos preencherem todos os requisitos legais, sabendo-se que assim não seriam aceites, e não se dizia nada. É uma situação onde se demonstra a pressão posta nestas pessoas, só compreendida por quem com eles directamente trabalhou.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 68
Ano 7, Maio 1998

Autoria:

Manuel Solla
Associação Juvenil 'Olho Vivo'
Manuel Solla
Associação Juvenil 'Olho Vivo'

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